Do quilombo paraense para a Sapucaí: quem é Mestre Damasceno, o criador do Búfalo-Bumbá

Com mais de 400 composições no currículo, o Mestre Damasceno já recebeu diversas homenagens, inclusive, foi tema de uma escola de samba no Rio de Janeiro.

A viagem rumo à Sapucaí começou em meados de fevereiro no município de Salvaterra, localizado no Marajó, maior ilha costeira do Brasil – banhada tanto por águas de rios quanto por oceano. São 4 horas de balsa até Belém, a capital do Pará, e é lá que fica localizado o maior aeroporto do estado. Foi de onde partiu Damasceno Gregório de Santos, ou simplesmente, mestre Damasceno, rumo ao estado do Rio de Janeiro, acompanhado da comitiva composta pelo grupo de músicos do Nativos Marajoaras, uma assessora de acessibilidade e uma equipe de comunicação que o acompanhou e registrou as agendas na cidade maravilhosa.

O destino principal foi a Marquês de Sapucaí, onde o mestre desfilou no dia 20 de fevereiro na Paraíso do Tuiuti. Outros cartões postais também entraram na aventura de mestre Damasceno, pessoa idosa com deficiência visual que tem que enfrentar as imposições de falta de acessibilidade dos espaços. Durante dez dias de viagem, ele gravou um clipe na Lapa, se apresentou em um espaço cultural de resistência negra carioca, pôde experienciar com outros sentidos a ida ao Museu do Pontal, visitou o Cristo Redentor, o Arpoador, andou de metrô pela primeira vez, sentiu o pitiú dos peixes do mar, levou a farinha para poder almoçar sem sentir tanta saudade do cardápio de Salvaterra.

Foto: Camila Lima/Divulgação

Em 2023, o cantor, compositor, diretor, escritor de autos juninos e pescador completa 50 anos de carreira. São mais de 400 composições, 4 álbuns lançados, além de estrelar os documentários “Mestre Damasceno – O Resplendor da Resistência Marajoara” e “O Boi-Bumbá de Salvaterra e suas Comunidades Quilombolas”, ambos dirigidos pelo produtor e amigo de longa data, Guto Nunes. Damasceno é o criador do Búfalo-Bumbá, a brincadeira junina que iniciou como boi-bumbá, e em homenagem à força e a tradição de criação de búfalos em terras marajoaras, ganhou o atual nome.

Foi essa a história que Damasceno ajudou a contar no desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. E foi através da internet e dos conteúdos disponíveis nas redes sociais do mestre e no Youtube que a Paraíso do Tuiuti, na Zona Norte do Rio de Janeiro, conseguiu acessar Mestre Damasceno. Em 2023, o samba enredo ” O Mogangueiro da Cara Preta” de autoria dos compositores Claudio Russo, Moacyr Luz, Gustavo Clarão, Júlio Alves, Alessandro Falcão, Pier Ubertini e W Correia, contou sobre a chegada dos búfalos na ilha do Marajó.

Segundo a sinopse do enredo assinado pelos carnavalescos Rosa Magalhães e João Vitor, no século XIX, a partir do comércio das especiarias, existia um tráfego de navios com carregamento de temperos e também de búfalos, que saía da Índia e ia para a Guiana Francesa. Reza a lenda que no caminho, na costa brasileira, esse barco naufragou, após uma tempestade. Toda a tripulação morreu, somente os búfalos sobreviveram. Os sobreviventes se adaptaram bem na região e se multiplicaram, hoje formam o maior rebanho desses animais no país. Atualmente, é comum encontrá-los em Salvaterra, descansando, ou até caminhando pelas pacatas ruas do município, numa convivência pacífica com os moradores.

“Mogangueiro, por que ele não morreu atravessando o lago sozinho. Escapou de morrer, ficou vivo, é essa que é a história”, explica mestre Damasceno sobre o trecho do samba enredo que diz “Cadê o boi? O mogangueiro/O mandingueiro de Oyá”. Damasceno ainda conta que muitos dos que faziam pajelança tinham ligação com espécies de “búfalos encantados”, ligados a mandingas. Assim como o mestre, que tem seus guias espirituais,que conversam e avisam sobre acontecimentos futuros.

Por volta de 2002, Mestre Damasceno pensou em desistir de brincar de boi. Mesmo sendo avisado por seus guias que o caminho era aquele, o fato de já ter família o deixou preocupado, já que a cultura popular não dá retorno financeiro. O interesse da própria comunidade também contou, já que é preciso reunir cerca de 25 a 30 pessoas para colocar o búfalo-bumbá na rua. 

“A cultura não enriquece ninguém. Precisamos fazer valorizar a cultura, mas precisamos nos valorizar Meu pai foi um grande colocador de boi e morreu pedindo esmola”, 

relembra Damasceno.

Apresentação de Búfalo-Bumbá no Marajó. Foto: Divulgação/Agência Pará

Hoje, o trabalho do Mestre Damasceno foi reconhecido e ele consegue ter um retorno mínimo realizando shows, vendendo os CDs, captando verbas através de editais, aliado ao valor da aposentadoria. Mas a situação de sua comunidade quilombola do Salvá lhe preocupa. “Não adianta eu tá aqui com a barriga cheia e eles lá na miséria, eu conheço a realidade”, afirma emocionado, na entrevista realizada pela reportagem do Nonada Jornalismo, durante a viagem ao Rio de Janeiro.

O nome do quilombo tem origem pela forte presença de uma planta chamada Salvá. “Essa época de maio elas estão floridas. Tu olhas, elas colorem o campo, tem de toda cor. Azul, amarela, vermelha”, explica o mestre. São nove famílias presentes na comunidade quilombola, que ganhou a titularidade no ano de 2016.

Damasceno tem 9 filhos e se descreve como um pai presente e carinhoso. Casado, ele está prestes a completar 69 anos de idade. Foi criado pela avó, Raimunda Ramos, que lhe ensinou poesia. Neto de uma indígena e de um homem negro, que foi escravizado e vendido no mercado do Ver-o-peso, em Belém, brincou de boi-bumbá quando criança, e aos 19, se tornou colocador, como são chamadas as pessoas que organizam a brincadeira nos municípios amazônidas e paraenses.

O tradicional cantor de samba-enredo Wander Pires, que defendeu o samba da Tuiuti no ano de 2023, conta que não conhecia o mestre Damasceno, mas ficou encantado com sua trajetória. “Sinceramente eu não sabia, né? Eu fui entrando na história, conforme eu fui cantando. Quando chegou na parte do Mestre Damasceno eu falei: esse é o mestre da nossa cultura? É o rei da nossa cultura? Para mim soa uma coisa maravilhosa”

. Um dos momentos fortes da música é quando o cantor repete, com ritmo, a frase: “Chama, chama o Mestre Damasceno”.  

Adaptado do Boi-bumbá, o búfalo-bumbá faz uma brincadeira com o búfalo, comum na Ilha do Marajó. Foto: Guto Nunes/Reprodução

Chama o mestre Damasceno pra brincar de búfalo-bumbá 

A criação do primeiro afigurado similar ao búfalo foi no ano de 89 com o boi Bela Prenda, conta Damasceno. A nomenclatura búfalo-bumbá surgiu durante as gravações do documentário ‘Mestre Damasceno – O Resplendor da Resistência Marajoara’, no ano de 2012. Trata-se de uma peça teatral do gênero musical e com a presença de características do teatro de rua. O mestre também já escreveu e colocou outros brinquedos juninos nas ruas, como os pássaros.

“O búfalo-bumbá é uma brincadeira de uma raça de boi”, explica o mestre sobre o fato do Búfalo-bumbá ser oriunda da brincadeira do boi-bumbá, mais popular no estado do Amazonas, mas que também já acontecia na ilha do Marajó, no Pará. Mestre Damasceno é o autor dessas peças de teatro popular. Cria os enredos e as falas dos personagens. Também entende da criação do figurino. “Para colocar um boi na rua tem que estar bonito. O tecido é o cetim. E não pode ser um que na segunda apresentação está todo esticado”, alerta.

Como perdeu a visão aos 19 anos, em um acidente de trabalho, o mestre tem muitas memórias do tempo que enxergava. Sabe diferenciar tipos de pássaros, búfalos, peixes e plantas. Tem uma ótima memória e habilidades com os números, e conhecimento vasto em inúmeros temas. Mestre Damasceno conhece o mundo através de seus outros sentidos e isso auxilia em sua criação. “Eu tenho um pessoal lá em Salvaterra de confiança que conta como está pra eu saber”, explica Damasceno, sobre o fato de precisar de alguém que descreva as cenas, localização dos personagens e cores de figurinos.

Os enredos do bufálo-bumbá são comédias com críticas sociais. Tem a presença do gebrista, um ladrão dos campos do Marajó que nessa história, por necessidade, rouba os búfalos das sinhazinhas. Outros personagens, como os pajés e os vaqueiros, aparecem para descobrir quem foi o autor do roubo. No final, por haver uma criança no grupo, os ladrões são perdoados e o bufálo-bumbá se despede.

Foi no ano em que pensava em desistir de brincar de boi, próximo dos 50 anos, que Mestre Damasceno conheceu o produtor e cineasta, Guto Nunes. A trajetória dos dois artistas se cruzam. O mestre conta que Guto apareceu com uma câmera pequena na mão. O encontro, no primeiro momento, deixou Damasceno aborrecido, pois o mestre vivia uma fase desacreditada e já não queria mais falar com pesquisadores. Foi preciso insistência do cineasta para que o diálogo tivesse início. Atualmente a realidade é outra, e o brincante tem na pessoa do Guto um profundo sentimento, “Eu gosto muito do Guto, ele me encontrou”, conta o mestre.

Grupos de carimbó ocupam a Lapa com a chegada do mestre Damasceno. Foto: Kleyton Silva/@kleyton.silva.1984

Guto Nunes afirma que este trabalho não se atém somente às inserções na mídia, mas também na Academia, onde iniciou a trajetória de parceria com mestre Damasceno. Em 2013, Guto escreveu uma dissertação sobre a vida e obra do mestre no programa de Comunicação, Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia (Unama).

“Quando a gente começou a fazer contato com a Paraíso do Tuiuti, percebemos que eles tiveram acesso não só pelo conteúdo audiovisual, mas também pelo Instagram, YouTube, enfim. Eles tinham acesso a tudo, né? Todos os artigos, todas as produções, eles já tinham lido, já tinham assistido. Então é fundamental a gente produzir conteúdo. De qualidade e com escuta”, explica o cineasta e parceiro do Mestre Damasceno. 

E quem vai dizer que ele não é um campeão ? 

A primeira vitória do mestre como colocador de boi foi aos 19 anos, logo após ter se tornado pessoa com deficiência. Conheceu o braile após os 60 anos, não foi instruído sobre orientação e mobilidade. Porém, aprendeu a mobilidade de forma autônoma e hoje é possível vê-lo caminhar sozinho pelas ruas de Salvaterra, assim como outras tarefas cotidianas.

Mestre Damasceno tem quatro álbuns gravados. Em 2013. gravou “Poesia e Reflexões”, com 11 canções em um projeto de uma escola municipal de Soure. No ano de 2020, produziu o álbum “Canta o Encanto do Marajó”, com 10 músicas, realizado através de recursos próprios e apoio de amigos, em um estúdio de Salvaterra. Em 2021, gravou Encontro D’água, que teve participação especial de Dona Onete na faixa Feira do Veropa, com apoio da Lei Aldir Blanc. Em janeiro de 2023 acaba de lançar o álbum Búfalo-Bumbá.

A previsão é que o novo álbum, chamado de “Chegou meu boi”, com os ritmos carimbó, banguê e búfalo-Bumbá, seja lançado em abril deste ano. Mestre Damasceno é intérprete de lundus, xotes e os demais ritmos que já foram citados. “Se tu colocar brega pra eu cantar eu canto, só tem que chamar gente pra me acompanhar”, desafia Mestre Damasceno. Outra promessa para o ano de 2023 é colocar em junho o búfalo-bumbá nas ruas.

A partir do enredo, a comunidade do Tuiuti tomou conhecimento quem era Damasceno. No dia do desfile o mestre transitou na Sapucaí com o devido reconhecimento que um mestre da cultura popular merece. Muitos tiraram fotos e se emocionaram ao encontrá-lo. Foi o caso da passista carioca Ana Paula Castro. “Eu acabei me aprofundando e conhecendo o Mestre Damasceno, por pesquisa mesmo na internet. E quando eu o vi aqui pensei: eu não perco essa oportunidade de registrar esse momento por nada”, contou a passista.

Foram muitas experiências novas para o mestre Damasceno para além do reconhecimento nas ruas. Ele fez um carimbó em uma barraca em Copacabana, tocou duas vezes no espaço cultural Atêlie Bonifácio e gravou o clipe da música Beleza Rara, com participação dos grupos Aturiá Carimbó, Movimento de Carimbó do Rio de Janeiro, Chama do Amor e Carimbó Flores e Alegria.

Mestre Damasceno é recebido com festa em Salvaterra. Foto: Kleyton Silva/@kleyton.silva.1984

Segundo os artistas, atualmente há um movimento de carimbó na cidade do Rio de Janeiro. “A vinda do mestre causou um frisson, né? Todo mundo queria saber onde o mestre estava”, opina a carimbozeira Andreia de Vasconcelos, que integra o grupo Aturiá Carimbó e ensina a dança do carimbó. “Tuiuti fez nosso Mestre brilhar, tornando-o reconhecido no país inteiro, inclusive entre seus próprios conterrâneos que não o conheciam. Os mestres e mestras são nossos tesouros da cultura popular e estão ‘escondidos’, abandonados. Às vezes é preciso uma escavação arqueológica cultural para encontrá-los. Outros precisam simplesmente de justiça social mesmo”, finaliza a professora.

A Tuiuti concluiu sua participação no Carnaval de 2023 no 8° lugar. Mas quem vai dizer que o mestre não é um campeão? Quando retornou para o Camará, o porto de Salvaterra, as lágrimas escorreram no rosto do mestre. A comunidade o recebeu desde a chegada e o acompanhou no desfile do carro aberto. Aplausos, gritos e comoção, finalizando com uma cerimônia com alunos da escola municipal.

Na análise do professor e comunicador de Salvaterra Dário Pedrosa, Mestre Damasceno retornou ao auge das suas atividades culturais, assim como em meados dos anos 80, onde venceu vários concursos de bois bumbás em Salvaterra e Soure. “A retomada de Mestre Damasceno como referência forte para a nossa cultura popular, em meio à nossa própria comunidade, vem a se consolidar. Seu retorno a Salvaterra remonta o auge da sua fama, ao ser ovacionado pelas ruas da cidade, com os moradores vindo a frente de suas casas, acenando, sorrindo, chorando, pulando de alegria ao ver de perto, novamente, aquele homem cego que, antes, andava tranquilamente pelas ruas da cidade, a pé, e pouco era notado. Agora com status de celebridade, Mestre Damasceno recebe um reconhecimento emocionado e caloroso”, descreve o comunicador.

Os guias de Damasceno já tinham o avisado que não traria a vitória da Sapucaí, mas em sua análise, são inúmeros os ganhos. ” Eu achei bom demais. Ei, o mundo não vive só de vitórias. A gente veio aqui ser homenageado. A gente não perdeu, porque a gente não caiu, e só o direito de pisar na Sapucaí já me deixa satisfeito”, comemora o mestre.

*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Nonada Jornalismo, escrito por Roberta Brandão

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