Conheça a história do ‘Auto do Boi’ e como se adaptou ao Festival de Parintins

O auto do boi no Brasil inclui personagens centrais da colônia, como o amo do boi, o Nêgo Chico e a Catirina, e o indígena, este incorporado ao longo do tempo.

O Festival Folclórico de Parintins, no Amazonas – que ocorre todos os anos no último final de semana de junho, considerado uma atração turística da cidade –, é uma apresentação a céu aberto com participação de várias associações folclóricas. O ponto alto da festa é a competição entre os dois bois folclóricos: o Boi Garantido e o Boi Caprichoso. Nas três noites, eles protagonizam a exploração de temáticas regionais como lendas, rituais indígenas e costumes dos ribeirinhos através de alegorias e encenações.

A tradição deste festival, iniciado em 1965, tem trazido contribuições sociais para a afirmação de um sentido de identidade regional que ocorre por meio da ressignificação do evento. “Essa ressignificação substitui o arquétipo de morte e renascimento pela chamada celebração folclórica, visto que o boi-bumbá parintinense hoje não morre mais e, portanto, não ressuscita”, conclui Rui Manuel Sénico Carvalho em estudo de doutorado defendido no Instituto de Artes (IA) – em 2014.

Segundo o pesquisador, que é mestre em música, faz parte dessa mudança a exaltação de personagens regionais como o indígena e o caboclo, que atuam como protótipos de discursos e conferem uma nova configuração estética ao festival.

Rui conta que escolheu esse assunto pela sua originalidade, já que o Amazonas é pouco estudado em etnomusicologia.

“Creio que uma pesquisa relacionada com a região poderia instigar o conhecimento sobre uma parte do Brasil singular, muito rica do ponto de vista cultural”.

O boi-bumbá, afirma Rui, faz parte de uma manifestação muito arraigada no folclore do país. “Tipifica-se na atualidade como uma manifestação cultural popular amazonense. No entanto, o auto do boi remete aos primórdios do Brasil e está presente em diversas regiões”, contextualiza.

O que afinal é o auto do boi?

É uma encenação que conta a história da negra Catirina que, grávida, desejou comer a língua do boi mais estimado pelo dono da fazenda em que morava. Para atender o seu desejo, Pai Francisco, esposo de Catirina, matou o melhor animal de seu patrão e, em seguida, fugiu. Perseguido, pediu socorro ao padre, que o auxiliou e fez ressuscitar o boi, para alegria e comemoração de todos na fazenda.

Alguns estudiosos apontam Portugal como a origem do auto do boi. Existem muitas similaridades com um folguedo que existia nos arredores de Lisboa até o século 19. Outros sugerem a África Subsaariana (região do atual Senegal) como a origem do bumba-meu-boi brasileiro, manifestação da qual o boi-bumbá parintinense atual deriva.

O auto do boi no Brasil inclui personagens centrais da colônia, como o amo do boi (branco, geralmente português), o Nêgo Chico e a Catirina (negros), e o indígena, este incorporado ao longo do tempo. “Eram três grupos em constante interlocução cultural e, ao mesmo tempo deculturados, face ao gestar de uma nova situação antropológica que emergia no país. À sua maneira, o auto do boi aborda a questão da identidade cultural no Brasil”, constata o pesquisador.

A tese, orientada pelo docente do IA José Roberto Zan, aborda um recorte geográfico temporal específico: ele não descreve a geografia do boi e as implicações mitológicas. “O surgimento do culto do boi acontece no mesmo período em que passa a dominar o ciclo agrário no Oriente Próximo e a relação do chifre do animal com o quarto crescente lunar, bem como com o arquétipo de morte e ressurreição”, situa.

O pesquisador cita Câmara Cascudo, segundo quem o bumba-meu-boi tornou-se o primeiro auto com caráter nacional, na medida em que assimilou, reconfigurou e transformou heranças das diversas matrizes do mosaico étnico da nação brasileira, gestada a partir de 1500. “Apenas posso suspeitar que o complexo mítico do boi, em alguma de suas variantes, já era conhecido pelos contingentes de mão de obra escrava da África, importada para o Brasil, bem como pelos portugueses que para cá migraram”, declarou o folclorista.

Confira um vídeo que explica a origem do ‘Auto do Boi’:

Na trilha do boi

Rui realizou o trabalho de campo em Parintins e em Manaus. Esteve em dois festivais na ilha e presenciou a Alvorada do Garantido, quando o boi sai em cortejo na noite de 30 de abril para o primeiro de maio, inaugurando a temporada anual do boi em Parintins. “Entrevistei intervenientes no processo de elaboração do boi, o que foi muito elucidativo e enriquecedor para a minha pesquisa”, expõe.

Em Manaus, ele entrevistou mestres de boi-bumbá da vertente tradicional da representação do auto e músicos que criam as sonoridades da festa, compositores de toadas e mediadores culturais que constroem a narrativa-mestra do Festival Folclórico de Parintins.

Rui observou como o evento era planejado e como captava a participação popular. “Se por um lado, os mediadores culturais ‘inventavam uma tradição’, por outro, a participação popular legitimava o aspecto folclórico da festa, emprestando-lhe sua identidade primária”.

Essa circularidade, entre a invenção de uma tradição e a satisfação de uma necessidade sentida, ressalta ele, consumava o gozo das pequenas diferenças – o caráter afirmativo do senso de identidade regional que se manifesta no evento.

A leitura de trabalhos anteriores foi enriquecedora para Rui, embora não houvesse nenhuma pesquisa no campo da etnomusicologia. Mas esses trabalhos não descortinaram um aspecto vital para a compreensão do boi-bumbá parintinense contemporâneo, que é a total obliteração do arquétipo morte e renascimento do boi.

De outra via, o músico notou que nenhum dos trabalhos se referia ao significado e ao papel da celebração folclórica, que foram inseridos na reconfiguração estética do festival a partir da década de 1980. E, por fim, há que se destacar a inserção da figura inventada do “índio” no Festival, o que tem por finalidade relacionar o folguedo com uma suposta ancestralidade “indígena”.

Os dois protótipos da regionalidade, revela, são o índio, que prefigura a ancestralidade do amazonense, e o caboclo, que é uma construção simbólica urbana do homem que, ao inserir em seu universo aspectos da civilização trazida pelo europeu, concretiza o caminho entre o índio pré-civilizado e a civilização. “Essas são as personagens exaltadas no folguedo que pretendem conferir um sentido de identidade ao evento”, repara.

As toadas analisadas em trabalho de campo foram obtidas no próprio festival ou com mestres de boi-bumbá, em Manaus. Outras toadas de cunho mais “tradicional”, como as de Lindolfo Monte Verde, fundador do Garantido, foram transcritas de um CD de toadeiros parintinenses, gravado em 2010. Tais composições foram selecionadas por esses toadeiros a partir da tradição oral popular de Parintins e retrabalhadas para a gravação.

“As toadas de cunho mais pop (Vermelho, Tic,Tic,Tac, Canto da Mata) foram transcritas por mim a partir de gravações de apresentações ao vivo, ou de programas de auditório, obtidas no YouTube, e sua análise tem em vista comparar as mudanças operadas no gênero, como parte de um processo de afirmação identitária”, esclarece. “Assim, ao colocar em perspectiva as diferentes toadas, abrangendo um período de cerca de 50 anos, é possível identificar algumas das mais significativas alterações pelas quais o gênero passou.”

A pesquisa começou em agosto de 2006 com a coleta de textos sobre o assunto, antes mesmo de Rui ter ingressado no doutorado, em 2010. As toadas analisadas têm uma abrangência de mais de meio século. “O estudo dos aspectos relacionados ao boi levou-me até a Pré-História”, assinala.

Uma pesquisa em etnomusicologia é bastante abrangente. Por isso, o pesquisador se debruçou sobre a história do Norte, do Brasil-Colônia, do período da Independência e sobre aspectos relacionados com antropologia cultural, mitologia, sociologia e a história do Amazonas em particular.

Rui situa que esse estudo procura ajudar a entender por que a ressignificação do Festival Folclórico de Parintins tem como finalidade gerar um sentido de afirmação identitária regional. O processo agrega um trabalho conjunto entre os que formulam a festa, o poder público, quem a organiza e os brincantes, que dão cor e movimento ao folguedo. “Passei a enxergar, sob a ótica de pesquisador, um tema que se desenrolava numa ilha no meio do Rio Amazonas. Sem nenhuma intenção de cunho essencialista, eu percebia que ressoava algo que nos remetia a um passado muito distante, na história comum da humanidade”.

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Unicamp

**O vídeo é uma produção do Governo do Amazonas

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