Omissão de direitos básicos causa migração forçada de ribeirinhos em Rondônia

Moradores de comunidades ribeirinhas são povos tradicionais e suas histórias estão diretamente ligadas à construção do Estado. Saída forçada do local de convívio impacta na cultura do povo.

Cinco anos: foi o tempo que os alunos das zonas ribeirinhas de Porto Velho (RO) passaram fora da escola por causa de problemas no transporte escolar fluvial e da pandemia de Covid-19. As consequências foram abandono e atraso escolar ou migração forçada para a cidade.

“Muitas crianças que vivem mais longe simplesmente abandonaram a escola, quer dizer, é o que eles [o poder público] dizem, mas na verdade a escola é que os abandonou”, aponta a pesquisadora Eva da Silva, doutora em Educação e mestre em História e Estudos Culturais.

Alunos ribeirinhos passaram cinco anos fora da escola. Foto: Jaíne Quele Cruz/g1 Rondônia

Alguns entre tantos relatos 

Ao longo os anos, o Grupo Rede Amazônica acompanhou muitas histórias de moradores da zona ribeirinha que enfrentaram dificuldades na educação:

Em 2021, a história de Gabriel Nunes foi destaque. Aos 14 anos ele não sabia escrever o próprio nome, segundo a família. O menino deveria estar no 9° ano do Ensino Fundamental, mas ainda não tinha completado sequer o 5° ano.

Na comunidade de Terra Firme, uma moradora cedeu o espaço da própria casa para encontros quinzenais dos professores com os alunos durante o afastamento da escola.

“Faço a merenda tanto dos professores quanto dos alunos, por minha própria conta, sem receber nada em troca, justamente para eles manterem a aula quando eles vão de 15 em 15 dias”, contou à época.

Maria de Lourdes tem 57 anos e nunca estudou: uma realidade que ela não quer para os filhos. No entanto, se viu de mão atadas com a falta de transporte escolar e sem poder sair da comunidade para a cidade.

“As pessoas podem achar que por eles [os estudantes] serem residentes de comunidades rurais-ribeirinhas, não merecem educação, que para eles qualquer coisa basta. Na verdade não é isso. Se eu não tenho acesso à educação escolarizada, dificulta inclusive a minha luta pelos direitos sociais, pelos direitos constitucionais”, comenta Eva.

Migração forçada e prejuízo cultural 

Por conta da falta de transporte, muitas famílias se viram obrigadas a deixar a zona ribeirinha e tentar a vida urbana para que os filhos não ficassem longe das escolas. Essa migração forçada é causada tanto por falhas na educação, quanto pela ausência de outros direitos essenciais à sobrevivência humana: saúde, saneamento básico e infraestrutura.

“Lá [na zona urbana] ele não têm casa, não têm domínio do emprego que é ofertado. Lá [na zona ribeirinha] ele pega um peixe, cria galinha. Ele praticamente escolhe o que vai comer. Aqui não, é quase 20 reais um quilo de peixe. Tem uma fala muito forte de um entrevistado do seringais: ‘na cidade a gente só sente o cheiro da carne, a gente não come. Se tiver dinheiro a gente come, se não tiver a gente só sente o cheiro'”.

O entrevistado que Eva cita é de uma série de documentários – feitos pelo coletivo ‘Vozes e EnCantos Amazônicos’, criado por ela – sobre as comunidades rurais-ribeirinhas. Filha e neta de seringueiras, Eva se dedica a pesquisar as vivências e culturas desse povo.

“Eu sou filha de uma família que era rural, hoje eu sou doutora em Educação. Daí você poderia me dizer assim: ‘mas não foi bom pra você sair de lá e se tornar doutora?’ Ao meu ver, quando você sai daquele seu lugar de cultura de uma forma forçada, você deixa de se apropriar dos conhecimentos que só aquele lugar é capaz de te ensinar. Você não queria sair de lá, você foi tirado”, 

salienta.

Moradores de comunidades ribeirinhas são povos tradicionais e suas histórias estão diretamente ligadas à construção do estado de Rondônia. De acordo com a pesquisadora, a saída forçada do local de convívio impacta na cultura desse povo.

“São pessoas que têm o seu modo de fazer mais ligado à natureza, vivem do extrativismo, da pesca, vivem de produzir, da agricultura familiar… elas têm essa cultura mais aproximada dos fazeres tradicionais. A paz que a cidade não oferece, as formas de escambo, essa construção de uma comunidade que é praticamente uma família: eles prezam por isso”, diz Eva.

“Populações rurais-ribeirinhas são comunidades de direito e só isso basta para que o Estado dê a elas acesso àquilo que é de direito. Eu não estou defendendo que essas pessoas não devam sair de lá, mas que elas não sejam obrigadas a sair por uma omissão do estado”, complementa a doutora.

Depois de quatro anos sem aulas por falta de transporte escolar, alunos de comunidade ribeirinha voltam à escola. Foto: Reprodução

“Novela” 

A questão do transporte escolar fluvial em Porto Velho é uma “novela”, com vários capítulos. Inicialmente, a responsabilidade era da Prefeitura de Porto Velho, mas após reclamações, denúncias e ações judiciais por conta do serviço precário – ou a ausência dele -, o dever foi repassado para o Estado.

“Nós temos dois momentos para falar desse transporte público: o momento em que ele existia, ocasionalmente, porque ele tinha falhas: ‘essa semana não tem motorista, a semana que vem não tem combustível, na próxima está quebrado’. Sempre teve falhas. A partir de 2019, essa escassez se efetivou de uma vez”, relembra Eva.

O Ministério Público de Rondônia (MP-RO) foi um dos principais atuantes em todo processo. O órgão já propôs, ao todo, sete ações civis públicas, bem como inúmeras reuniões com envolvidos. Em 2022, o MP-RO criou ano passado uma força tarefa, com participação de diversos promotores, exclusivamente para tratar do transporte fluvial.

Finalmente no início de fevereiro deste ano, embarcações foram enviadas para atender as comunidades ribeirinhas de Porto Velho. O governo de Rondônia informou que elaborou um plano de recuperação de educação desses alunos. A equipe de reportagem pediu acesso ao documento, mas não obteve retorno até a última atualização.


*Por Jaíne Quele Cruz, do g1 Rondônia

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