Pesquisador defende a comida como importante símbolo nas relações entre as pessoas.
Feche os olhos e mentalize o espaço de uma feira. O que não faltaria nessa imagem? Cores? Sabores? Movimento? Sons? Cheiros? Provavelmente isso e mais. Lugares populares na cidade e no campo, as feiras são ricas em interações sociais e, portanto, terrenos férteis como fonte de pesquisa.
“Vi nesses espaços uma forma de compreender os saberes e fazeres de comunidades rurais em contato com espaços urbanos. Quando foquei meu trabalho na Antropologia da Alimentação, compreendi como a cultura oral estava presente nas diversas referências à comida e como a narrativa sobre o alimento é importante para a formação das identidades daquela comunidade”,
resume o professor Carlos Dias Júnior.
Dias defende a comida como instrumento de expressão social e importante símbolo nas relações entre as pessoas. Com a tese ‘Da feira e da cozinha: consumo, identidade e linguagem em torno da comida na feira municipal de Cametá’, ele buscou compreender de que forma aquele espaço orienta e é orientado pelas trocas de consumo, processos de sociabilidade e marcas culturais das práticas alimentares de seus frequentadores.
O trabalho, dividido em cinco capítulos, foi apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/IFCH) da UFPA, com orientação da professora Carmem Izabel Rodrigues.
“A pesquisa se deu em dois anos de trabalho de campo na Feira Municipal de Cametá. Além de observar os diversos fazeres dos feirantes naquele espaço, também realizei entrevistas, algumas com questionários e outras como conversas. Foquei, pela necessidade da pesquisa, em feirantes que trabalham com alimentos e nos espaços de venda de alimentos. O objetivo era compreender quais os principais pratos consumidos na cidade e entender como esse alimento se transforma desde o momento que sai da feira”,
explica o pesquisador, que também entrevistou e acompanhou a rotina de dez famílias frequentadoras da feira.
Para frequentadores, a feira é o oficial e o improvisado
Em Cametá (PA), data de 1970 a origem da feira municipal, com a construção do Mercado Municipal, que, pouco a pouco, foi sendo tomado por barracas. Hoje, a feira está localizada em região mais central e se constitui de um espaço oficial, regulamentado pela prefeitura, composto pelos Mercado de Carne, Mercado de Peixe, Feira Livre, Feira do Açaí e Feira da Farinha, e um espaço improvisado, localizado no entorno do primeiro, ocupado pelos feirantes após um incêndio ocorrido em 2001. Na prática, os dois espaços se dividem apenas em função de feirantes credenciados e não credenciados.
“Quando se diz que vai à feira, ninguém pergunta ‘em qual feira?’, porque a feira é entendida pelo cametaense como um todo simbólico, um espaço único que é praticado e que se torna ‘um lugar'”,
justifica Carlos Dias Júnior.
Durante a investigação, o pesquisador levantou a presença de 1.500 feirantes cadastrados e uma fila de outros 500 aguardando novos espaços. “O trabalho do feirante em Cametá está, a priori, ligado a questões de produção local, isto é, grande parte do que é comercializado na feira tem alguma relação com uma produção local – rural e ribeirinha -, seja o peixe, a farinha, as frutas ou os temperos”, detalha.
Segundo o pesquisador, o espaço se constitui como o principal local de abastecimento interno, com destaque para as vendas de carnes, açaí e farinha.
Dias lembra que a feira é um espaço de negócios e que sua pesquisa considera esse aspecto ao se debruçar sobre as questões do encontro do rural com o urbano, do falar da ilha com o falar urbano, da forma de comer na ilha que se expande para as práticas urbanas.
“Para além da perspectiva ‘simplista’, ainda podemos vislumbrar o modo de fazer e os saberes específicos de uma determinada cultura, no caso, o que define o amazônida, o paraense e o cametaense. Dentro desse processo, uma cultura com base na oralidade e na informalidade instaura as relações de ‘ânimo'”,
analisa.
Mapará: diferenças entre consumo e valor identitário
O objetivo era levantar dados mais específicos sobre o consumo do pescado e seu valor identitário para os locais. Como, durante o ano, há períodos de maior e menor oferta, o pesquisador considerou períodos desde a abertura da pesca até o mês de outubro.
“Existe uma narrativa muito forte sobre o mapará. De fato, pude observar que existe um sentimento de pertencimento e identidade quando o cametaense fala do mapará, o que me intrigava, porque queria saber se o consumo de mapará era tão grande assim. É claro que, nos períodos de mais disponibilidade do peixe, ele é mais consumido, mas constatei que ele não é o alimento ‘mais consumido’. Ele ocupa um espaço simbólico importante, como se fosse a síntese do cametaense, além de ser um peixe de preparo versátil e de sabor atraente”,
destaca o professor, que aplicou um questionário sobre a preferência alimentar e observou a correlação com a faixa etária.
Cruzando os resultados encontrados nos cardápios das famílias e nos questionários aplicados, Carlos Dias Junior constatou a preferência pela carne bovina entre as famílias, em seus domicílios; e pelo peixe, na feira. Segundo o pesquisador, os dados coletados indicam que o consumo da carne bovina é grande em Cametá e que o peixe tem grande adesão entre adultos e idosos.
“Mesmo não aparecendo como o alimento mais consumido pelos cametaenses, o mapará está no centro da sua identidade e se sustenta como um símbolo de feições narrativas, está na habitual composição de uma típica refeição mapará-farinha-açaí que se espelha na feira municipal e estabelece o diálogo entre cozinha e feira”,
conclui o professor.
*O conteúdo foi originalmente publicado no Jornal Beira do Rio, edição 168, da UFPA, escrito por Edmê Gomes