Foto: Denny Moore/Acervo pessoal
Em meio à floresta densa de Rondônia, assobios atravessam a mata, agudos e precisos. Não é o canto de um pássaro nem o chamado de um animal, é alguém “falando”.
Esse é o idioma assobiado dos Ikolen, também conhecidos como Gavião de Rondônia, um povo indígena pertencente à subfamília Tupi-Mondé da grande família linguística Tupi.
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Mais do que um meio de comunicação, a fala assobiada representa um patrimônio imaterial fascinante, ainda pouco conhecido do grande público, mas que impressiona por sua sofisticação e engenhosidade.
Diferentemente dos idiomas orais convencionais, a fala assobiada dos Ikolen reproduz, por meio de assobios, os tons e ritmos das palavras de sua língua. Essa forma de comunicação exige domínio da entonação e do contexto, já que muitas vezes uma única série de sons pode assumir significados diferentes, dependendo da situação em que é usada.
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Segundo o linguista Denny Moore, do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), que estuda os Ikolen desde 1975, “a língua de assobios é como a fala normal, mas você assovia em vez de usar as cordas vocais. A frequência do som é determinada pela altura em que a língua alcança na boca”.
A fala com assobios é especialmente útil em ambientes ruidosos, como a floresta, ou em situações que exigem discrição, como em caçadas. Animais não reconhecem o som como humano, o que oferece vantagem aos caçadores indígenas.
Durante confrontos com inimigos ou em emboscadas, o assobio era usado como código, confundindo até mesmo os colonizadores que o confundiam com o canto de pássaros.
O termo ‘Ikolen’ significa, em sua própria língua, ‘gavião’, nome que reflete tanto sua identidade quanto sua ligação simbólica com a natureza. Para distingui-los de outros grupos com nomes semelhantes, como os Gavião Parkatêjê (Pará) e os Gavião Pykopjê (Maranhão), a designação ‘Gavião de Rondônia’ passou a ser utilizada.
A confusão histórica com o nome ‘Digüt’, registrado por um antropólogo que confundiu um nome pessoal com o nome do grupo, também é parte da trajetória de contato dos Ikolen com o mundo não indígena.
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Assobios são motivo de orgulho
Atualmente, apesar da redução no uso cotidiano da fala assobiada, ela não desapareceu. Segundo Moore, a prática ainda é ouvida nas aldeias, especialmente durante a noite, em que é possível escutar pessoas conversando assobiando de uma casa para outra.
O linguista conta que hoje há um novo orgulho entre os jovens indígenas em relação à língua. “Antigamente, sentiam vergonha porque os brancos zombavam. Hoje, nos eventos educacionais, eles demonstram o idioma com orgulho e deixam os visitantes de boca aberta”, disse ao Portal Amazônia.

Preservação digital
O Museu Goeldi mantém um vasto projeto de documentação linguística e cultural em colaboração com os povos indígenas da Amazônia. Através do programa Seneca, gravações em áudio e vídeo de línguas indígenas, incluindo a fala assobiada, são preservadas digitalmente, com participação ativa dos próprios indígenas no processo.
“Temos gravações em alta qualidade, feitas pelos próprios indígenas treinados por nós. São centenas de horas de vídeo e áudio documentando desde técnicas tradicionais até os usos específicos das línguas”, relata Moore.
Esse esforço tem sido fundamental para valorizar a língua e cultura indígenas, sobretudo entre os jovens. “Quando eles veem a complexidade registrada, a autoestima aumenta. A percepção externa também muda: os brancos ficam impressionados ao descobrir o quanto essa forma de comunicação é sofisticada”, completa o linguista.
A fala assobiada além dos Ikolen
Os Ikolen não são os únicos a manter os assobios como tradição sonora. Povos como os Zoró, aliados dos Ikolen, e os Paiter (Suruí), ex-inimigos, também utilizam formas assobiadas de linguagem, principalmente durante a caça. Segundo Moore, há relatos semelhantes entre outros grupos da Amazônia, como os Makuráp, embora o uso seja mais restrito e pouco documentado.
Línguas tonais como as dos Gavião, do chinês ou do iorubá são mais propensas à fala assobiada, pois dependem da variação do tom para definir o significado das palavras.
“Europeus muitas vezes não percebem essas sutilezas, mas indígenas, africanos e asiáticos sim. Isso mostra como a percepção sonora é culturalmente moldada”, explica o especialista.
Confira um artigo de Moore sobre o povo Ikolen:
