Criança Manchineri de um ano é morta com tiro na cabeça no Acre

Caixão levando o bebê Manchineri. Foto: Divulgação/Cimi

Leudo Manchineri, um bebê indígena de um ano de idade, morreu após levar um tiro na cabeça enquanto o barco em que estava com os pais atracava no Porto da Feira, às margens do Rio Iaco, município de Sena Madureira (AC). Leudo dormia no colo da mãe; era por volta das 22 horas do dia 27 de março. Com sua família, o pequeno vinha da Terra Indígena São-paulina, onde agora está enterrado em um território tradicional não demarcado. Seus poucos pertences, algumas roupas apenas, desceram à cova em cima do caixãozinho branco.

De acordo com as investigações da Polícia Civil, que prendeu quatro envolvidos no assassinato, entre eles o atirador, os criminosos estavam no porto. A embarcação dos Manchineri se aproximou iluminando o caminho com uma lanterna. Um dos envolvidos gritou para os indígenas que se eles apontassem a lanterna novamente, levariam tiros. Sem ter como atracar no escuro, os indígenas usaram a lanterna e os disparos ocorreram acertando na cabeça o pequeno Leudo. Os criminosos tentaram fugir de táxi para Manoel Urbano, município vizinho.

A criança chegou a ser socorrida e levada para o hospital de Sena Madureira, mas não resistiu ao grave ferimento e morreu. O crime, no entanto, guarda relações com o ódio local disseminado pelos invasores da terra indígena. “Um grupo armado havia ido à aldeia com a intenção de matar o cacique, que se escondeu na mata. Numa segunda-feira, dia 27, quando assassinaram a criança, o cacique resolveu ir até a cidade de Sena justamente para denunciar a invasão da aldeia e a terceira tentativa de assassiná-lo”, explica o missionário indigenista Lindomar Padilha, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Amazônia Ocidental. Em um outro município do Acre, Santa Rosa do Purus, onde 80% da população é indígena, o cacique Thomas Huni Kui foi espancado a pauladas em fevereiro deste ano. Nas agressões contra o cacique, morador de aldeia na Terra Indígena Alto Rio Purus, estavam envolvidos os mesmos agressores que mataram o professor Carlos Alberto Domingos Huni Kui. Um dos envolvidos na morte, autor das pedradas que levaram o indígena à morte, foi condenado a 22 anos de prisão, em dezembro de 2016.

Em 2013, o Cimi realizou um censo em Sena Madureira e constatou que 36 famílias viviam “permanentemente” na cidade. Desde então, os indígenas começaram a considerar a possibilidade do retorno aos territórios tradicionais deixando a violência que sofrem na cidade, além da fome, alcoolismo, drogas e demais vulnerabilidades, caso da exploração sexual infantil já denunciada pela imprensa acreana. A volta às aldeias se intensificou a partir do final de 2016 e três famílias ainda vivem na cidade. A reocupação de áreas tradicionais (em alguns casos já com regularização), de onde foram expulsos pelo avanço das fronteiras agropecuárias na Amazônia, gerou conflitos com toda a sorte de invasores que enxergam “terra de índio como terra de ninguém”.  

“A volta das famílias às aldeias, e a abertura de novas, intensificou os conflitos, especialmente nas terras São Paolino e Kaiapuká. As duas terras se encontram invadidas por fazendeiros que querem expulsar os índios. No caso da Terra Indígena do Kaiapuká, ainda tem o agravante de o programa Terra Legal ter loteado parte da terra indígena e destinado a moradores não indígenas. Toda semana há caso de ataques contra os indígenas”, relata Padilha. Com efeito, em menos de dois meses o pequeno Manchineri foi morto e outros dois indígenas sofreram tentativas de homicídio.

Na última segunda-feira, dia 08, um caso de tentativa de assassinato. Desta vez foi contra o jovem Adecácio Jaminawa, de 18 anos. O indígena foi alvejado por vários disparos, mas somente duas balas o atingiram nos membros inferiores; uma bala ficou alojada na coxa, outra em uma das nádegas. Conforme a ocorrência policial registrada, o indígena caminhava pela Praça 25 de Setembro quando um carro da cor preta se aproximou. Homens armados saíram do veículo e dispararam na direção do jovem Jaminawa. A vítima foi ferida com dois disparos e encaminhada ao hospital da cidade sem correr risco de morte. Neste caso, os autores do crime não foram detidos e a apreensão é que os indivíduos possam voltar a procurar o jovem.

Neste caso, assim como o do bebê, a polícia trabalha com a hipótese de que esteja relacionado com um crime comum. Não é o que acredita os Jaminawa. “Ouvindo os indígenas, todos relacionam o crime ao processo de retorno às aldeias, inclusive o rapaz alvejado pelos tiros também foi para Sena Madureira, acompanhando o pai, para denunciar a invasão de uma aldeia da Terra Indígena Kaiapuká, onde a situação está muito tensa”, explica o missionário do Cimi.

No próximo dia 18, uma reunião com representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai), Polícia Federal, Ministério Público Federal (MPF), ICMBio, Terra Legal, indígenas e integrantes da sociedade civil ocorrerá como estratégia de solucionar os problemas que levam ao cenário de violência. “Em 2016, indígenas e não indígenas, após uma reunião com esses mesmos órgãos, assinaram um acordo, uma espécie de “termo de convivência”, mas que não está sendo cumprido por parte dos não indígenas. O ódio, o preconceito e os ataques aos territórios tradicionais seguem acontecendo”, diz Padilha.

Migração para Sena Madureira

Um grupo de crianças Jaminawa espreita atravessadores de banana, numa tarde chuvosa de fevereiro de 2012, em Sena Madureira (AC). Às margens do Rio Iaco, no Porto da Feira, homens passam de mão em mão dezenas de cachos da fruta, ainda verde, retiradas de barcos atracados para caminhonetes. Lépida, uma das crianças se desgarra do grupo e ataca uma banana que cai antes de chegar ao veículo. O atravessador, que faz contas num bloquinho de papel, também é rápido: chutando pedras contra o pequeno Jaminawa, tenta afastá-lo. O indiozinho enfrenta a chuva de brita e terra, pega a fruta e corre para sumir num beco.

Tal cena passou a ser comum a partir dos anos 2000, quando indígenas de diversos povos – Madja, Huni-Kui, Manchineri e, sobretudo, Jaminawa – passaram a viver na cidade que conta com quase 40 mil habitantes (IBGE, 2010). Estima-se que cerca de 400 famílias indígenas já chegaram a viver, entre idas e vindas, em Sena Madureira. A pressão sofrida nas áreas indígenas por agentes invasores, além de dinâmicas inerentes a alguns povos, que muitas vezes voltam para suas aldeias depois de um período fora (há casos envolvendo aspectos cosmológicos e religiosos), motivaram a migração para a cidade fundada sob a colonização seringueira – tanto de peruanos quanto de brasileiros.

No caso dos Jaminawa – uma unificação dos povos Xixinawa, Kununawa, Sharanawa, Yawanawá, Mastanawa, Bashonawa e Sharanawa – a falta de demarcação da Terra Indígena Sãopaolina, invadida por fazendas de gado, é o principal motivador da presença do povo em Sena Madureira. O Grupo de Trabalho da Fundação Nacional do Índio (Funai) para identificação e delimitação do território tradicional foi instalado em agosto de 2013, mas ainda não teve uma conclusão. Com informações do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

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