Foto: Camila Picolo/Instituto C&A
No Alto Rio Negro (Noroeste Amazônico) vivem dezenas de povos, que praticam a tolerância, a diversidade e a diplomacia, características que o estilista Sioduhi considera fundamentais em sua trajetória no mundo da moda. Seu povo, Piratapuya, originário da região, é “gente-peixe”, e aparece homenageado no logotipo de sua marca, assim como em diversas outras referências que surgem em suas criações.
Depois de um período vivendo em São Paulo, Sioduhi voltou para o Amazonas, por acreditar que seria necessário apoiar a cadeia produtiva de seu estado. Os desafios de ser um jovem empreendedor amazônico, indígena e integrante da comunidade LGBTQIAPN+ são imensos. No entanto, as dificuldades nunca impediram Sioduhi de seguir trabalhando para descentralizar a moda nacional e demarcar novos territórios.
Nos conhecemos pessoalmente aqui em Manaus, onde estou passando uma temporada para realizar pesquisas para o meu doutorado em antropologia social. Já nos seguíamos nas redes sociais há algum tempo, e, assim que cheguei na cidade, fui conhecer o seu ateliê, localizado algumas ruas abaixo de onde estou hospedado.
Ao longo dos dias, visitei Sioduhi outras vezes, para conversarmos despretensiosamente. Acompanhei-o em entrevistas na televisão, oficinas com jovens indígenas, reuniões de empreendedorismo, aberturas de exposição, cafés da tarde, shows, bares e festas, assim como na produção das fotos e vídeos de sua campanha. Pude vê-lo gargalhar diversas vezes, um traço marcante de sua personalidade. Sioduhi é um jovem doce e extremamente gentil, sobretudo quando se sente confortável.
No entanto, com o passar das semanas, ele se mostrava apreensivo com os inúmeros impasses que surgiam para finalizar sua nova coleção. Num desses dias, no início da noite, recebi uma mensagem em que dizia: “É cansativo receber tantos nãos”. Pouco tempo depois, lá estava ele fazendo piada e contando de um compromisso que surgira em cima da hora.
No último final de semana (entre 30 de novembro e 1° de dezembro), na véspera de sua viagem para São Paulo, fomos juntos a uma ball indígena, da qual Sioduhi seria jurado. Perguntei, ao longo do trajeto, se ele não estava esgotado com a correria dos últimos dias. Sua resposta, breve e assertiva, com um pequeno sorriso estampado no rosto, é um perfeito lampejo da pessoa com quem convivi nos últimos meses: “Estou exausto, mas aceitei o convite. É minha gente!”.
O estilista lança sua nova coleção na 55ª edição da Casa de Criadores, que acontece entre os dias 5 e 10 de dezembro de 2024, em São Paulo. Responsável pela abertura do evento, a Sioduhi Studio apresenta ‘Kahtiridá: Fio da vida’, coleção que busca refletir sobre as possibilidades de cura e resistência em um mundo assolado por catástrofes.
Nas criações, ele traz materiais como a fibra de tucum, o algodão emborrachado de seringueira e o tingimento natural com Tecnologia ManioColor, extraída da casca da mandioca.
“Meu trabalho é muito inspirado pelo momento atual que estamos vivenciando. E pelo que nós, indígenas, já passamos, e pelo que estamos preparando para o futuro, com as ações de agora. Isso tudo relacionado às mudanças brutais do mundo. Eu penso que é uma forma de dizer que, mesmo com todas essas brutalidades, continuamos lutando pelo direito à memória e à cura”, diz Sioduhi sobre a nova coleção .
Embora seja um desafio muito grande se apresentar, ainda mais no caso de uma pessoa que transita entre universos tão distintos, o que você gostaria que as pessoas que não conhecem o Sioduhi soubessem sobre você?
Sioduhi — Sou o Sioduhi, “neto daquele que está sentado cantando”, na tradução literal. Mas pode ser também “aquele que carrega o espírito do Baiá”, músico e compositor das canções milenares das cerimônias dos povos do Alto Rio Negro. Sou Piratapuya (Waikʉhn), da Terra Indígena Alto Rio Negro. Meu povo compartilha este território com outros 23 povos. Fala-se 18 línguas na região, sendo a tukano, minha primeira língua, uma delas.
Nasci em 1995, na comunidade indígena Mariwá, no Médio Uaupés. Fiz muitas viagens pelo Uaupés e pelo Rio Negro com minha família. Eu acompanhava, constantemente, meus pais no trabalho com a agricultura nas nossas roças de maniva e nas atividades de pesca. Quando eu tinha 5 anos, minha família começou o processo de sair e voltar para a nossa comunidade. A escola mais próxima havia fechado, e tivemos que passar o ano letivo em Iauaretê, um dos distritos de São Gabriel da Cachoeira, município do Amazonas. Iauaretê está localizado na fronteira entre o Brasil e a Colômbia.
Foi em Iauaretê que eu comecei a gostar de moda, antes mesmo de compreender o que ela era. Eu vivia na casa da minha prima, e como minha tia costurava, passei a observar e a gostar. Mas foi somente depois da faculdade que eu tive coragem de correr atrás do sonho e realizá-lo. A mudança para o distrito de Iauaretê foi, na verdade, apenas o começo das múltiplas mudanças que eu vivenciaria. Não só de local, mas também de ter contato com outras culturas — seja na língua, na alimentação, no comportamento, enfim, no modo de ver o mundo.
E tudo isso me fez passar por um processo de depressão. Principalmente quando tive que me mudar para a cidade de São Gabriel da Cachoeira, aos 15 anos, porque fui selecionado no Instituto Federal. Foi nessa idade que me compreendi como uma pessoa de dois espíritos. Os atravessamentos da colonização, da eurocristianização e da militarização me fizerem sentir culpa por um tempo, mas, felizmente, encontrei apoio quando mais precisei.
Confira a entrevista na íntegra AQUI.
*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Nonada Jornalismo, escrito por Leonardo Nascimento