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Uma breve história sobre a mestra da floresta

*Por Conexões Amazônicas – contato@conexoesamazonicas.org

Quando a maioria das pessoas pensa em cobras, imagina animais perigosos, espreitando à procura de sua próxima vítima. Essa visão romântica e preconceituosa provavelmente resulta da cultura que compulsoriamente herdamos de nossos colonizadores europeus. Na realidade, menos de 30% das mais de 235 espécies de cobras conhecidas no Brasil são peçonhentas. Destas, mais da metade são cobras-corais, que raramente causam acidentes com humanos devido ao seu comportamento recluso. Portanto, mais de 200 espécies de cobras brasileiras são inofensivas para humanos e animais domésticos, e exibem uma incrível diversidade de tamanhos, cores e hábitos de vida.

Acidentes ofídicos não devem ser subestimados como problema de saúde pública. Eles são classificados pela Organização Mundial da Saúde como uma doença tropical negligenciada, o que se deve mais à dificuldade de acesso ao tratamento adequado com soro antiofídico do que ao perigo inerente das cobras. Pessoas em áreas remotas geralmente enfrentam maiores riscos de acidentes e desafios para chegar a um hospital, especialmente na Amazônia, onde precisam percorrer distâncias imensas pelos rios.

No entanto, há muito mais a ser explorado sobre cobras além do risco de acidentes. Como parte da impressionante diversidade de vida que resultou de bilhões de anos de evolução biológica, a história das cobras revela mistérios sobre a própria história do planeta. A Amazônia, por exemplo, abriga uma das maiores cobras peçonhentas do mundo, a única víbora das Américas que reproduz depositando ovos e uma das poucas espécies que exibem cuidado parental – as fêmeas cuidam de seus ovos e podem usar contrações musculares para manter a temperatura estável. Estou falando da surucucu-pico-de-jaca (Lachesis muta, Viperidae), conhecida no Ceará como malha-de-fogo e nos países de língua inglesa como Bushmaster – a mestra da floresta!

A surucucu-pico-de-jaca pode ser encontrada em toda a Amazônia e em alguns remanescentes da Mata Atlântica, onde ainda não foi extinta. No entanto, não ocorre entre esses dois biomas, na região chamada diagonal seca da América do Sul, formada por biomas de clima relativamente seco e vegetação aberta, como o Cerrado e a Caatinga. Mudanças geológicas e climáticas ao longo de milhões de anos separaram as duas grandes florestas tropicais da América do Sul, isolando populações de surucucus-pico-de-jaca.

Assim, essa cobra incrível fornece evidências de que a Amazônia e a Mata Atlântica já foram uma única floresta. Hoje, sabemos que esses biomas estão separados há tempo suficiente para que as populações isoladas de surucucus tenham divergido evolutivamente a ponto de se tornarem espécies distintas. Estudar surucucus-pico-de-jaca na natureza é um desafio. São animais noturnos, com camuflagem eficiente e ocorrem em baixas densidades populacionais, o que significa que geralmente existem poucos indivíduos por unidade de área. Em meus 18 anos de experiência na Amazônia, encontrei apenas cinco indivíduos, sendo um deles particularmente interessante. Em uma noite chuvosa na região do interflúvio Madeira-Purus, no sudoeste da Amazônia, um colega australiano gritou: “A mexican hat!!” (“um chapéu mexicano”, em inglês). Demorei alguns segundos para entender que ele havia avistado uma enorme surucucu-pico-de-jaca, com a cabeça repousada sobre o corpo enrolado, lembrando um chapéu mexicano.

Capturar aquela cobra enorme para coletar os dados necessários para os nossos estudos seria um desafio enorme. Meu colega não tinha experiência capturando cobras, e eu jamais me atreveria a tentar sozinho. Estávamos a mais de 5 km da estrada mais próxima, em péssimas condições, e levaria um dia inteiro para chegar a um hospital. Então não podíamos correr riscos. Decidimos que meu colega ficaria de olho na cobra enquanto eu buscava o resto da equipe, a 3 km de distância.

A trilha era bem marcada, então parecia fácil. Mas especialmente naquela noite alguns obstáculos apareceram pelo meu caminho. Uma grande árvore caída bloqueou a trilha, e na tentativa de desviá-la, fiquei perdido na floresta por uns 30 minutos. Também havia uma grande poça d’água que decidi pular, sem me atentar para um galho de árvore que despontava do outro lado, na altura da minha cabeça. Bati tão forte com a cabeça que vi tudo girando, e caí desmaiado na poça. Recuperei a consciência rapidamente, e percebi que havia sangue escorrendo pela minha orelha. Mais à frente tentei me equilibrar atravessando uma pinguela sobre um igarapé (ponte feita com tronco fino de árvore), e caí da forma mais dolorosa que você pode imaginar em uma situação como essa.

Finalmente, alcancei meus companheiros, que ficaram eufóricos com a notícia da surucucu-pico-de-jaca. Voltamos todos correndo e encontramos meu colega australiano ainda observando a cobra. Planejamos cuidadosamente a captura, coletamos nossos dados e voltamos ao acampamento, felizes, cansados e molhados. Que noite!

Parte da equipe de pesquisadores e assistentes de campo na BR-319, estrada que corta o interflúvio Madeira-Purus, sudoeste da Amazônia. Fotos: Rafael de Fraga/Acervo pessoal

*Autor:

Rafael de Fraga é biólogo, mestre e doutor em ecologia. Ele tem estudado cobras na Amazônia há 16 anos, investigando padrões de diversidade associados à variação nas características de florestas e savanas. Também participou como apresentador e pesquisador da série de TV Em Busca das Cobras.

Rafael de Fraga – r.defraga@gmail.com

Sobre o Conexões Amazônicas

O coordenador da ONG Rede Conexões Amazônicas, Ayan Fleischmann, é pesquisador titular do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, sendo mestre e doutor em recursos hídricos. Em sua trajetória tem pesquisado as águas e várzeas amazônicas em suas múltiplas dimensões. É representante da ONG na coluna no Portal Amazônia, onde recebe pesquisadores convidados que contam os bastidores de suas experiências de pesquisa na Amazônia.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

Manaus de ontem, de um passado não muito distante: a cidade que já não existe mais, em nome da modernidade

Foto: Reprodução/Manaus de Antigamente

Por Abrahim Baze – literatura@amazonsat.com.br

Se a arquitetura é o símbolo mais visível de uma sociedade, a fisionomia urbana de Manaus reflete bem o espírito da sociedade que aqui floresceu em fins de 1800 e início de 1900. Na verdade a arquitetura de Manaus, a arquitetura mais antiga exprime uma atitude emocional e estética do apogeu de um período do látex e da burguesia enriquecida pelo processo produtivo.

A cidade que despertou a admiração de tantos estrangeiros imigrantes ou visitantes, nas primeiras décadas de 1900, surgiu como por encantamento.

De uma aldeia dos indígenas, o antigo Lugar da Barra se transformara num dos mais importantes centros do mundo tropical, graças a vitalidade econômica da borracha, que lhe deu vida, riqueza e encantos, como na antiguidade o comércio intenso no Mediterrâneo e no Adriático possibilitou a Roma, Florença e Veneza papel preponderante na economia, nas artes, nas letras e na arquitetura da Velha Europa.

Tal como Veneza, por meio de seu comércio de longo alcance com povos europeus e extras europeus, Manaus veio conhecer o gosto e a experiência de países extras americanos onde sua burguesia procurava inspirações de vida e de ação. O passeio de férias à Europa era ocorrência de rotina para a família de Manaus que, por sua vez, de lá traziam ideias e sugestões transformados em valores culturais, às vezes um tanto invulgar de uma sociedade desejosa de crescer e firmar-se como força civilizadora.

Cidade de suaves colinas, Manaus desdobrava-se em vistas múltiplas para quem a cruzasse nas avenidas e ruas de um lúcido urbanismo. E não deixa de impressionar a obra urbanizadora da capital, creditada ao governo de Eduardo Gonçalves Ribeiro, a topografia da cidade, antes do governo dele, deslumbrava-se em cortes hidrográficos: era o Igarapé do Salgado, o Igarapé da Castelhana, o Igarapé da Bica, o Igarapé do Espírito Santo, Igarapé de Manaus, Igarapé da Cachoeirinha, Igarapé de São Raimundo, Igarapé dos Educandos, etc.

Eduardo Gonçalves Ribeiro aterrou os caudais em benefício de um urbanismo funcional, que lutou contra a natureza até fazer secar os pequenos cursos d’água, transformada em amplas avenidas.

[…] Avenida Eduardo Ribeiro, com sua imponência, resultado do aterro do Igarapé do Espirito Santo. Outros tantos igarapés atravessados por sólidas pontes de ferro, em disposições geométricas artisticamente apresentadas. O Teatro Amazonas erigido no topo de uma colina, como se fosse a Acrópole dos Deuses da Floresta, marca a capital no espaço e no tempo, inaugurado em 1896.

Fonte: TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia. Manaus: Valer, 2000. Pág.: 188-189.

Foto: Reprodução/Manaus de Antigamente

Cidade rica, progressista e alegre, calçadas com granito e pedra de liós, trazida de Portugal, sombreadas por frondosas mangueiras e de praças e jardins bem cuidados, com belas fontes e monumentos, tinha todos os requisitos de uma cidade grande urbana moderna: água encanada e telefonias; energia elétrica, rede de esgoto e bondes elétricos deslizando em linhas de aço espalhadas por toda malha urbana e penetrando na floresta até os arredores mais distantes do Bairro de Flores. O seu porto flutuante, obra-prima da engenharia inglesa, construído a partir de 1900, o qual recebia navios de todos os calados e das mais diversas bandeiras.

O movimentar do centro comercial regurgitando de gente de todas as raças: nordestinos, ingleses, peruanos, franceses, judeus, norte-africanos, norte-americanos, alemãs, italianos, libaneses, portugueses, caboclos e índios.

A Avenida Eduardo Ribeiro concentrava um número expressivo de casas comerciais. Nas proximidades do Mercado Municipal Adolpho Lisboa, Ruas Marcílio Dias, Guilherme Moreira, Quintino Bocaiúva, 7 de Setembro, Henrique Martins, Instalação, Praça XV de Novembro. Tudo o que o comércio internacional oferecia à época poderia ser encontrado nesta longínqua cidade, plantada a milhares de quilômetros dos principais centros capitalistas.

Atividades comerciais bem constituídas abrigavam, no andar inferior, o comércio e no andar superior a residência do proprietário, instalado próximo ao seu trabalho, o que ocorria normalmente das 7h às 21h.

Esse espaço residencial era o que predominava em nosso centro comercial. Mas, afastadas como a Praça dos Remédios ao longo da Joaquim Nabuco, Largo de São Sebastião, Avenida 7 de Setembro, Rua Barroso, 24 de Maio, Saldanha Marinho e outras ruas circunvizinhas, dispunha-se as residências mais ricas, magníficos palacetes construídos no melhor estilo da época, assoalhos de acapu e pau amarelo, pinho-de-riga, onde o sol vazava as janelas e vitrais europeus. As salas normalmente iluminadas de belíssimos lustres europeus, paredes e tetos decorados de pinturas e telas ou de ares frescos.

Seus salões amplos exibiam luxuosíssimos móveis, porcelanas, cristais, pratarias e que permaneciam sempre abertos para receber visitas e festas de aniversários, banquetes e saraus, as diversões familiares da belle époque.

Casas de alvenaria com porões habitáveis, com fachada de painéis de azulejos europeus, com suas entradas de escadas em degraus de pedra de liós, ou madeira, sala de visita, alcova, sala de jantar, o grande corredor, ladeados de dois três quartos, cozinha em mais dependências.

[…] As famílias de menores recursos habitavam as extensas vilas de casas populares, o que ainda encontramos hoje nas ruas 24 de maio, Lauro Cavalcante e Joaquim Nabuco e as chamadas estâncias, extensas construções de meia-água divididas em pequenos quartos para aluguel. Entre os hotéis destacavam-se o Casina, na Praça Dom Pedro II e o Grande Hotel na Rua Municipal número 70, belíssimo edifício de dois andares, com quarenta e dois quartos, cujos, cômodos eram decentemente mobiliados.

Fonte: LOUREIRO, Antônio José Souto. A Grande Crise. Pág.: 33 e 34. In. BAZE, Abrahim. Luso Sporting Clube: A Sociedade Portuguesa no Amazonas. Manaus: Valer, 2007.

Foto: Reprodução/Manaus de Antigamente

Poucas cidades do Brasil tenham passado pela fase de esplendor que atravessou Manaus, entre 1895 a 1915, quando conquistamos do grande ciclo econômico do látex o que de melhor era trazido da Europa e utilizado em nossa cidade. Não é, na realidade, um tema ignorado para muitos, mas poucos conhecem as verdadeiras relíquias históricas da arquitetura que, em tempos passados marcaram o desenvolvimento e o embelezamento da cidade de Manaus.

Turistas, estudiosos e outras pessoas que procuram Manaus se deparam com Teatro Amazonas, com Tribunal de Justiça, com a Alfandega e outras obras importantes daquele período, mas, passam despercebido por prédios menores que desafiam as gerações e a técnica moderna, esboçando na sua estrutura e apresentação, um tipo de arte, implantada em Manaus pelo arquiteto Severiano Mário Porto.

É o caso do Restaurante Chapéu de Palha que foi um dos lugares mais curiosos e marcantes da história da arquitetura regional e obra-prima do referido arquiteto. Inaugurado no dia 24 de fevereiro de 1968, esse point da gastronomia regional tinha como endereço a esquina da Rua Paraíba com Rua Fortaleza no Centenário Bairro de Adrianópolis.

Projeto totalmente regional idealizado pelo arquiteto Severiano Mário Porto um ícone da nossa arquitetura, cuja inspiração era formatada num estilo de chapéu de palha usado pelos ribeirinhos de nossa região como proteção contra o sol em suas longas jornadas de pescaria em nossos rios a estrutura do restaurante era totalmente feita de materiais locais, incluindo troncos de aquariquara que promovia sua sustentação e cuja cobertura era feita de palmeiras regionais (palha), além de concreto armado que formavam suas sapatas. Uma área que possuía aproximadamente 7.850 metros quadrados e o restaurante ocupava uma área de 2.400 metros quadrados.

Severiano Mário Porto manteve o escritório no Rio de Janeiro com a coordenação de seu sócio, o arquiteto Mário Emílio Ribeiro, que foi seu colega de turma na FNA e coautor de projetos importantes. Muito dos projetos desenvolvidos em nossa região foram premiados pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil – IAB, como o restaurante Chapéu de Palha, demolido em 1967. Suas obras e sua história de vida fica a espera de um estudo mais aprofundado e quem sabe sua autobiografia.

Severiano Mário Porto. Foto: Reprodução/CAU-AM

Sobre o autor

Abrahim Baze é jornalista, graduado em História, especialista em ensino à distância pelo Centro Universitário UniSEB Interativo COC em Ribeirão Preto (SP). Cursou Atualização em Introdução à Museologia e Museugrafia pela Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas e recebeu o título de Notório Saber em História, conferido pelo Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas (CIESA). É âncora dos programas Literatura em Foco e Documentos da Amazônia, no canal Amazon Sat, e colunista na CBN Amazônia. É membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), com 40 livros publicados, sendo três na Europa.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

Censipam divulga novo boletim de desmatamento e ilícitos ambientais na Amazônia

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Operação Pariwat. Foto: Rebeca Hoefler/ICMBio

O Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam) publicou, no dia 23 de agosto, o primeiro Boletim de Desmatamento e Ilícitos Ambientais (BDI Censipam). O objetivo do boletim é acompanhar a evolução do desmatamento no bioma amazônico ao longo do ano, trazendo foco também para outros ilícitos ambientais relacionados ao desmatamento, como a mineração ilegal e pistas de pouso irregulares em terras indígenas e unidades de conservação.

A edição atual traz a análise do primeiro semestre de 2024 e, a partir de então, será publicada bimestralmente. O próximo número, previsto para a primeira quinzena de setembro, incluirá dados de julho e agosto.

Integração de alertas de desmatamento

O BDI Censipam utiliza uma nova metodologia que integra os alertas gerados pelo Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (DETER), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), pelo Programa Brasil MAIS (Meio Ambiente Integrado e Seguro), do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), e pelo sistema Localização de Garimpos (LOGAR), do próprio Censipam. A integração de diferentes sistemas de alertas tem o objetivo de aumentar a acurácia da informação sobre o desmatamento na Amazônia, explorando as potencialidades de cada ferramenta disponibilizada pelos órgãos públicos.

Devido à melhor resolução espacial e a delimitação mais precisa da área desmatada fornecidas pelos alertas Brasil MAIS, estes foram escolhidos como base para a análise do desmatamento. Por possuir uma melhor cobertura do bioma Amazônia, os alertas DETER foram utilizados de forma para garantir a abrangência para todo o bioma.

Além do desmatamento da vegetação nativa, o boletim inclui dados sobre desmatamento de vegetação florestal secundária, ou seja, áreas florestais em processo de regeneração que foram anteriormente desmatadas, utilizando informações do programa TerraClass, desenvolvido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e pelo INPE, com apoio do Censipam.

Mineração ilegal e pistas de pouso irregulares

Além do desmatamento, o BDI traz enfoque para a mineração ilegal e as pistas de pouso irregulares em Terras Indígenas e Unidades de Conservação. Para isso, utilizou o Sistema de Localização de Garimpos (LOGAR), produzido pelo Censipam, que realiza validação, refinamento e classificação dos alertas de mineração gerado pelo DETER e Brasil MAIS, utilizando imagens de alta resolução. Com relação às pistas de pouso irregulares, foi utilizado o sistema de Localização de Pistas de Pouso (LOPIS), também produzido pelo Censipam, que identifica e classifica as pistas de pouso irregulares na Amazônia Legal, a partir de imagens de satélite.

Eventos de fogo

O boletim apresenta também informação sobre o número de eventos de fogo detectados nos estados amazônicos, a partir das informações geradas pelo Painel do Fogo (Censipam), uma plataforma que disponibiliza informações em tempo real sobre incêndios e queimadas no Brasil e nos países vizinhos que possuem o bioma amazônico em seu território.

*Com informações do Censipam

Governo Federal falha no controle do desmatamento e queimadas na Amazônia

Por Osíris M. Araújo da Silva – osirisasilva@gmail.com

Somadas ano a ano, as áreas de queimadas no Brasil ultrapassam 830 mil km² até julho de 2024. Os três mandatos do presidente Lula da Silva (Lula I, II e III) registraram os maiores índices de áreas queimadas no Brasil em duas décadas, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Com mais de 113 mil km² queimados até julho de 2024, o governo Lula III já ultrapassa os números críticos dos mandatos anteriores, colocando em alerta especialistas e ambientalistas sobre o futuro dos biomas brasileiros. Durante seus primeiros dois mandatos, o Brasil continuou a registrar altos índices de queimadas.

Em 2003, início de seu primeiro mandato, a área queimada atingiu 103.5 km², um dos piores registros da história. Este número foi superado em 2005, quando as queimadas alcançaram 103.6 km², demonstrando uma tendência preocupante. Após um intervalo de 12 anos fora do poder, Lula retornou à presidência em 2023 com o desafio de lidar com questões ambientais exacerbadas pelas mudanças climáticas e pelo desmatamento. No entanto, o primeiro ano de seu terceiro mandato foi bastante temerário. Em 2023, a área queimada alcançou 68.9 km², um aumento significativo em comparação aos anos anteriores.

O cenário se agravou em 2024, quando os focos de calor e as queimadas explodiram, alcançando um novo recorde de 113.6 km², o maior número registrado desde 2005. Este dado revela que o atual governo enfrenta dificuldades em controlar as queimadas, apesar de medidas como a nova Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, que foi sancionada no final de julho. Durante esses anos, a combinação de expansão agrícola, desmatamento e falta de políticas ambientais rigorosas contribuiu para o aumento das queimadas, especialmente na Amazônia e no Cerrado, biomas que abrigam uma rica biodiversidade, mas que são extremamente vulneráveis ao fogo.

De acordo com o INPE, na Amazônia registraram-se 11.434 focos de calor em julho, mais que o dobro do número registrado no mesmo mês em 2023 (5.772) e muito acima da média histórica de 6.164. O pior cenário para o mês desde 2005 – o estado do Amazonas o mais impactado -, concentrando em torno de 37% dos focos de calor na região, ou seja, um total de 4.241, novo recorde. Os pesquisadores consideram que o aumento das queimadas na região relaciona-se tanto ao desmatamento quanto às condições climáticas extremas que têm se intensificado com as mudanças climáticas globais. A combinação de florestas degradadas e um clima cada vez mais seco cria ambiente propício, e de difícil controle, à proliferação do fogo, pondo em risco a biodiversidade e as comunidades que dependem da floresta.

Relatório Anual do MapBiomas confirma que, em 2023, o desmatamento alcançou, no Brasil, a média de 5 mil hectares diários. Os números acumulados nos últimos 5 anos indicam que, no período, o país perdeu em torno de 8 milhões de hectares de vegetação nativa, equivalentes a cerca de 10 vezes a área da cidade norte americana de Nova York. O quadro resulta, fundamentalmente, de acordo com estudos da Rede WWF, da “grilagem” amplamente praticada na região. A invasão de terras públicas para apropriação particular, por meio de desmatamento, invasões, ocupação ou loteamento sem autorização do órgão competente.

No Brasil, o roubo de terras públicas, destaca o estudo, ocorre principalmente no Norte do país. Aqui enormes glebas fundiárias não destinadas (que ainda não tiveram seu uso definido) pertencentes ao governo Federal ou aos estados, poderiam estar sendo utilizadas, por exemplo, na proteção ambiental ou na produção de madeira por meio de manejo sustentável. Brasília, presa a estranhos compromissos externos, insiste no “desmatamento zero” mas não investe em regularização fundiária, no fortalecimento dos órgãos de controle e no planejamento do desenvolvimento sustentável, único meio de defender e preservar o bioma.

Sobre o autor

Osíris M. Araújo da Silva é economista, escritor, membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA) e da Associação Comercial do Amazonas (ACA).

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

Igarapé seco durante estiagem em Rondônia causa a morte de dezenas de peixes

Peixes morrem em igarapé seco em Porto Velho. Foto: Edson Gabriel/Rede Amazônica RO

Com a seca severa e a estiagem que afeta a Amazônia, um igarapé localizado na comunidade ribeirinha Maravilha secou, causando a morte de dezenas de peixes e dificultando o acesso à água para os moradores da região.

O mesmo local que Conceição e a família usavam para atividades diárias e momentos de diversão, como banhos, se tornou em um cenário devastador: um cemitério de peixes.

“A minha reação foi de tristeza, de muita tristeza, de ver eles morrendo e eu não ter o que fazer pra salvar eles”, relembra.

Segundo a Defesa Civil Municipal, situações como essa ocorrem na região de Maravilha e em várias outras comunidades ribeirinhas, lagos e igarapés de Rondônia. A tendência é que a situação piore, já que os meses historicamente mais secos ainda não chegaram.

“O que está acontecendo? Falta de oxigênio na água, temperatura muito alta e eles não sobrevivem. Isso não só aqui, em outras regiões e vai acontecer mais ainda porque o rio Madeira continua baixando”, revela Anderson Luiz, gerente de operações da Defesa Civil.

Isolados e sem água

Sem acesso à água encanada e sem poços amazônicos, moradores de Maravilha dependem da água do igarapé e de um lago para as atividades mais básicas: cozinhar, lavar roupa e louça e se banhar. Coisas simples que se tornam praticamente impossíveis de serem feitas.

Igarapé Maravilha antes e depois da seca. Foto: Reprodução/Rede Amazônica RO

“Eu moro aqui na beira desse lago há 45 anos e eu nunca tinha visto essa situação que nós estamos vivendo agora [de seca]. É muito complicado expressar o sentimento não só meu, como de toda a população ribeirinha que depende desse lago”, relata Cláudio Uchoa.

De acordo com os relatos dos moradores, o Igarapé secou totalmente em menos de um mês. O medo deles é que o lago, agora única fonte de água, seque também, causando a morte das espécies que nele vivem e desabastecendo as 400 famílias que vivem no local.

“Essa água a gente usa pra tudo. E como a gente vai ficar se não tiver essa água?”, questiona Cláudio.

Sem boas previsões

Porto Velho está há três meses sem chuvas significativas. A última precipitação com um volume considerável foi em 25 de maio.

Em um período de estiagem extrema, todos os rios e afluentes de Rondônia são afetados. O rio Madeira bateu recordes de mínimas históricas: julho e julho foram os piores meses em quase 60 anos. Na maior parte do ano o rio se manteve abaixo da zona de normalidade e por várias vezes ultrapassou as mínimas já observadas historicamente.

Em 2023, a estiagem também causou mínimas históricas para o Madeira. O rio desceu para níveis críticos, até chegar a cota de 1,09 metro: o menor nível da história. O registro aconteceu no dia 5 de novembro, às 4h.

Seca rio Madeira 2024. Foto: Reprodução/Rede Amazônica RO

Segundo o Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), os baixos níveis são registrados por dois motivos: o período de cheia que ocorre regularmente foi muito abaixo da média, dificultando a manutenção das cotas dos rios quando chegou uma seca severa e antecipada.

“O que o Censipam tem alertado desde o ano passado é que essa estiagem se absteria pela Amazônia legal e o que a gente tem percebido em relação à hidrologia, ao fogo, tudo isso se antecipou em um mês. As previsões são da manutenção desse quadro geral de estiagem severa”, revela Caê Moura, gerente do Censipam.

*Por Jaíne Quele Cruz e Marcelo Moreira, da Rede Amazônica

Insumos para testagem de malária serão disponibilizados por 12 meses no TI Yanomami, informa MS

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Foto: Matheus Brasil/MS

O Ministério da Saúde garantiu insumos suficientes para realizar testes de malária no território Yanomami por 12 meses. O mais recente investimento foi a entrega de 390 mil lancetas para exames padrão ouro, ou seja, de alta qualidade para o diagnóstico. Desde 2022, o estoque do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) não mantinha um nível de abastecimento tão alto.  

A malária centraliza uma série de investimentos da pasta e, além da ampliação da testagem, o ministério busca aprimorar a notificação dos casos e promover tratamento adequado no início da doença.  

Em 2024, houve aumento de 83,1% no número de exames realizados para diagnóstico da doença no território Yanomami, comparando-se com o mesmo período do ano anterior. O volume de testes passou de 37,5 mil no primeiro trimestre, para 68,7 mil no mesmo período deste ano.  

Rute Helen de Souza, responsável pelo Centro de Abastecimento Farmacêutico (CAF) do Dsei Yanomami, explica que a manutenção de um alto estoque é essencial para a elaboração de ações específicas e manutenção da vigilância da doença. “Esse nível de abastecimento representa a capacidade de a gente ter o diagnóstico de qualidade e expandi-lo pelo território. Assim, o tratamento é iniciado em tempo oportuno, ou seja, no começo da doença”, frisa.  

Luciano Bulegon, referência técnica da malária no Dsei Yanomami, destaca que a maior testagem é importante para o monitoramento do comportamento da doença na região. “O aumento do número de locais de diagnóstico e tratamento, além do reforço nas equipes de saúde, resultaram no conhecimento mais profundo do cenário, o que é primordial para a elaboração de ações estratégicas para mitigar a doença”, conclui.  

Reforço no tratamento

O Ministério da Saúde ampliou a oferta de medicamentos para o tratamento da doença. Em março, a pasta implementou a tafenoquina, antimalárico em dose única para tratamento da malária Vivax. Quatro mil tratamentos foram disponibilizados para o DSEI Yanomami. Em dose única, tratamento facilita adesão de pacientes, aumenta chances de cura e pode ser um aliado na busca pela eliminação da doença. 

Em agosto deste ano, a população Yanomami voltou a receber o tratamento contra a malária artesunato + mefloquina, conhecido como ASMQ, para crianças entre 6 meses e 6 anos. O insumo estava em falta desde 2022. O medicamento é uma estratégia essencial, pois permite a dissolução do comprimido em água para facilitar o uso, o que aumenta a adesão à terapia.  

O Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), restabeleceu o envio em julho. Ao todo, o Dsei Yanomami recebeu 4.570 unidades do medicamento neste mês.  

O medicamento é indicado para utilização em crianças de baixo peso (5 a 17kg) acometidas por malária Falcíparum e malária Mista. No período em que estava em falta, a terapia estava sendo feita com medicamento substitutivo que necessitava de duas doses por dia, dificultando a adesão e a finalização do tratamento.  

O AMSQ foi incorporado ao Programa Nacional de Prevenção e Controle da Malária e disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em 2009, mas teve sua fabricação interrompida em 2021.  Ele associa as substâncias cloridrato de mefloquina e artesunato, antes administradas separadamente contra a doença. 

Boletim

O Ministério da Saúde divulgou, em 5 de agosto, um novo informe do Comitê de Operações Emergenciais (COE) Yanomami. No primeiro trimestre deste ano, foram notificados 74 óbitos no território. Na comparação com igual período do ano passado, houve uma queda de 33%. Nos três primeiros meses de 2023 foram registradas 111 mortes. O documento ressalta que os principais agravos tiveram queda, dentre eles óbitos por malária, desnutrição e infecções respiratórias agudas graves.  

O povo Yanomami tem a maior terra indígena do Brasil, com 10 milhões de hectares, mais de 380 comunidades e 30 mil indígenas. Desde janeiro de 2023, o Ministério da Saúde investe para mitigar a grave crise causada na região pelo garimpo ilegal. A pasta aumentou o efetivo de profissionais, dobrou o investimento em ações de saúde e trabalhou para garantir a assistência e combater doenças, como a malária e a desnutrição, no território. 

*Com informações do Ministério da Saúde

Pesquisa diz que mudanças climáticas aumentaram condições favoráveis a incêndios florestais sem precedentes

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As mudanças climáticas aumentaram em pelo menos três vezes as chances de ocorrência das condições favoráveis para incêndios florestais sem precedentes no Canadá e em até 20 vezes na Amazônia Ocidental entre março de 2023 e fevereiro de 2024, elevando as emissões de gases de efeito estufa, causando devastação ambiental e provocando mortes de moradores.

Pesquisa internacional divulgada no dia 14 de agosto, conclui que, apesar de a área global queimada ter sido próxima à média de anos anteriores – cerca de 3,9 milhões de quilômetros quadrados, o que corresponde a mais do que o território da Índia –, as emissões por incêndios no mundo ficaram 16% acima da média. Totalizaram 8,6 bilhões de toneladas de dióxido de carbono (Gt CO2), ou seja, a sétima mais alta desde 2003.

O primeiro relatório State of Wildfires, que passará a ser anual, foi publicado na revista científica Earth System Science Data. Analisa os incêndios florestais (com vegetações/ecossistemas diversos), identificando eventos extremos, e avalia as causas, previsibilidade e atribuição desses eventos às mudanças climáticas e ao uso da terra, apontando riscos futuros sob diferentes cenários.

Para isso, foram desenvolvidas ferramentas e reunidos dados de todos os países, com uso de inteligência artificial, visando compreender e prever incêndios extremos para fornecer informações práticas a tomadores de decisão e à sociedade. 

De acordo com a pesquisa, a ‘temporada’ de incêndios na Amazônia Ocidental (que inclui os Estados do Amazonas, Acre, Roraima e Rondônia) foi impulsionada por secas prolongadas ligadas ao El Niño. Essas secas aliadas às condições meteorológicas explicaram 68% dos incêndios, mas ações antrópicas, como desmatamento, agricultura e fragmentação de paisagens naturais, também tiveram influência. De maneira geral pelo mundo, as causas que levaram aos incêndios foram múltiplas.

Coliderado pela Universidade de East Anglia, pelo Met Office, pelo Centro de Ecologia e Hidrologia do Reino Unido (UKCEH) e o Centro Europeu de Previsões Meteorológicas de Médio Prazo (ECMWF), o estudo teve a participação de três brasileiros entre os 44 pesquisadores.

“A ideia foi criar um panorama global por meio da reunião de especialistas regionais para destacar a situação do fogo no mundo. Foi importante reunir essa expertise regional, com um time diverso tanto de países como de áreas de conhecimento. Outro ponto interessante é a atualização rápida dos dados do ano anterior, com um desenvolvimento contínuo dos modelos. Com isso, esperamos ter a cada ano previsões e diagnósticos mais robustos para acesso não só da pesquisa como para pensar em estratégias visando lidar com os impactos”, explica à Agência FAPESP Maria Lucia Ferreira Barbosa, uma das brasileiras que assinam o artigo. Ela cursou o doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e atualmente está na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Pesquisadora no Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e também autora do trabalho, a bióloga Liana Anderson destaca a importância de “entender o passado e o presente para pensar formas de prevenção para o futuro”.

“Olhando as regiões ao longo do tempo é possível identificar novos pontos de atenção. Temos uma base de dados aberta, pública, acessível e on-line, permitindo que diferentes tipos de pesquisa sejam realizados para responder a uma infinidade de questões. Precisamos entender o que o fogo significa em termos de barreiras para atingirmos as metas do desenvolvimento socioeconômico e ambientais no Brasil e as consequências das queimadas na perda de biodiversidade, no empobrecimento da população e na segurança alimentar, por exemplo.”

Ao tratar da América do Sul na pesquisa, o grupo aponta que, no geral, a região teve uma extensão de incêndios pouco abaixo da média. Mas o Estado do Amazonas foi uma exceção, com número de incêndios atingindo níveis recordes devido à seca histórica e impactando severamente a qualidade do ar.

Brigadistas do PrevFogo/Ibama combatem incêndios florestais em Corumbá (MS). Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Cidade mais populosa da Amazônia, Manaus ficou com a segunda pior qualidade de ar no mundo em outubro de 2023, expondo mais de 2 milhões de moradores. Os cientistas citam que o acontecimento foi tão grave que, em novembro de 2023, o Ministério Público Federal abriu ação civil contra o Estado do Amazonas, exigindo provas de que havia investimento em prevenção e combate a incêndios, conforme previsto no ‘Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento e Incêndios’. Neste mês de agosto, Manaus voltou a ser atingida pela fumaça das queimadas.

Também foram registrados eventos extremos na Venezuela e em partes da Bolívia e do Peru, sob impactos da seca. No Chile, o incêndio em Valparaíso, em fevereiro de 2024, resultou em pelo menos 131 mortes e destruição generalizada de propriedades.

O grupo usou uma combinação de dados de observações globais por satélite, modelos e insights de especialistas regionais.

Mataveli antecipa que para a temporada 2024-2025 o Pantanal deve aparecer com destaque pelas ocorrências que estão sendo registradas. De janeiro a julho deste ano, o bioma teve 4.756 focos, o maior desde 1998, início da série histórica, segundo dados do Inpe.

O pesquisador fez recentemente parte de seu pós-doutorado sobre emissão de gases de efeito estufa por queimadas no Tyndall Centre for Climate Change Research, da Universidade de East Anglia, sob supervisão do professor Matthew Jones, um dos autores correspondentes da pesquisa. 

Temporada extrema

Além de catalogar incêndios de alto impacto globalmente, o estudo se concentrou em explicar as causas em três regiões: Canadá, Amazônia Ocidental e Grécia. Nelas, o clima propício a incêndios – caracterizado por condições quentes e secas que promovem o fogo – mudou significativamente se comparado ao mundo sem mudanças climáticas.

Com isso, os pesquisadores chegaram à conclusão de que as mudanças climáticas ampliaram o risco de ocorrência das condições favoráveis para os incêndios em 2023-24 em pelo menos três vezes no Canadá, 20 vezes na Amazônia e duas vezes na Grécia, país que voltou a sofrer consequências neste mês com ordens de evacuação nas imediações de Atenas e pedido de ajuda à União Europeia para conter o fogo.

Em relação às emissões globais de carbono dos incêndios, as florestas boreais canadenses contribuíram com mais de nove vezes em relação à média, representando quase um quarto das emissões globais. Por outro lado, houve redução das emissões nas savanas africanas.

Usando dados de previsão climática, os cientistas apontam que houve sinais dos incêndios no Canadá com um a dois meses de antecedência, enquanto os eventos na Grécia e na Amazônia tiveram horizontes de previsibilidade mais curtos.

Futuro

Os modelos climáticos usados no relatório sugerem que a frequência e a intensidade dos incêndios florestais extremos aumentarão até o fim do século, particularmente em cenários onde as emissões de gases de efeito estufa permanecem altas.

Até 2100, eventos de magnitude similar ao de 2023 no Canadá deverão ser de 6,3 a 10,8 vezes mais frequentes sob um cenário de emissões médio-alto. Já a Amazônia Ocidental poderá ter uma temporada de incêndios extremos quase três vezes mais frequente e na Grécia estão projetados para dobrar. Por outro lado, um cenário de baixas emissões pode limitar a probabilidade futura de incêndios extremos.

Para a temporada de 2024-25, as previsões sugerem uma probabilidade continuada acima da média de clima propício a incêndios – condições quentes, secas e com ventos – em partes da América do Norte e do Sul, que apresentaram condições favoráveis para incêndios na Califórnia, nas cidades canadenses de Alberta e Colúmbia Britânica e no Pantanal brasileiro em junho e julho.

*O conteúdo foi orginalmente publicado pela Agência Fapesp, escrito por Luciana Constantino

Estudantes do Amapá recebem premiação nacional de conservação da natureza

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Estudantes de engenharia florestal do Amapá em Lages (SC). Foto: Divulgação/Ifap

Estudantes de engenharia florestal da Universidade do Estado do Amapá (Ueap) e do Instituto Federal do Amapá (Ifap) receberam na cidade catarinense de Lages a premiação de melhor apresentação na categoria conservação da natureza, meio ambiente e manejo florestal. Os alunos produziram trabalhos científicos sobre as árvores gigantes da Amazônia e o mapeamento de açaizais com ferramentas de sensoriamento remoto.

O 12° Simpósio Brasileiro de Pós-Graduação em Ciências Florestais ocorreu entre os dias 20 e 24 de agosto. O evento contou com mais de 300 inscritos e reuniu representantes de mais de 50 instituições de pesquisa e educação de 21 estados brasileiros, evidenciando a relevância e o impacto da ciência florestal no país.

“Receber este prêmio é uma grande honra e um reconhecimento pelo trabalho árduo e dedicação da nossa equipe. Apresentamos vários trabalhos, dentre eles um sobre as expedições científicas às árvores gigantes na Amazônia, no qual destacamos o panorama e suas perspectivas. Trabalho no qual foi reconhecido como o melhor no eixo temático mais concorrido do evento”, disse a estudante Manuelle Pereira, do Ifap.

Já o acadêmico Josué Henrique Ramos, da Ueap, apresentou um trabalho sobre a detecção de áreas manejadas em açaizais na Amazônia com ferramentas de sensoriamento remoto.

Os estudantes foram acompanhados pelos professores Robson Borges de Lima (Ueap) e Diego Armando Silva da Silva (Ifap), que destacaram a importância de eventos nacionais para o intercâmbio de conhecimentos e o networking entre profissionais e futuros pós-graduandos.

“Estar entre os trabalhos premiados em evento nacional demonstra a qualidade e importância dos trabalhos científico desenvolvidos no Amapá para ciência florestal”, descreveu o professor Diego Armando.

O congresso nacional foi organizado pela Universidade Estadual de Santa Catarina (Udesc), Campus Lages e pelo programa de Pós-Graduação em Ciências Florestais PPCF-Lages.

*Por Rafael Aleixo, do g1 Amapá

Ex-vocalista da banda AC/DC, Dave Evans faz show na Expofeira 2024 no Amapá

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Foto: Sandra K 

O ex-vocalista da banda internacional de rock AC/DC, Dave Evans, é mais uma atração confirmada na 53ª edição da Expofeira no Amapá.

O cantor se apresenta no dia 31 de agosto, no sábado, no Parque de Exposições da Fazendinha, na Zona Sul de Macapá. O anúncio da atração nacional foi feito nesta sexta-feira (23), através do governo do estado.

Os clássicos do rock vão ser levados ao público amapaense pela voz do cantor que foi membro fundador da banda, que gravou o primeiro single no ano de 1974, com as músicas “Can I Sit Next to You, Girl?” e “Rockin’ in the Parlour”.

Dave iniciou a carreira solo nos anos 2000, quando produziu três álbuns, EPs e ao vivo.

*Por Isadora Pereira, do g1 Amapá

Rede une indígenas e agricultores familiares na resistência ao avanço da soja na Amazônia mato-grossense

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Era uma tarde quente do mês de abril de 2021. O calor é comum no município de Paranaíta, Mato Grosso, região amazônica. A mãe de Roseli notou uma diferença no pé de mamão, que murchara rapidamente naquele dia. Horas antes, naquela tarde e antes do comunicado da mãe sobre a planta, Roseli ouviu e viu um avião rondando a fazenda ao lado da pequena chácara que herdou de seu pai.

O efeito no pé de mamão dava a impressão de que alguém jogou água quente na planta. “Ah mãe, mas o Val não ia fazer isso”, respondeu Rose à mãe, referindo-se ao marido, Osvaldo Brito. As lágrimas vêm fácil pra Rose, como também vêm pra Val quando relembra o caso. “Eu achei que ele tava semeando pé de capim”, comentou a agricultora sobre o avião avistado naquela tarde, há dois anos.

Bastaram algumas horas para as frutas do sistema agroflorestal (SAF) do casal, iniciado dois anos antes do ocorrido, demonstrarem o contato com o químico expelido pelo vizinho. Banana ‘virou o olho’, refere-se aos efeitos no broto da planta, o ‘margaridão’ ficou feio, como classificou, e o pé de mamão enrolou a folha. Os sistemas agroflorestais são um modelo de produção que associa árvores com culturas agrícolas de forma agroecológica, ou seja, sem o uso de pesticidas e outros agroquímicos. Imitam floresta, em algum nível.

O insumo despejado foi o 2,4-D, classificado pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC, na sigla em inglês) como possivelmente cancerígeno, associado a problemas hormonais e reprodutivos e objeto de campanhas de entidades da sociedade civil que atuam na mobilização contra o uso de agrotóxicos no país.

A ação representou desrespeito ao decreto estadual 1.651, de 2013, que determina a distância mínima de 90 metros de casas, fontes d’água e estradas para pulverização aérea de insumos no estado. O caso que tramita na Justiça segue, três anos depois, sem resolução. Em 2024, os responsáveis ainda não foram responsabilizados. 

Mais de vinte propriedades da comunidade Vila Rural Boa Esperança, onde fica o terreno da família, foram atingidas. Alguns cachos de banana, perto da época de colheita, apresentaram caroços nos frutos. Plantações de pés de maracujá, café, abobrinha, abóbora e outras dezenas de variedades foram totalmente perdidas. 

Alguns dos atingidos relataram coceiras na pele, mal-estar, ânsia de vômito e dores de cabeça após a pulverização. Val precisou ir ao hospital buscar atendimento médico duas vezes. Val também quis desistir da plantação, uma ideia que achara animadora pela qualidade dos alimentos produzidos no sistema alguns anos antes. Mas sua companheira há 13 anos, não deixou. 

Roseli, conhecida como Rose, nasceu no Paraná. Seu pai era trabalhador de máquina de arroz. “Sempre ensinou a gente a plantar”, comenta ela. Tinha uma feirinha e começamos a vender nessa feira. “Aqui cortaram uma fazenda e tiraram um pedaço de terra para cada família. Ele fez a inscrição e ganhou essa chácara”, conta.

Chegaram no Mato Grosso com pouco: só com a malinha de roupa, diz ela, adolescente à época. Nove dias dormindo em cima de piso forrado com coberta. A mãe esperava, ainda, um filho. Para alimentar a família, o pai caçava. Cotia marcava presença nos almoços. Duas vezes por semana, Rose ia numa lanchonete da rodoviária do município onde se vendia frango frito e pegava os miúdos como doação.

Antes da terra conquistada, Rose, assim como seus irmãos, parou de estudar para ajudar nas vendas dos frutos da horta que seu pai conseguia plantar na terra de um vizinho. Melancia, laranja – lembra ainda das frutas vendidas para sustento da família.

Depois que conseguiu, começar a tratar a terra e plantar no terreno próprio, um sonho realizado. A família de Rose seguiu o caminho das tantas famílias da região. “A gente plantou, mas as terras vão ficando mais velhas. Aí ainda foi proibido de queimar”, relembra Jonas Dobrovoski, agricultor de Alta Floresta. Hoje referência na produção de bananas, escoadas para hospitais, escolas e mercados da cidade.  

Com números recordes de incêndio e a atenção ao desmatamento desenfreado na região amazônica que se transformara no que até hoje é conhecido como ‘arco do desmatamento’. Em 2004, diante dos números alarmantes de degradação ambiental na Amazônia, o governo federal lançou o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm). O plano resultou na diminuição do desmatamento na região por meio do aumento da fiscalização da derrubada de mata e das queimadas, usada como forma de ‘limpeza’ dos terrenos.

Foto: Macaca Filmes

O uso do fogo, uma prática tradicional na agricultura familiar em todo território brasileiro como uma técnica que permite a eliminação de restos vegetais e a preparação do solo, entrava na lista de atos condenáveis, mesmo que a responsabilidade dos pequenos lotes fosse mínima.

Jonas credita a mudança também ao período em que agroquímicos começavam a ser apresentados por técnicos como soluções para os problemas que surgiam aos poucos. O veneno era incorporado pela agricultura familiar aos poucos, à medida que a terra “empobrecia” de nutrientes e vitaminas pelo uso excessivo.“Então quem fazia a cultura plantava, queimava o roçado e derrubava. Ah não podia mais queimar. Vai fazer o que agora? Adubo”, lembra Jonas. 

“Foi gradativo. Junto com adubo, começaram as pragas, doenças, e aí foi entrando devagarzinho os venenos”, diz. Anos depois, ficava mais clara a diferença entre produção orgânica e a chamada convencional, com uso de agrotóxicos.

“Tinha vezes que vinha um aqui e passava cinco tipos de veneno. Você tem que passar isso e isso, e isso. Nesse dia você passa esse, nesse dia você passa esse, no outro dia você passa esse. Esse aqui você passa cedo e a tarde. Falei, aí vai virar só veneno. Não precisa nem aguar, é só meter veneno e pronto”, lembra Val.

O agricultor explica que, como ele, os que não tinham conhecimento iam sendo levados pelo convencimento dos ditos técnicos.

Assim, alimenta-se uma cadeia: para você conseguir produzir, precisa gastar dinheiro com o uso de químicos. Quem vende é o maior interessado nessa dependência onde uma necessidade leva à outra. “Seu dinheiro fica todo na loja”, conta ele.

Uma relação de dependência. A segunda de Val.

Envenenamento

Anos antes disso, Val olhava para a garrafa de pinga no final e pensava: como vou conseguir mais? Então trabalhava mais um dia – o suficiente para comprar outra. Mais uma. Já morava na rua – resultado da decisão tomada após se envergonhar de ser um pai de família a morar na casa do próprio pai.

Bebeu por toda a noite daquela sexta-feira e acordou ruim no sábado. Pegou sua bicicleta e encostou perto do hospital. Depois não viu mais nada até acordar na cama do pequeno hospital de Paranaíta, norte de Mato Grosso. Val já tinha perdido as contas de quantas cidades onde morou em variados estados: Nasceu no Paraná, depois foi pra Rondônia, São Paulo, Mato Grosso do Sul e, finalmente, Mato Grosso.

Jovem, quando ouviu o nome Mato Grosso, pensou: “Lá deve ser tudo grosso, completo, né?”, conta. “Eu me empolgava com aquele negócio. Quando cheguei aqui pensei: isso é coisa de outro mundo”, comparava com o Paraná, no Sul, onde nascera. “No Paraná não tinha quase nada de mata, era tudo derrubado”, comenta.

No estado sulista, crescera perto da terra e com poucas condições. Do sítio até a escola, lembra, dava oito quilômetros. Era criado com a avó, mãe do pai. Para levar os cadernos e livros até o local de estudo, usava uma sacola de plástico grossa. A única coisa que era comprada em casa era o açúcar, talvez um tecido para comprar roupa: a comida vinha da horta aos fundos.

Cafezais na ‘terra dos outros’, era onde a família trabalhava.

Anos depois, seu pai trocara um carro Opala por um caminhão quando decidira ir atrás de melhores oportunidades – uma vida melhor. Sua mãe abandonara a família e ele seguia o pai – aprendendo a fazer o que ele fazia. Um pouco de tudo.

Em Rondônia, já teve uma prévia da floresta amazônica – um dos três biomas que compõem Mato Grosso, junto do Cerrado e Pantanal. “Podia juntar oito homens que não abraçavam a árvore”, refere-se a uma castanheira localizada no terreno do avô paterno, onde morou por um período. A migração de famílias do Paraná, como a de Val e de Roseli, foi intensificada nas décadas de 1960 e 1970 para a Amazônia, impulsionada pela expansão da fronteira agrícola em estados amazônidas com produção agropecuária proeminente, como é o caso dos estados de Rondônia e Mato Grosso.

Foto: Macaca Filmes

A Amazônia, à época, era “desbravada” com incentivos e propagandas aos estados do Sul que prometiam uma nova vida de fartura e abundância para quem lá pouco tinha. “Corretor levou revista: tinha plantio de arroz, milho, guaraná, tudo. Muito comovente as paisagens das matas”, comenta Marina Aparecida, agricultora de Nova Bandeirantes, norte do estado. O medo de onça, cujo esturro ecoava pelas terras ao norte, era acompanhado de vários outros: medo da malária, do clima desconhecido.

Ana Barbosa demorou um pouco mais a vir para o município de Nova Monte Verde, também na região. Quando chegou, não gostou.

A família de Rodrigo Alves veio em busca de adquirir um pedaço de chão. “A terra subia [em valor] e o dinheiro não dava pra comprar lá embaixo”, comenta o morador da comunidade Nossa Senhora de Guadalupe, município de Alta Floresta, uma das maiores cidades da região.

Val chegou ao estado jovem e achou oportunidade de trabalho na indústria madeireira, que à época, com poucas legislações ambientais no país e na floresta amazônica, ganhava força. Trabalhava numa serraria. Num dia de sábado, o maquinista responsável por descarregar as toras de caminhões, numerosos à época, faltou o trabalho.

Val foi chamado pelo chefe. “Pega aquela máquina. Você vai descarregar aquele caminhão para mim”, ordenou. O paranaense respondeu: mas eu não sei. “Vai e se vira”, disse o patrão. Val lembra do momento: pegava a tora na concha dela e botava no lugar. Assim encheu dois caminhões. Depois disso, trabalhou nove anos e cinco meses nessa função.

Após um acidente de carro que levou à morte do filho do chefe, a depressão do fundador da serraria começou a levar a empresa à falência. E aí a bebida começou a chegar mais perto. “Ia trabalhar na máquina e trabalhava com um litro de pinga do lado”, diz. Era ainda a década de 1980 e a indústria madeireira era pouco fiscalizada e controlada, o que levou a região a rankings de níveis de desmatamento no bioma.

O encanto com o tamanho das árvores da Amazônia, antes símbolo de fartura e surpresa, virava mais trabalho. A castanheira, mesma espécie da árvore “inabraçável” por oito homens em Rondônia, agora era derrubada. “O pé dela tinha que dobrar em quatro pra poder jogar em cima do caminhão, chegava a ter tora de quatro metros”, comenta.

Madeira, pecuária e garimpo marcaram a história e o presente da região norte de Mato Grosso, cuja associação, para o restante do país, à Amazônia, parece estranha para boa parte do país, mesmo que o bioma tenha mais de 500 mil km² no estado.

Em 2022, um projeto de lei tramitava no Congresso Nacional e tentava retirar o estado de Mato Grosso da Amazônia Legal. Mais uma tentativa de grupos ligados ao agronegócio para diminuir a proteção ambiental do estado conhecido como “motor” do setor no país.

Nas últimas décadas, “tapetões” de soja, como são chamadas as plantações monocromáticas na paisagem da região, passaram a se tornar uma referência mais comum a Mato Grosso do que as densas matas de verdes exuberantes e variados. A soja é uma das principais commodities agrícolas de exportação do país, que se estima, em pesquisas científicas, que representa mais de 76% de todo o uso de agrotóxicos do país.

Com um casamento perdido pelo álcool e duas filhas distantes pelo abuso do álcool anos antes dessa abordagem dos técnicos na horta que plantava, Val saiu daquele hospital incentivado pelo amor e apoio da irmã e sobrinha e com uma decisão tomada: de buscar ajuda. Conta isso com lágrimas nos olhos diante da lembrança.

Foto-: Júlia Beatriz

Depois de retomar o contato com a terra num retiro de reabilitação, onde ficou por nove meses, voltou para a cidade para trabalhar. Ajudava sua irmã, que calhou de ser uma amiga que Rose conheceu em um curso de confeitaria, onde a agricultora aprendera a fazer bolos e buscava formas de incrementar a renda.

Também era a amiga que a incentivou a se juntar a ela na venda de salgadinhos e pastéis em uma festa da cidade, onde apresentou seu irmão. No primeiro ano foi só troca de olhares. Na edição seguinte, ele foi trabalhar junto e então o flerte evoluiu para um namoro. Ele perguntou a ela: você tá mexendo com horta? E ela respondeu: “tô!”

“Aí ele veio um dia e começou a molhar a horta pra mim. E eu falei assim: sabe do quê? Pega suas coisas e vêm morar aqui pra me ajudar”, relembra, rindo do início da história do casal.

Dia após dia na lida da horta. Voltava para a terra – agora junto de Rose.

Floresta pressionada: a rede como força

Enquanto isso, a centenas de quilômetros de distância dali, a permanência na terra se mostrava incerta. “O agronegócio nos afeta por estar em torno da nossa terra”, comenta Raimundo Iamonxi, indígena do povo Rikbatska, no noroeste do estado, ao se referir ao seu território.

A Terra Indígena (TI) Escondido está localizada no município de Cotriguaçu, cerca de cinco horas de distância de carro de Paranaíta. Faz parte da bacia do rio Juruena, conhecido pela formação das vistas de águas com pedras lisas e os numerosos “piuns”, um tipo de mosquito cuja picada é demasiada incômoda.  

Conhecido como aguerrido, o povo Rikbatska teve cerca de 75% da sua população dizimada pela pressão de madeireiros, mineradores e fazendeiros na região com os incentivos governamentais voltados ao “desbravamento” da floresta amazônica.

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), hoje cerca de 80 famílias vivem na terra indígena de Raimundo. Uma das formas encontradas para valorização do território e para permanência em suas terras é por meio da árvore que tanto impressionara Val – a mesma depois tombada e levantada pela máquina: a castanheira-do-Pará, também chamada de castanheira-do-Brasil.

A região é conhecida pelos abundantes cascos carregados das amêndoas cada dia mais valorizadas nacional e internacionalmente. Ainda assim, Raimundo diz que seu povo, cuja sobrevivência e vida está entrelaçada à vida da floresta e da castanha, acaba refém de atravessadores do produto que poderia ser uma fonte de renda significativa para o povo pela dificultosa distância do local dos grandes centros. A distância da cidade de Cotriguaçu até Cuiabá, por exemplo, é de mais de 800 quilômetros. A chegada às aldeias, então, ainda mais dificultadas.

Foto: Khayo Ribeiro

Para os Rikbatska, o termo ‘produção orgânica’ é uma concepção nova trazida de fora, assim como os latifúndios monocromáticos e os agrotóxicos. A fim de valorizar o produto historicamente retirado da floresta pelo povo, passaram a aventar a certificação do orgânico – uma estratégia possível. “Tem sido difícil comercializar a castanha pelo preço justo porque não tem certificado”, relata.

Para o analista socioambiental do Programa de Economias Sociais, Rodrigo Marcelino, a área ocupada pelo povo Rikbatska são de suma importância de proteção principalmente no contexto de crise climática. “Os povos indígenas são os grandes guardiões desse carbono acumulado pela floresta em pé nessa região. Eles sofrem a pressão para gerar recurso a partir de um uso de solo completamente diferente do que fazem pelo agronegócio, que gera desmatamento. Então fortalecer as cadeias da sociobiodiversidade e agregar esse valor aos produtos por meio da certificação orgânica é uma das soluções”, avalia.

Algumas lideranças do povo ouviram falar pela primeira vez da Rede de Produção Orgânica da Amazônia Mato-Grossense (Repoama) no Festival Juruena Vivo. A Repoama é a concretização de uma ideia surgida há anos. Hoje tem cerca de 50 famílias.

Diante do entendimento de que era imprescindível apoiar a agricultura familiar para o estabelecimento de cadeias produtivas sustentáveis numa das regiões mais pressionadas pelo desmatamento no país, a organização não governamental Instituto Centro de Vida (ICV) se comprometeu com grupos das famílias agricultoras apoiadas pela instituição a apoiar a busca da certificação orgânica e incentivou a formação da Rede.

Existem três métodos de obter o selo de orgânico atualmente no país. O mais comum, e geralmente o utilizado pelas grandes empresas, é por auditoria. O selo que estampa as embalagens de multinacionais nos mercados em produtos orgânicos é possível por custos altíssimos, inacessíveis para as famílias que produzem os alimentos.

Um outro jeito permite que famílias agricultoras façam a venda direta do produto orgânico, sem necessidade de certificação formal. Mas assim, as associações e cooperativas ficam impedidas de vender a produção como orgânica para mercados institucionais, como órgãos públicos, seja por meio de programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), escolas, creches e hospitais.

Por fim, há o sistema participativo de garantia (SPG). Nessa modalidade, as próprias famílias dos grupos envolvidos – sejam associações ou cooperativas – são responsáveis pela fiscalização da produção umas das outras. “O SPG gera soluções”, comenta Eduardo Darvin, coordenador do programa de Economias Sociais do Instituto Centro de Vida.

Para receber e garantir o selo de orgânico, é necessário seguir uma série de regras nas propriedades, todas dispostas na Lei de Orgânicos (Lei 10.831/2003). E o sistema funciona por meio de três etapas: visitas entre pares, onde as propriedades são averiguadas pelas próprias famílias da rede, visitas do comitê de ética; por fim, a autorização para uso do selo.

Cada grupo tem um comitê de ética formado por um dos integrantes de cada um dos grupos do núcleo e responsáveis por visitar uma amostra das propriedades já aprovadas na etapa anterior de cada uma das organizações. Para Eduardo, a fiscalização é uma espécie de fase de aconselhamento, processo responsável pelo fortalecimento da agricultura familiar de todo território.

“Se precisa de tratamento de água negra, de afluente, por exemplo, a visita irá apoiar e entender quais são as possibilidades para aquela propriedade: seja uma fossa séptica, um silvo de bananeira, por exemplo. O grupo orienta e dá um prazo para que a propriedade se adeque. Se teve alguma coisa que o grupo não orientou, a comissão dá esse segundo apoio”, explica o especialista.

A certificação atua como gancho para a troca de conhecimento que cria resistência.A experiência prática da modalidade da rede foi testemunhada por representantes da agricultura familiar em uma visita ao Rio Grande do Sul em 2019, experiência que mostrou o caminho como possibilidade real.

A rede foi formalizada em 2019 e é composta por 13 organizações comunitárias dos municípios de Alta Floresta, Paranaíta, Nova Monte Verde, Nova Bandeirantes, Cotriguaçu e Colniza, todos municípios localizados nas regiões norte e noroeste de Mato Grosso.

Com atraso decorrente da pandemia da Covid-19 em 2020, a rede só foi credenciada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) no início de 2023, quando iniciou a certificação das famílias. E não só: a Repoama ainda criou o fundo rotativo solidário (FRS), um mecanismo financeiro comunitário para promover a produção orgânica e o desenvolvimento socioeconômico das famílias.

No sistema, as famílias podem fazer empréstimos financeiros de um fundo mantido por todas. É uma alternativa ao crédito rural baseada na economia solidária: a rede é quem decide as próprias normas e regras para obtenção do crédito, como tempo de carência, valores limites para financiamento, taxa de juros e prazos de pagamento.

Um pouco dos sonhos quase realizados

Uma dessas famílias certificadas e já com os documentos em mãos é a de Val e Rose. Repetem uma palavra com frequência: sonho.

“Foi Rose que não me deixou desistir. E hoje dou graças a Deus”, comenta Val, que afirma se sentir melhor do que nunca. Também fisicamente.

Foi mais um caso de alguém que não deixa o outro desistir: como uma vez fora sua sobrinha. Como agora é para as famílias agricultoras ao redor, ainda não certificadas. “A certificação mudou nossa vida, nossa história, mudou tudo”, comenta Rose. “Estamos finalmente felizes agora. Tudo mudou.”

A banana é o carro chefe da produção, seguida do limão taiti. Frutas que abastecem as merendas escolares e as casas de pessoas que vão até a propriedade só para comprar do casal. A demanda é tão alta que o casal não dá conta de atender tudo. 

Enquanto celebram o novo momento, constroem sua nova casa na chácara. Irão deixar a herdada do pai de Rose para o restante da família e conseguiram iniciar a construção graças aos dez mil reais emprestados do fundo solidário, empréstimo já pago.

Idosos, turmas de estudantes de municípios vizinhos, grupos de turistas e entusiastas da produção orgânica visitam a pequena chácara do casal para absorver o conhecimento desenvolvido pelo trabalho diário dos dois.  “Eles tinham o conhecimento mas ainda não aplicavam na realidade. Ele foi vendo que a eficiência da propriedade foi se resolvendo mudando a prática e os custos foram sendo diminuídos também”, comenta Luan Cândido, técnico do ICV que assessora o casal na propriedade.

Para os dois, a compra frequente de uma médica de Alta Floresta é motivo de orgulho – atesta a qualidade da produção. Boa parte começou a ser documentado no perfil do Instagram do casal, onde um gif do selo de orgânico é inserido em frente às fotos e vídeos produzidos cotidianamente por Rose.

“Produzimos alimentos com saúde para alimentar a população da nossa cidade”, comenta. “As pessoas vêm e querem sempre comprar mais. Porque sabem que é bom.” A cada corte de banana realizado de forma mensal, mais de 400 quilos da fruta abastecem o mercado de Paranaíta e região. Como fornecem a produção em parte pela Coopervila, a cooperativa dos agricultores da região ainda em transição para o orgânico, o selo ainda só é usado na venda direta. “Mas já fez efeito nas contas”, diz Val.

O segredo da produção agroecológico, para Val, está no solo. “A castanha precisa do adubo químico pra produzir?”, pergunta ele de forma retórica. “Ela precisa da própria folhagem dela. A folha dela vai fazer a compostagem dela. Vai manter ela, a comida dela tá ali. Vai decompondo e ela vai comendo. Vai se alimentando. O que ela precisa né. O solo que ela precisa? Eu chego num solo desse daqui que é raspado tudo. O cara só química, química, química. Chega um coitado aí num pedaço de terra desse aqui. Igual era aqui. Aqui era só pasto. Acontece o que? Não tem nada tem nada. Você vai fazer uma análise de solo, o que que tem aqui de compostagem? Matéria orgânica? Nada! Zero! Como você vai plantar um pé de coisa e vai produzir? Então química”, resume Val.

Usa como exemplo a árvore que o encantou ao saber de Mato Grosso, a espécie de flora cuja tora ajudou a subir no caminhão antes de ser, ele mesmo, intoxicado pelo álcool. Conhecimento aprendido – o mesmo saber da floresta originária – inato às populações indígenas da região. 

O ingresso do povo Rikbatska em 2024 inaugurou uma nova etapa da rede, que agora conta com saberes e participação dos povos originários da região. A formalização do povo indígena na rede foi dada pela inserção da Associação Indígena Abanatsa, composta por doze famílias da aldeia Babaçuzal da TI Escondido.

Depois dos Rikbatska, surgiu interesse e aproximação dos povos Apiaká, Kayabi e Munduruku. Pelo interesse e nova associação integrante, a Repoama entrou nesse ano com o pedido para o Mapa para obter a permissão de certificação de produtos extrativistas como a castanha, coletada milenarmente pelos povos envolvidos nessa cadeia produtiva.

Foto: Khayo Ribeiro

Mas as aldeias também não pensam em apenas um produto, como em geral acontece com fazendeiros e commodities. A busca é pela valorização do que eles melhor fazem: de toda a diversidade.

“Nós também temos interesse em certificar outros produtos tradicionais da roça”, comenta Raimundo. Banana, milho, cará, batata iami, amendoim, açaí, patuá e buriti são alguns dos citados pelo indígena.

Os conhecimentos da roça foram repassados num intercâmbio na propriedade de Val e Roseli nesse ano. “Podemos ensinar o que sabemos e também aprender muito”, comentou Rose, que sempre registra os encontros para falar de produção orgânica.

Além do encontro entre os grupos, a Repoama também promoveu um encontro de mulheres entre as mulheres da agricultura familiar e as mulheres indígenas. 

“A troca de experiência foi importante porque muitas coisas que a gente sabe elas [mulheres indígenas] não sabiam. E o contrário também. Muitas coisas que a gente não sabia elas sabiam. Então, por meio do diálogo, da conversa, a gente aprendeu como fazer e ensinou também”, comentou Rosângela Santos, da Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais e Artesãs de Nova Monte Verde (Amuverde), uma das organizações da rede, para uma reportagem local.

Forma-se, assim, um intercâmbio cuja temática – a produção agroecológica – é apenas um gancho que aponta dores semelhantes de pessoas bem diferentes. Vítimas de um mesmo processo. Mas capazes de se fortalecerem. A expansão da soja segue em curso.

De acordo com dados do Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária (Imea), a área plantada de soja deve aumentar em 1,5%, alcançando quase 13 milhões de hectares na safra de 2024/2025. O risco ainda existe e aumenta. “Aviões ilegais são cada vez mais vistos, os silos de sojas viram paisagens”, comenta Eduardo.

“Mas a rede mostra que esses grupos estão organizados e formam uma barreira”, diz ele.  É uma força que, em meio às intoxicações da terra e do corpo, insistem na realização de sonhos – de Val, Rose, Raimundo e tantos mais.

“Muito obrigado”, escreveu Raimundo com uma caneta num papel nas respostas para a entrevista sobre o ingresso na rede. “Esses são um pouco de nossos sonhos quase realizados”.

*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Nonada Jornalismo, escrito por Júlia Beatriz de Freitas