Cerâmicas milenares da Amazônia unem comunidades e cientistas em arqueologia “parente”

Pesquisa da USP com comunidades tradicionais no Amazonas envolveu moradores e trabalhadores ribeirinhos na valorização dos achados arqueológicos; trabalho foi premiado pelo Iphan

O educador e museólogo do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, Maurício André da Silva, venceu o 11º Prêmio Luiz de Castro Faria na categoria Tese com o trabalho ‘Abordagens educacionais para uma arqueologia parente com comunidades tradicionais da RDS Amanã e da Flona Tefé, Amazonas‘. Promovido pelo Centro Nacional de Arqueologia (CNA), unidade especial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o concurso reconhece pesquisas acadêmicas de excelência com temática relacionada ao patrimônio arqueológico brasileiro

A pesquisa foi desenvolvida com base nas relações de compadrio, realidade das comunidades ribeirinhas que vivem cotidianamente em um território milenar, repleto de evidências da Tradição Polícroma da Amazônia. Na unidade de conservação Amanã e na Floresta Nacional de Tefé, a terra esconde cerâmicas datadas de até 3 mil anos antes do tempo presente – em torno de mil anos antes da Era Cristã.

“Aqui você não é parente, mas se você ficar, vai se tornar”, foi uma frase muito escutada pelo pesquisador durante o período em que atuou com ações de educação patrimonial voltadas para o público escolar. Segundo Silva, a socialização do patrimônio arqueológico já era uma demanda antiga de famílias que buscam conciliar a conservação ambiental e o desenvolvimento humano. O desafio de quem vem de fora é o de “ensinar aprendendo”, fazendo com que ciência e conhecimento tradicional dialoguem.

Maurício Silva e Maria Ana Vitor, da comunidade Tauary, validando a pesquisa. Foto: Rubana Palhares/cedida pelo pesquisador

“Atuei por meio da escuta das histórias de vida de lideranças mais velhas, de professoras e professores, pescadores, artesãs, ex-seringueiros, entre outras pessoas. As comunidades nos convidam a fazer uma arqueologia que leve em consideração as famílias e suas histórias, que estão sobre e nos entornos dos sítios arqueológicos”, 

descreve em seu trabalho.

Maurício Silva conta que os arqueólogos são apontados por essas comunidades como “pessoas que amam os cacos”, embora os materiais encontrados em seu território também sejam valiosos internamente. “Eles acionam esse material para identificar uma identidade, um tempo da memória. E também há um interesse em estabelecer um turismo de base sustentável, já que o local pode ser considerado um ‘ecomuseu’ a céu aberto”, diz.

Vasilhas arqueológicas aflorando na comunidade de Boa Esperança, 2017. Foto: Adriano Gambarini/Cedida pelo pesquisador

Escavação de urnas funerárias na comunidade de Tauary, 2018. Foto: Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá/Cedida pelo pesquisador

Boa Esperança e Tauary 

A comunidade de Boa Esperança está localizada na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Amanã, e a de Tauary, na Floresta Nacional (Flona) de Tefé, ambas no Médio Rio Solimões, Estado do Amazonas. A RDS Amanã foi criada em 1998 por decreto estadual após pressão de cientistas e da comunidade local, que demandavam a proteção das áreas e uma melhor qualidade de vida das famílias.

De acordo com o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá – entidade vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações –, o território é protegido pelo poder público para conservar a biodiversidade, as paisagens naturais, as formas de manejo e o modo de vida de populações tradicionais, que zelam pela floresta através de práticas sustentáveis.

“São comunidades que foram formadas a partir do encontro dos migrantes da borracha, do final do século 19 e começo do 20, com as populações indígenas locais. Suas vidas e memórias estão misturadas com esses espaços que são arqueologicamente muito ricos”, afirma Silva. O pesquisador lembra que o Instituto Mamirauá já identificou mais de 100 sítios arqueológicos na região.

“No caso de Boa Esperança, por exemplo, ela está em cima de um sítio arqueológico de 30 hectares. É um sítio gigantesco e que tem uma parte, também, que é uma área de depósito de urnas funerárias. A gente pode falar que se trata de uma área sagrada para esses povos indígenas do passado, e essa comunidade mora em cima da boca das urnas. Elas afloram pelos caminhos da comunidade”, explica o pesquisador.

Localização das Unidades de Conservação RDS Amanã e Flona Tefé. Elaboração: Eduardo Kazuo Tamanaha/Cedido pelo pesquisador

Já a comunidade de Tauary, localizada no entorno da Flona Tefé, foi fundada na década de 1980. Anteriormente em uma área de seringal e com a falência da economia da borracha, as cerca de 20 famílias que compõem a comunidade vivem, em sua maioria, de agricultura, pesca e coleta de produtos da floresta. A comunidade foi estabelecida de frente para o Rio Tauary, cujo nome se origina de uma árvore amazônica, o tauari. Em relatos, os mais antigos contam que a árvore de tauari serve de casa para o curupira, na mata.

“Especialmente na comunidade de Tauary, todos os elementos para a criação de um museu comunitário de referência para a Amazônia estão ali. Isso se deve especialmente ao rico contexto local e à valorização das memórias, na qual a arqueologia se tornaria mais um elemento, entre tantos outros”, aponta o museólogo.

Um dos resultados do processo de pesquisa de Silva foi o lançamento de um material didático para apoiar o ensino local, além de servir como recurso didático para educadores de todo o País. “Compreendi que a ‘arqueologia parente’ não é somente uma nova adjetivação para uma prática já realizada, mas reconhece o caráter pedagógico de uma arqueologia com as pessoas”.

Para o pesquisador, uma das marcas mais relevantes de sua passagem pelas comunidades com quem trabalhou é o contato que ainda mantêm. “Essa região foi muito afetada pela seca, então a situação está muito difícil”, relata. Uma campanha foi criada para atender às famílias com emergências mais graves, como falta de acesso à água potável e saúde básica.

*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Jornal da USP, escrito por Tabita Said

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