Folclores na alimentação

Para os seres humanos, o ato de alimentar-se é também um criador de cultura. Isto porque é carregado de sentidos e símbolos, de modo que seus rituais, suas técnicas, seus processos criam realidades e padrões de comportamento que refletem a história de cada povo a que está vinculado. Ao longo de todos os processos históricos de formação das sociedades, os seres humanos foram construindo regras e normas, que organizavam seu próprio convívio. Primeiramente, por meio de comportamentos e paradigmas que eram compartilhados pela experiência da própria comunidade. Depois, por leis tácitas, que resultaram em códigos e que impunham a adesão geral e irrestrita de todos para o que estava sendo delimitado. Descumprir as leis é ofender à própria sociedade. Não fosse por isto ainda viveríamos em plena barbárie, cada um buscando satisfazer seus próprios interesses individuais, sem pensar na coletividade.

O sociólogo Norbert Elias, em 2 volumes do excelente ” O processo civilizador” mostra como ao longo da história foram sendo construídas as “normas” que dirigem as nossas práticas alimentares. Elas diferem umas das outras, justamente porque existem diferenças entre as culturas, entre as suas origens, entre as relações que estabelecemos entre nós mesmos e outros povos. Mas independente das grandes diferenças que existem entre pessoas e países, algumas coisas são comuns a todos e uma delas é o fato de que todos possuem suas própria regras a respeito do que, como, quando, quanto e onde comemos. E a sociedade ocidental, dita “civilizada” pode, inclusive chamar-se assim, por ter aprendido a comer à mesa, usando utensílios e obedecendo a determinados rituais. Foi-se o tempo em que era normal e aceitável esgaravatar os dentes usando a ponta da faca ou limpar a boca com a manga da camisa diante de outros comensais. A etiqueta à mesa é um aspecto relevante no processo civilizatório.

Cabe destacar que a contribuição religiosa foi fundamental para a criação desta uma base comportamental moderna. Ao mesmo tempo em que as diversas doutrinas, aliadas às suas liturgias e os dogmas em cada religião, criam modos de portar-se, a maneira de exercê-las ao longo do tempo, geram práticas que de tanto serem repetidas, vão se tornando parte da cultura, repassadas de geração em geração e aí surgem as tradições. Contudo, cabe destacar que estas tradições não são imutáveis, eternas ou foram dadas por um ser universal de presente. Elas foram criadas a longo do tempo e carregam toda a bagagem cultual do povo. Junto com as tradições, nascem os tabus, as lendas, as histórias que ouvimos de nossos antepassados, pois estes são instrumentos de perenização da própria sociedade. É disso que falamos quando tratamos de folclore.

E a alimentação, como ato humano, produz uma série de folclores, que muitas vezes são mantidos por razões inexplicáveis, mas que dirigem a nossa vida, sem a menor justificativa plausível ou ao menos algo que prove que eles são reais, como a proibição de comer manga e tomar leite ao mesmo tempo (fosse por isso, não existiria o sorvete de manga!). Eu mesmo tenho alguns testemunhos bastante impressionantes: certa vez uma tia pediu sal durante uma refeição. Ao estender ao saleiro em direção a ela, ouvi que precisaria colocá-lo na mesa, para que assim, ela pudesse pegá-lo. Questionei o porquê. Ela me respondeu: porque pegar o saleiro da mão de alguém dá azar. 

Lembro também que em casa, havia uma certa solenidade quando comíamos frango em almoços dominicais. Isto porque, antigamente a parte considerada mais nobre da ave, era seu uropígio (popularmente conhecido como “sobrepum”) e deveria ser dado à maior autoridade presente à mesa. Ainda hoje, este pedaço é sempre destinado à minha mãe. A ponto de filhos e netos procurarem por ele e deixarem guardado a quem lhe pertence por “direito”.

Câmara Cascudo no “História da Alimentação Brasileira” relata alguns destes folclores em sua obra. Vejamos:

– Colher que cai no chão é sinal de que tem visita chegando. E se a colher cair para cima, a visita é de uma mulher;

– Quem senta na cabeceira da mesa, paga a conta;

– Beber algo no copo de outra pessoas, possibilita descobrir os segredos dela;

– Jamais se deve fazer uma refeição com 13 pessoas à mesa, porque se não, o anfitrião morre (esta “regra” possui ao menos uma justificativa histórica: ela remete à Última Santa Ceia, em que Jesus recebeu 12 apóstolos e depois, traído por Judas, foi crucificado);

– Comer despido (ao menos sem camisa) ou falar palavrão enquanto come, ofende o Anjo da Guarda;

– A cozinheira que resmunga ou bate na panela enquanto cozinha, está provocando o Diabo;

– Nunca pedir para comer o último bocado da comida de alguém, porque isso dá azar. Tanto em alguns lugares, o último pedaço é chamado de morte (‘Posso comer esta morte aqui?”)

– Ao beber algo, geralmente se joga um pouco de bebida ao chão, para repartir com o santo.

Temos tantos outros exemplo, que seria impossível relatá-los todos. Cabe reafirmar, entretanto, a força destes tradições mesmo em pleno século XXI. Ao fazer uma refeição num restaurante internacional estrelado, com serviço impecável, observe que o garçom sempre irá servi-lo com a mão direita e retirará seu prato com a mão esquerda. Isto porque, no entendimento da cultura popular do passado, a mão destra é sempre portadora de bênçãos, enquanto que a mão sinistra, era cheia de maldições.

Vivemos, portanto, baseados em tradições, cujas origens se perdem no tempo. Resgatar esta genealogia, nos faz cada vez mais próximos das culturas que nos constituíram como sociedade e além disso, nos dão uma lição importante: a de que devemos respeitar nosso conjunto de tradições, mas também a de entender que a cultura é filha do seu tempo e do seu espaço e se faz e refaz. Ela nunca é uma só, nem posse de alguém e não pode ser analisada como certa ou errada. Ela é a expressão de um povo e assim deve ser tratada.

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