Tradições gastronômicas

A coluna de hoje é inspirada na leitura de um livro recentemente publicado por Carlos Alberto Dória e Marcelo Corrêa Bastos, intitulado “a culinária caipira da Paulistânia”. O livro trata de estudos históricos, culturais, literários e culinários que tratam da chamada “cozinha caipira”, a cozinha interiorana de São Paulo, Goiás, Minas Gerais e Paraná. Um dos resgates interessantes que a obra promove é quanto a figura do milho como ingrediente largamente utilizado no Brasil, à semelhança do que ocorre em toda a América Latina e que teve sua importância sistematicamente diminuída em nome da mandioca, também muito utilizada pelos índios e que assumiu o lugar de maior destaque na cozinha nacional.

Cabe fazer um destaque: os autores afirmam que aquilo que convencionamos chamar de cozinha mineira é, na verdade, fruto de apropriação histórica desta culinária interiorana. E mais: que a tradição mineira de pratos e receitas não existe enquanto tradição específica daquele Estado, mas sim como parte de uma história que congrega diferentes contribuições de culturas, comunidades e pessoas.

Isso nos leva a um grande desafio: temos o hábito de compreender as tradições como sendo produtos prontos e acabados, sem nos atentarmos que elas foram criadas ao longo do tempo e estabelecidas como práticas que tiveram um início. Em seu princípio, nenhuma tradição é tradição. O historiador inglês Eric Hosbawn propôs um conceito que chamou de tradições inventadas, ou seja, um conjunto de práticas de natureza ritual ou simbólica, que busca criar por meio da repetição um processo de continuidade em relação ao passado. E isso é muito comum na Gastronomia mesmo que não nos apercebamos dela.

Foto: Divulgação

Um exemplo sobre a apropriação destas tradições é a maniçoba, prato que assumimos como sendo um patrimônio EXCLUSIVAMENTE amazônico, ainda que não nos atentemos para o fato de que na Bahia há uma preparação semelhante, feita com folhas de maniva, ainda que ligeiramente diferente do prato a que estamos acostumados. A historiadora Sidiana Ferreira em “A cozinha mestiça”, sua tese de doutorado afirma que:

“Em ambos os casos, tanto no Pará como na Bahia, temos então a maniçoba, portanto o que é consumido e apresentado como comida de índio ou de origem e raízes indígenas e comida da floresta dos povos da Amazônia, nos faz pensar que essa é uma verdade construída com apelo comercial dos dias atuais. Na Bahia, que também tem a maniçoba como comida típica, associa-se este prato não necessariamente às tradições indígenas; a maniçoba é vista como comida herdada dos africanos e dos orixás, ainda que tenha as mesmas características da do Pará. (pgs. 214-2015)”

Ainda sobre a maniçoba, o senso comum acredita trata-se de uma preparação fundamentalmente indígena, o que não se confirma diante dos indícios claros de múltiplas influências, quando analisados seus processos de preparação e ingredientes. Em que pese a utilização dos chamados processos de cocção úmida (utilizando líquidos como meio de cozimento) serem menos comuns entre os índios do que a defumação (o moqueio) e o cozimento em fogo direto (os assados), a maniçoba começou com pedaços de carne de caça cozidas em maniva processada. Posteriormente, outros ingredientes como alho, cebola, sal, bem como técnicas como o refogado, típicos da contribuição do colonizador português foram incorporadas à sua maneira de fazer, tornado a maniçoba um prato mestiço, miscigenado e menos indígena, com somos levados, pela tradição constituída, a acreditar.

Uma característica singular a respeito das tradições é que elas são um retrato fiel do povo que lhes dá origem. Perceber e entender as práticas culinárias de uma determinada sociedade, bem como seus rituais de alimentação, os produtos que consomem com mais frequência, ou seja, a maneira como/quando/onde/o que comem nos possibilita conhecer sobre esta comunidade mais do que qualquer outro dado ou indício cultural que tenham produzido. Só que as tradições gastronômicas, os costumes culinários, os hábitos alimentares são dependentes de seu tempo. E outros tempos sempre trazem novas formas de pensar e agir.

Muitas de nossas tradições se perdem, como já se perderam. As tradições gastronômicas da Amazônia tão ricas, nos possibilitam termos cozinhas mais autênticas e ligadas às suas raízes em relação a outras regiões brasileiras. Mas, ainda assim nos desafiamos a perguntar: qual foi a última vez que você comeu um biribá? Ou, quantos de nós já teve a experiência de comer um peixe moqueado, preparado sobre um fumeiro de varas? Quem entre os amantes de açaí coloca a água na vasilha e toma para evitar a azia, como ensinavam nossos avós? Qual foi a última vez que você tomou um tacacá na rua?
Sobre as tradições gastronômicas é muito importante poder compreendê-las como um fenômeno cultural construído ao longo do tempo, que nos identifica como um povo que possui suas peculiaridades identitárias, mas também entender a necessidade de resguardá-las como parte da nossa história e do legado que deixaremos para as gerações futuras.

PARA SABER MAIS:

DÓRIA, Carlos Alberto & BASTOS, Marcelo Corrêa. A culinária caipira da Paulistânia: a história e as receitas de um modo antigo de comer. São Paulo: Três Estrelas,2018

HOBSBAWM, Eric. RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984

MACEDO, Sidiana da Consolação Ferreira de. A Cozinha mestiça: uma história da alimentação em Belém (fins do século XIX e meados do século XX). Tese (Doutorado). Belém: UFPA, 2016.

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