Covid-19 avança no AM e São Gabriel da Cachoeira sente impacto da crise em Manaus

Cidade é conhecida por ter a maior população indígena no país

O impacto do colapso do sistema de saúde em Manaus durante a alta de casos da Covid-19, com falta até mesmo de oxigênio em hospitais, está sendo sentido em São Gabriel da Cachoeira (AM), no Alto Rio Negro, cidade conhecida por ter a maior população indígena no país. Órgãos públicos e parceiros, como o Instituto Socioambiental (ISA), a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), os Expedicionários da Saúde (EDS), os Médicos Sem Fronteiras (MSF) e o Greenpeace estão mobilizados para evitar falta de oxigênio na cidade (leia mais abaixo). Além disso, a vacinação contra a Covid-19 foi iniciada pela Secretaria Municipal de Saúde (Semsa) no dia 19 de janeiro.


São Gabriel da Cachoeira, assim como a grande maioria dos municípios do interior do Amazonas  não tem Unidade de Terapia Intensiva (UTI), sendo que Manaus é a referência para casos graves. Ou seja, os pacientes com quadro agravado podem não conseguir remoção, pois o sistema da capital já não comporta nem mesmo a demanda local, com pessoas internadas tendo que ser transferidas a outros estados. Conforme boletim da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM), no domingo (24), havia 427 pacientes aguardando leitos em hospitais, 102 deles com necessidade de UTI.
Márcia Feitosa, da etnia Tariano, atua como enfermeira coordenadora do Plano Nacional de Imunização. Foto: Desana/Rede Wayuri

Em São Gabriel, em janeiro, boletins epidemiológicos divulgados pela Secretaria Municipal de Saúde (Semsa) apontam que nenhuma transferência foi realizada para Manaus. Isso em um momento grave da pandemia em São Gabriel, quando ocorreram no município nove óbitos pela Covid-19 somente neste ano. Como comparativo, nos meses de novembro e dezembro do ano passado, quando a alta de casos ainda não estava tão acentuada, houve remoções de pacientes até a capital.

Amigos de um paciente que está internado em estado delicado relataram que houve tentativa de transferência para Manaus e até para Boa Vista (RR), mas sem sucesso. O paciente continua internado em São Gabriel, lutando para se recuperar.

O presidente da Foirn, Marivelton Barroso, da etnia Baré, indica um outro grave problema, que são as interrupções de energia elétrica na cidade. Uma alternativa para a falta de oxigênio é o uso de concentradores, que são miniusinas do insumo. Mas esses equipamentos precisam de energia para funcionar. Como o serviço de eletricidade vem tendo interrupções, os aparelhos são desligados, deixando os pacientes sem oxigênio. A Amazonas Energia, que presta o serviço, foi procurada pelo ISA, mas não enviou resposta sobre o problema. O Comitê de Enfrentamento e Combate à Covid-19 em São Gabriel informou que pediu providências a representantes da companhia de energia.

“Manaus está colapsada e já sentimos os efeitos aqui, principalmente essa dificuldade para conseguir oxigênio. E, se alguma remoção for necessária, não se sabe se o paciente vai conseguir a transferência. Aqui não há suporte para casos mais graves. Já são nove mortes neste mês, índice muito alto. Nada compensa essas mortes. Nas comunidades também os casos estão subindo”, disse Marivelton Baré. 

Oxigênio doados pelos Expedicionários da Saúde e transportados pelo Greenpeace. Foto: Ana Amélia Hamdan/ISA

A liderança indígena acredita que uma possibilidade nesse momento de crise é o governo do estado providenciar uma alternativa de remoção para a população indígena que necessitar de tratamento especializado. “O interior do Amazonas não pode ficar à mercê dessa situação de crise. E ainda temos que conviver com esse problema de queda de energia”, reforçou o presidente da Foirn.

Médico do Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro (Dsei-ARN), Guilherme Monção, que está atuando na linha de frente desde o início da pandemia, alertou que a situação em São Gabriel da Cachoeira está no limite e só não é pior por causa dos concentradores de oxigênio. “A gente sente essa crise de Manaus em São Gabriel da Cachoeira, já que tanto hospitais públicos quanto hospitais particulares estão cheios. E também há dificuldade de se encontrar oxigênio. São Gabriel está no limite na questão de oxigênio. Temos que trabalhar com os concentradores. Sabemos que se a gente usá-los, não vamos ter mais”, lamentou. O Dsei-ARN vem contando com o apoio de parceiros para o abastecimento de oxigênio.

Ainda de acordo com o médico, a vacinação é primordial nesse momento, para formar uma barreira protetora e evitar os casos graves.

A única unidade hospitalar da cidade é o Hospital de Guarnição de São Gabriel da Cachoeira (HGuSGC). Respondendo a questionamento sobre a situação de remoção de pacientes para Manaus, no cenário de crise, o Comando da 12ª Região Militar – Exército Brasileiro informou, por meio de nota, que “o Hospital de Guarnição de São Gabriel da Cachoeira vem atuando em atendimentos e serviços de atenção à saúde dos civis e militares em todas as Unidades de Internação. No atual momento da pandemia, o Setor de Emergência teve um aumento no número de atendimento, no entanto permanece adequado o dimensionamento dos leitos disponíveis e a disponibilidade de oxigênio. A transferência de pacientes não vinculados ao Sistema de Saúde do Exército cabe ao governo do estado do Amazonas, sendo realizada por meio do Sistema de Transferência de Emergência Regulada (Sister) coordenado pelo estado. Os casos mais graves de Covid-19 são analisados e transferidos para outros hospitais selecionados pelo governo estadual.”

Conforme a Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (SES-AM), de 1º a 25 de janeiro foram inseridos no Sistema de Transferência de Emergência Regulada (Sister) oito solicitações para transferência de pacientes de São Gabriel da Cachoeira para Manaus. Dessas, ocorreram duas remoções, um óbito, três cancelamentos e duas remoções estão em andamento. Conforme o órgão, as remoções obedecem a critérios como a gravidade e condições clínicas do paciente para que seja realizado o transporte. Foi informado ainda que o estado tem hospitais em todos os municípios, sendo todos eles equipados com respiradores. No interior, a rede estadual conta com 1.155 leitos, sendo 152 Unidades Cuidados Intermediários (UCIs) com suporte ventilatório. 

Vacinação em Itacoatiara Mirim, primeira comunidade indígena em São Gabriel da Cachoeira a receber as doses Foto: Moisés Baniwa/Rede Wayuri

Segundo boletim epidemiológico divulgado no dia 24 pela Secretaria Municipal de Saúde (Semsa) de São Gabriel da Cachoeira, a cidade registrava até essa data 5.997 casos da Covid-19 e 68 óbitos, sendo que 40 pessoas estavam internadas. Em 1º de janeiro eram 5.029 casos e 59 óbitos, ou seja, somente neste mês foram confirmados 958 casos e nove mortes.

Nas comunidades indígenas também há alta de casos. Boletim da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) em 21 de janeiro indicava 2.132 casos e 15 óbitos em comunidades atendidas pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro (Dsei-ARN) nos municípios de São Gabriel, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos. Só neste mês foram 57 novos casos, com o registro de óbitos permanecendo estável. Já o Dsei Yanomami registrava 1.218 casos e 10 mortes. Neste mês foram registrados 44 casos, sem alteração na notificação de óbitos.

Esses números estão defasados, pois a atualização do cadastro depende de uma série de trâmites. A comunidade Yanomami Maturacá, por exemplo, viveu neste mês o luto pela morte de uma senhora de 74 anos. Ela chegou a ser transferida para São Gabriel, mas faleceu vítima da Covid-19. No Distrito de Iauaretê, a unidade de saúde local está com todos leitos ocupados desde o início de janeiro.

Na avaliação de profissionais dos Dseis, a situação nos territórios indígenas é de alerta “amarelo”, com demanda de monitoramento constante para evitar alta acentuada de contaminação pelo novo coronavírus e sobrecarga do serviço de saúde. É esperado que os casos aumentem nas próximas semanas nas comunidades, se o padrão observado na chamada primeira onda de avanço da pandemia se repetir agora.

Coordenadora da MSF em São Gabriel, a psicóloga Irene Huertas Martín informou que o aumento de casos pode estar ligado à circulação de uma nova variante da Covid-19. “Pode estar ligado sim, mas ainda não temos evidências científicas. Não temos a sequência do genoma do coronavírus que está circulando em São Gabriel”, informou.

Nesse cenário e com a vacinação ainda no início, foram acentuados os alertas para a manutenção das medidas de prevenção, com isolamento social, uso de máscaras e higienização das mãos.
Os órgãos de saúde do município e parceiros estão mobilizados no Comitê de Enfrentamento e Combate à Covid-19 para evitar o agravamento dos efeitos da crise.

Em São Gabriel da Cachoeira, a prefeitura está acompanhando os decretos estaduais, o mais rigoroso deles publicado no dia 24, que estabelece toque de recolher durante 24 horas, ou seja, limitando a circulação das pessoas durante todo o dia. A exceção fica para atividades essenciais, como compra de alimentos ou remédios. Conforme previsto pelo governo do Amazonas, a norma vale de 25 a 31 de janeiro. Desde 4 de janeiro há normas para reduzir a contaminação pelo novo coronavírus. Houve resistência inicial por parte da população, mas agora o que se percebe é que as ruas estão mais vazias. As operações de fiscalização foram reforçadas e há carro de som orientando sobre a prevenção.

Ações de comunicação e prevenção foram retomadas pela Campanha Rio Negro, Nós Cuidamos, promovida pelo Departamento de Mulheres Indígenas da Foirn (Dmirn/Foirn) com apoio do ISA. No sábado, uma equipe do Dmirn/Foirn fez a entrega de máscaras e kits de higiene a idosos que participaram da vacinação contra a Covid-19 promovida pela Secretaria Municipal de Saúde (Semsa). Todas as medidas de prevenção foram tomadas, com os mobilizadores utilizando Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). 

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