Hoje aqui em Araí e debaixo de uma mangueira revisitei minha infância, minha história, minha trajetória e minha identidade, a qual é de “Bicho do Mato”.
revisitei minha infância, minha história, minha
trajetória e minha identidade, a qual é de “Bicho do Mato”.
testemunha (KOSSOY, 2021) a imagem anterior.
Então, foi em meio aos pingos dos chuviscos que eu e Miroca garantimos naquela manhã um paneiro abarrotado de mangas, muitas delas eram, como dizem os araienses, oriscas.
Antes de prosseguir, preciso dizer que sou nativo da comunidade de Araí, de onde migrei faz mais de 30 anos para Ananindeua, região metropolitana de Belém, lugar onde também moro ainda hoje. Digo também porque vivo ora em Ananindeua ora na querida Araí.
Certamente, é onde estão meu coração, minhas histórias e minhas memórias afetivas e quiçá as gustativas, aquelas que mais contam sobre mim, as quais emanam das minhas experiências vividas, outrora, lá, em minha querida Araí, a qual está geograficamente localizada no meio rural de Urumajó (hoje Augusto Corrêa), na Amazônia Atlântica, do nordeste paraense.
Dentre as experiências vivenciadas quando criança em Araí, certamente aquelas atravessadas pela manga marcam saborosamente minha trajetória, povoando de modo muito singular minhas memórias gustativas e afetivas, as quais, hoje e debaixo da mangueira do Ricarlos foram deliciosamente acionadas, fazendo-me lembrar de como as mangueiras e as mangas figuravam emblemáticas vivências que emaranhavam meu viver, conforme descrevo
no que segue:
Durante o inverno amazônico, que, com regularidade, ocorre de janeiro a junho, costumávamos (eu, minhas irmãs, irmãos primos etc.) madrugar, acordar bem cedinho, às 5h da manhã. Madrugávamos com um propósito já acordado no dia anterior, a saber, para juntar manga nas mangueiras que lindamente “povoavam” os quintais de muitas casas da comunidade. Dentre essas mangueiras havia uma que ocupava lugar primeiro em nossa preferência, falo da mangueira do tio João. Essa preferência tinha razão de ser: era a mangueira que nos oferecia as mais desejadas e saborosas mangas: as oriscas, ou seja aquelas que, de tão maduras, se mostravam amarelinhas, indicando que estavam próprias para serem degustadas, mas não de qualquer maneira: por essas paragens da Amazônia as mangas oriscas são saboreadas ora com farinha (imagem 5) ora, como dizem os araienses, elas são chupadas.
Juntar mangas era uma deliciosa tarefa, permitindo-nos não apenas assegurar a merenda do dia, mas também nos proporcionavam vivências marcadas por momentos de intensas brincadeiras e felicidade e, por vezes, algumas peraltices, como, por exemplo, quando “roubávamos” as mangas do tio João de sobre o seu jirau. É que, como ele sabia que nós iríamos às cinco horas, ele acordava antes de chegarmos e juntava as melhores mangas e as escondiam em um paneiro que era guardado sobre o jirau. Descobrimos o esconderijo e levávamos, algumas; as melhores.
Afora isso, costumamos apanhar as mangas escondidos da proprietária da mangueira, lembro muito bem fazíamos isso na mangueira da dona Luiza, pois ela não gostava de dividir suas mangas. Então, aproveitávamos o momento em que estava na sua madorma (cochilo costumeiro dos araienses, após o almoço). Enquanto dona Luiza cochilava, arrumávamos uma vara cumprida e de galho em galho íamos cutucando as mangas oriscas, garantindo a “boia” do dia. Até que por um descuido nosso, talvez, um barulho das quedas das mangas ou até mesmo das cutucadas, dona Luiza acordava e, muito brava, coloca-nos para fora de seu quintal. Deixávamos o pé de mangueira às carreiras e com muitas risadas.
Outras saborosas experiências figuravam-se quando comíamos manga verde. Esse costume alimentar era corriqueiro e tinha a competência de juntar em uma roda comensal debaixo da mangueira um número significativo de crianças, as quais com uma cuia com sal e algumas mangas verdes garantiam a merenda daquele dia, regada a muitas brincadeiras, conversas de criança e muitas caretas, estas últimas provocadas pelo azedume que é próprio das mangas verdes.
Ao que parece, as experiências performadas com e pela manga na minha infância em Araí podem ser pensadas como fenômenos comensais, que, ao serem coletivizados, afetaram e quiçá afetam os modos de viver do povo paraense, particularmente daqueles que povoam os territórios amazônidas e caboclos do nordeste paraense, como a comunidade de Araí. Outros sujeitos em outros territórios contam sobre os atravessamentos das mangueiras e suas mangas, conforme pode ser notado nas narrativas de André Mariano, professor de sociologia e morador da cidade de Castanhal e de Ana Maria, também professora socióloga e moradora da vila de Americano, no município de Santa Izabel, nordeste paraense.
Quando a gente era criança, meu pai trabalhava com casa de farinha e ele vendia farinha pra uma senhora que morava em Belém, a dona Mocinha. Dona mocinha trazia de paneiro de manga comum pra gente (manga comum é como chamam os paraenses para as mangas que são mostradas neste ensaio) e a gente comia com farinha. Na época a manga comum era difícil aqui em Americano. Também lembro de outra história; a gente tinha um vizinho que tinha uma mangueira grande no quintal dele e ai caia pro lado do nosso quintal os galhos cheios de mangas e a gente juntava as mangas que caiam em nosso quintal. Mas quando o vizinho brigava com a gente, ele ia e cortava os galhos que estavam no nosso quintal, isso pra não pegarmos as mangas dele” (Conversa com Ana Maria, em 10 de abril, 2023).
Morava ali próximo ao terminal e nessa época as ruas não eram asfaltadas, os quintais não tinham muro, pouquíssimos tinham muro, A maioria tinha cerca, aquelas feitas com estaca e arame. A gente tinha, a molecada, o hábito de tá entrando nos quintais, entra num, entrava noutro, pra roubar frutas. Aquilo uma tradição nossa. Tanto é, que a gente já tinha um lugar pra passar pro quintal, já sabíamos o lugar pra passar. Já íamos lá, abria o arame, tirava a estaca e entrava. E, quanto mais perigoso, melhor era a fruta, parecia, ne. Tinham várias frutas, mas a manga verde é que era a história, né. Comia a manga verde com sal à vontade, nesse tempo. Depois, na adolescência, a história mudou, já era a manga verde com um temperozinho: sal e pimenta do reino, aí já não era mais para comer a manga, era pra tira-gosto de cachaça.
(Conversa com André, em 03 de maio de 2023).
Certamente, comer manga constitui-se em um hábito alimentar dos paraenses forjado desde muito cedo, desde a infância, isso é notório nas imagens 6 e 7.
As experiências dos paraenses com a manga é histórica e não se limitam apenas aos territórios rurais. A capital, Belém, também é emaranha de vivências forjadas por mangueiras e mangas, as quais, ao povoarem a cidade, figuram singularidades a capital paraense de modo que ajudam a figurar as paisagens, ao desenharem túneis nas ruas da cidade (imagem 8), as sonoridades provocadas pelos barulhos das mangas que caem nas ruas, sobre os carros, por vezes sobre as cabeças dos transeuntes, outras vezes pelas quedas das mangueiras mais antigas (imagem 9). Neste último caso, as implicações podem resultar em prejuízos diversos, desde a interrupção da energia elétrica até o congestionamento do trânsito na cidade, transformandose em manchete das emissoras de televisão e dos jornais locais.
A presença da árvore marca de tal maneira a vida da cidade que a Belém foi atribuído um apetitoso epíteto de cidade das mangueiras.
Antes de findar, preciso relatar uma experiência que ajuda a entender os atravessamentos da manga na vida paraense e o lugar que ela ocupa em nossas experiências, falo de um certo dia, quando, ao terminar o recreio e, após alguns longos minutos, percebi que alguns estudantes não haviam retornado (sou professor de Sociologia da Educação Básica de Belém). Resolvi procurá-los, encontrando-lhes debaixo de um pé de mangueira que havia no quintal da escola (imagem 10 ).
Por fim, não seria exagero afirmar que, mas que um alimento, a manga é antes uma linguagem que comunica e marca as identidades amazônicas e paraenses de modo tal que por essas bandas do norte brasileiro não basta comê-la, como uma “obrigação”, é costume degustá-la com farinha (PICANÇO, 2021).
Referências
Kossoy, B. (2001). Fotografia e História. 2a edição. São Paulo: Ateliê Editorial. B., 2001.
PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito. Comida Cabocla, uma questão de identidade na Amazônia: desde uma perspectiva fotoetnográfica. Ed.1, Belém: Paka-Tatu, 2021.
Sobre o autor
Miguel Picanço é doutor em Ciências Sociais (PPGCS/UNISINOS/ PDSE/ODELA-Universidad de Barcelona) e pós-doutor em Antropologia da Alimentação: Alimentação, Patrimônio e Turismo (ODELA-Universidad de Barcelona).
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