Práticas de cura presentes nas religiões afro-amazônicas são estudadas no Pará

A pesquisadora explica que quando uma pessoa chega nos espaços das religiões afro-brasileiras com algum problema, seja físico ou emocional, o religioso consegue ver além do que a medicina tradicional consegue oferecer.

As práticas de cura e cuidado nas religiões de matriz africana, afro-brasileira e indígena são o objeto de pesquisa da professora da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), Ana Lídia Cardoso do Nascimento. Ela está entre os 50 pesquisadores selecionados em todo o Brasil para uma bolsa de pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP), destinada exclusivamente a pessoas negras.
Com o projeto de pós-doutorado “Os significados da prática de cuidado e cura para construção de uma etnociência e bem-viver sob a lógica umbandista na metrópole paulistana”, Ana Lídia dá continuidade à sua tese de doutorado sobre o que ela chama de “Ciência do Sagrado”.

“A Ciência do Sagrado seria as práticas de cura e de cuidado presentes nas religiões de matriz africana, afro-brasileira e indígena. Foi isso que eu trabalhei na minha tese de doutorado. Então eu parto do princípio que existe uma ciência por trás dessas práticas e que está pautado no sagrado, no sobrenatural. É uma ciência específica que possui por conta disso uma epistemologia. Então existe uma ciência, não com um caráter da ciência racional, convencional, mas uma ciência por trás dessa epistemologia própria”,

comentou.

Foto: Ádison Ramos/Acervo g1 Amazonas

A pesquisadora explica que quando uma pessoa chega nos espaços de terreiros, tendas, templos, searas das religiões afro-brasileira, com algum problema, seja físico ou emocional, o religioso consegue ver além do que a medicina tradicional consegue oferecer. 

“Eles não veem que aquele problema é localizado, mas eles veem que tem alguma conexão com algum problema que essa pessoa, seja no campo da espiritualidade ou das relações interpessoais com alguém, de sentimentos. E que isso está gerando um problema que acaba se materializando, na sua estrutura biológica. Então eles têm esse olhar da pessoa como um todo, olhando holisticamente”, comentou.

Um dos campos de pesquisa de Ana Lídia foi em Juruti, oeste do Pará, onde encontrou com uma senhora que se definia como rezadeira devido ao preconceito, mas que tinha todas as características de uma mãe de santo. “Ela me dizia que tinha pessoas que chegavam lá carregadas, dizendo que estavam com dor no corpo todo, do de cabeça, que estavam afetadas com uma determinada dor enorme. Ela começava a conversar com essas pessoas, muitas vezes nem direcionando para o problema que ela tinha, conversando simplesmente, olhando no olho, com cuidado, fazendo essa pessoa sorrir e aquilo ia embora. Quando terminava aquela conversa, a pessoa já não estava sentindo toda aquela carga de negatividade que ela chegou dizendo que tinha”, disse. 

“É olhar para o outro. É cuidar. Essa é a questão do cuidado que se tem com o outro, ver o outro na sua inteireza, olhar o outro como ser humano que ele é, humanizar essa relação. Eu acho que isso, a biomedicina, a alopatia, deixa muito a desejar”,

afirmou.

Ana Lídia diz que é importante ter essas pessoas dentro dos serviços públicos e conta que trabalhou, em sua tese de doutorado, com os indígenas Tikunas na tríplice fronteira Brasil, Colômbia e Peru. E no município de Letícia, no lado colombiano, indígenas estão integrados no sistema público de saúde. 

A professora Ana Lídia no Santuário Nacional da Umbanda, em Santo André, São Paulo. Foto: Ana Lídia/Acervo pessoal

A professora também observou isso na Ilha do Marajó, no Pará, em que um técnico de enfermagem que também era pai-de-santo, que estava disposto a ajudar as pessoas além da medicina tradicional. “Ele dizia que o sonho dele era fazer um curso sobre medicina natural, porque ele dizia que as entidades que recebia, os índios, os caboclos da mata, eles passavam muitos conhecimentos, mas ele estava incorporado, então não sabia. Depois que ele retornava, as pessoas informavam a ele. Mas ele dizia que queria esse conhecimento para ele, porque o conhecimento da entidade está com a entidade. Então por isso que era o sonho dele fazer um curso sobre medicina natural”, contou.

“Quantas vezes a gente não tem nos sistemas públicos de saúde pessoas adeptas das religiões afro-brasileiras e que acabam não fazendo, porque se sentem inibidos e malvistos dentro desse processo”,

afirma a professora. 

O trabalho de Ana Lídia foi fundamental para a criação do Núcleo de Educação e Diversidade na Amazônia (NEDAM) da Ufra, na qual ela foi uma das fundadoras, em 2018. “O NEDAM foi pensado como um espaço para discussão de temáticas dentro de uma educação para a diversidade e de respeito às diferenças. Foi com esse sentido, com esse objetivo que o NEDAM foi criado.”

“Os nossos projetos de pesquisa e de extensão também estão vinculados às temáticas do NEDAM. Nós temos os grupos de trabalhos que tratam da questão da religiosidade afro-amazônica, assim com a questão sobre agroecologia, agricultura familiar, educação quilombola, questão da diversidade sexual, traz debate sobre a questão de assédio contra as mulheres, sobre homossexualidade, LGBTQI+, então a gente já fez muita coisa dentro dessa lógica, justamente para abrir um pouco a visão das pessoas, pois muitos tem uma visão muito equivocada, acabam criando pré-conceito, quer dizer, define já uma visão sobre aquilo que nem conhece, e é esse o objetivo maior do NEDAM, que traz essa possibilidade de revisão de conceitos e de concepções de mundo dentro da comunidade acadêmica da Ufra”, afirmou a professora.

O NEDAM possibilitou a criação do Grupo de Pesquisa em Educação e Diversidade na Amazônia (GEDAM) em que a professora também faz parte. “Eu tenho uma linha de pesquisa dentro do GEDAM que é ‘Produção de saberes interdisciplinares nos contextos amazônicos: estudos das relações entre ambiente, cultura e o sagrado’. E um dos resultados dessa linha está no livro que será lançado agora ‘Educação e diversidade na Amazônia paraense: experiências e práticas educativas’, do GEDAM, e um dos artigos é justamente sobre epistemologia do sagrado, que eu escrevo junto com o discente do curso de Licenciatura em Língua Portuguesa, Matheus Augusto Soares, e que nós falamos sobre epistemologia do sagrado, a partir dos povos de terreiro”.

“A minha pesquisa, toda a minha produção, é sempre direcionada para essa discussão sobre a relação entre sagrado, cultura e natureza na Amazônia. Quando eu trato a questão do sagrado, geralmente pego as religiões afro-brasileiras e o sagrado indígena. A Pajelança Caboclo, por exemplo, tem a ver com um pouco do sagrado das populações ribeirinhas, que é um sagrado que tem uma especificidade muito grande, porque comporta dentro dele a relação com a natureza. Quando a gente fala dos nossos mitos amazônicos, eles são carregados também de visões que têm a ver com essa religiosidade cabocla”, 

finalizou a professora.

Em sua pesquisa de pós-doutorado em andamento na USP, a professora, que é praticante da Umbanda, está acompanhando as práticas de curas e cuidados nos terreiros dentro da cidade de São Paulo.

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