Ceramistas da Comunidade Raposa I, no município de Normandia, em Roraima, sentem orgulho da arte secular e passam a cultura de geração para geração.
“Não podemos deixar nossa cultura acabar. É uma herança que vem dos nossos ancestrais”.
É dessa forma que as mulheres do povo Macuxi enxergam o trabalho que fazem com o barro na comunidade Raposa I, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. É em suas mãos habilidosas que a argila perpetua uma tradição secular e se transforma em panelas de barro. Característica da região, esse costume passado de geração em geração desde 1870 agora está em processo para ganhar um selo de certificação.
A produção das panelas de barro por mulheres Macuxi é uma atividade ancestral e representa orgulho para a comunidade. Lá, vivem 1.226 pessoas e cerca de 246 famílias. Desse total, 20 são ceramistas.
O trabalho garante fonte de renda para os indígenas da região. Com o selo de Indicação Geográfica, vai ganhar a chancela de referência ao local onde são produzidas, que é Raposa Serra do Sol, município de Normandia, Nordeste do estado – e, assim, vai garantir que o produto seja protegido pelas leis de propriedade e direitos industriais.
“Movimentar para não esquecer”
Os indígenas não conseguem definir uma data de quem iniciou primeiro a tradição, mas garantem que o trabalho começou há muito tempo, ainda no século 19, quando os seus ancestrais ainda viviam no arredores das serras da terra indígena, de onde o barro é retirado. Hoje em dia, eles ainda vivem nas regiões das serras, porém em comunidade mais afastadas dos pés das montanhas.
A indígena Macuxi Claucimar da Silva Raposo, de 48 anos, herdou a tradição de mulheres da família e exerce o trabalho artesanal com o barro há mais de 15 anos. Para ela, a cultura precisa ser movimentada e passada adiante. Como exemplo, já ensinou a filha adolescente, de 12 anos. “Essa é a nossa cultura. A gente precisa movimentar para não esquecer. Para lembrar todos os antepassados que faziam, os nossos bisavós. É uma herança cultural”, conta.
Suas ancestrais produziam panelas no pé das serras e utilizavam as mais variadas técnicas, algumas até desconhecidas pelas gerações atuais. “Tem muitas técnicas. A gente trança [com métodos] de rede, tipoia, tupé, tem tipiti, tem várias. Mas, muita gente não sabe porque os nossos avós já se foram, né?”, disse, acrescentando que o que ela aprendeu, quer manter manter e repassar para gerações futuras.
O ofício com o barro carrega uma importância muito grande para os indígenas e perdê-lo é algo que preocupa as ceramistas. Com a tecnologia, as pessoas mais jovens já não sentem tanto interesse pela arte ancestral. “No tempo moderno, eles só estão no celular”, diz, preocupada, Claucimar.
A falta de interesse dos mais novos não é a única preocupação das artesãs. As mudanças climáticas também ameaçam a tradição indígena, de acordo com a gestora ambiental do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e especialista em mudanças climáticas, Sineia do Vale, que é líder indígena Wapichana.
“Elas perceberam que onde elas tiram esse barro está ficando muito mais seco e ele [o barro] é tipo uma argila. Elas estão notando que com essa seca fica muito difícil a retirada do barro e posteriormente trabalhar com ele, porque ele tem que ser molhado. Então, as mulheres precisam de mais força para retirar esse barro, precisam de mais gente para ajudar, e isso dificulta um pouco o trabalho”, explicou.
Para Claucimar, o garimpo ilegal também fragiliza o trabalho: “O garimpo e as pessoas estão destruindo nossa comunidade e lá onde tem o nosso barro também. Eles [garimpeiros] jogaram [parte do barro] e não temos mais como pegar lá”.
Vovó Barro
E a mentora de toda essa tradição da panela de barro foi a Ko Ko Non, que em macuxi quer dizer “Vovó Barro”. Trata-se de uma entidade indígena, um ser ancestral responsável pelo trabalho realizado com a argila, explica Dayana Soares, que é pesquisadora, professora e doutora em Artes Visuais da Universidade Federal de Roraima (UFRR).
“Ela é terra, ela gera o alimento, ela gera as plantas, ela gera a mandioca, ela gera tudo que existe enquanto a gente consome, né? E depois que ela gera esse alimento, ela também alimenta o povo porque antigamente, quando se descobriu a cerâmica, foi através da panela de barro que se alimentou o povo. Então, se não fosse esse alimento, esse sustento não apenas biológico, mas também cultural, como seria?”,
disse Dayana.
Até hoje os ensinamentos da Ko Ko Non são seguidos à risca. Como alerta, lembram do mantra “Vovó Barro não vai gostar, Vovó Barro vai ficar zangada”. Para não deixá-la assim, quem manipula a argila que se transforma em panela segue regras como: as mulheres não podem tocar no barro durante o período menstrual, isso para não adoecer ou não correr o risco do artesanato desandar.
Estar feliz também é um pré-requisito para participar da produção. Segundo os ceramistas, durante o processo, todos os sentimentos são passados para a entidade “vovó barro”. Assim, se estiver triste, a tristeza danifica a peça, que racha, quebra e até explode dentro da fogueira – o último processo do artesanato com o barro.
Quando estão de luto, a recomendação é de que passem um ano sem trabalhar com o barro. No entanto, segundo a ceramista Elivângela Amaro Raposo, de 28 anos, é muito difícil ficar tanto tempo longe da cultura ancestral.
“Nós não podemos mexer estando de luto. Quando os nossos parentes morrem a gente tem que passar um ano. Só que a gente não aguenta ficar tanto tempo. Mas a gente não pode mexer com raiva ou de luto, porque [os produtos] racham. O barro sente e a nossa tristeza vai toda para ela, para a vovó barro. As peças nunca dão certo, às vezes elas vão perfeitinhas no fogo, mas lá elas explodem”, explicou.
Pedir permissão também é algo indispensável: antes de trabalhar com o barro, os ceramistas passam por um processo de purificação, onde elas têm partes do rosto pintado pelo vermelho do urucum e participam de uma reza para espantar “as coisas ruins”.
“A gente usa para ir a serra porque lá tem coisas que a gente chama de bicho, né? Lá tem demônio, tem muita coisa. Então, a gente usa isso aqui para não dar mal olhado e porque a vovó também precisa disso, para a gente não dar quebrante nela e ela também não dar quebrante na gente”, explicou Claucimar.
Expansão para manter a cultura
Até 2012, os homens e as meninas menores de 12 anos não podiam trabalhar com a tradicional argila no povo Macuxi. À época, as panelas eram produzidas somente por mulheres dentro de um quarto e só podiam ser vistas quando já estavam prontas.
Atualmente, já há crianças de três anos aprendendo a modelar o barro e os homens se tornaram peças importantes no ofício, uma forma de garantir a continuidade da cultura – e tudo iniciou com o consentimento do ser ancestral Ko Ko Non. Um dos primeiros ceramistas homens da comunidade, Jarisson Raposo, de 23 anos, destacou a importância da participação masculina.
“A gente foi quebrando um pouco essa regra que elas tinham e é muito legal estar envolvendo homens dentro disso também. As mulheres também precisam da força masculina porque é um trabalho bem pesado. É importante os homens estarem junto com elas, trabalhando, fazendo panela. É mais a questão da força e da renda, que ajuda bastante”,
afirma Jarisson.
Na avaliação da pesquisadora Dayana Soares, o toque místico da Ko Ko Non pode ser o motivo de a cultura durar tanto tempo e se perpetuar por gerações.
“Essa cosmologia vem perdurando há muito tempo e talvez seja muito provável que tudo isso ocorra até hoje porque a Vovó Barro, a grande mentora disso aqui, está por trás, segurando esse grande saber ancestral”, diz.
Cultura e terapia
Além de manter a cultura e gerar renda para as famílias, o contato com o barro também pode estimular melhorias na saúde dos indígenas. O ceramista Jarisson Raposo enxerga o trabalho como um tipo de terapia. Ele disse que e encontrou no modelo de artesanato uma forma de lidar com a depressão e a ansiedade.
“O barro na minha vida é um pouco de tudo. Dali eu tiro a minha renda e ele está me ajudando no tratamento da depressão e ansiedade, é uma terapia”, afirma o jovem. “A argila é isso para mim: uma coisa sagrada, da terra. Enquanto existir, nós vamos proteger o nosso local, onde fica o nosso barro, onde tem a vovó barro. Para a gente, a vovó é sagrada mesmo”, completa.
Para Elivângela Raposo, o trabalho reúne a felicidade e a harmonia. A artesã caracteriza a função como um “poder muito importante” . Para ela, o ofício não pode acabar: “O barro faz a gente mudar, faz a gente pensar. O barro é importante porque se trabalha com amor e com carinho, e é lá [durante o processo] que a gente se sente feliz, se sente à vontade. Então, é importante manter a cultura viva, não podemos deixar a nossa cultura acabar, é uma coisa que vem dos nossos ancestrais”.
Processo artesanal
A fabricação das panelas por ser considerado simples, se considerar as etapas do processo em si, até chegar às cozinhas. Mas, a atividade envolve esforço físico, técnicas e muito conhecimento sobre a cultura Macuxi e tudo que envolve a vovó barro.
A escolha do barro é a parte mais importante do processo. Ele pode ser áspero ou macio – e são essas características que determinam em que tipo de produto ele vai ser utilizado.
As panelas de tamanho grande são fabricadas com o material mais áspero, que evita a quebra durante o uso. Já as de tamanho pequeno precisam ser feitas com o barro mais macio. A média é fabricada com a mistura dos dois tipos.
Para começar a produção, as mulheres buscam a matéria prima nas serras, distante a cerca de 8 km da comunidade Raposa. As ceramistas sobem a montanha de um lado e descem do outro, onde coletam a argila. O caminhada demora cerca de 4 horas.
Com o barro dividido entre dois ou três sacos de fibra, elas retornam à comunidade e seguem para a Casa de Cultura Amooko Epu’kena, que quer dizer “o grande criador” em Macuxi. No espaço, o material é seco ao sol e ao atingir o grau de umidade perfeito, é pilado e peneirado.
Todo o barro retirado das serras é aproveitado. As sobras das peneiras, por exemplo, são colocadas dentro de tambores com água. Após um dia, o material se transforma em uma “goma de barro”, utilizada na confecção das cerâmicas.
Com a goma e o barro em pó, as ceramistas iniciam a modelagem das panelas. Inicialmente, os dois materiais são misturados e ao atingirem uma determinada homogeneidade, a massa descansa por duas horas ou, no máximo, uma noite.
Depois, a massa é modelada a mão e passa por um aperfeiçoamento de até dois dias, dependendo da data de entrega do produto. Durante o processo, a peça também é polida com uma pedra de jaspe e aquecida em um forno a lenha, por 20 ou 30 minutos.
Aquecida, a panela é coberta por pedaços de caimbé, uma árvore encontrada no lavrado roraimense, e queimada. Após a queima, as panelas passam por um processo de “cura” onde os indígenas cozinham arroz ou tucupi, molho tradicional da região Norte, extraído da mandioca brava, dentro da peça, que filtra o óleo.
“Depois disso ela já vai estar pronta para uso, para qualquer coisa, qualquer tipo de comida. A panela vai para o forno, o fogão a gás e o fogão a lenha também”, explica Jarisson.
O conhecimento não é restrito aos moradores da comunidade indígena. A tradição também é compartilhada com as pessoas que visitam a comunidade, que realiza o etnoturismo e recebe visitantes de todo o mundo. A ideia é apresentar a grandiosidade da cultura macuxi.
A antropóloga da Natureza e Cultura Internacional pela Universidade Cornell, nos Estados Unidos, Leda Leitão Martins, explica que a atividade secular precisa ser fortalecida e a troca de experiências beneficia toda a sociedade roraimense.
“Essa diversidade étnica cultural tem que ser alimentada, valorizada, respeitada e colocada em um lugar de destaque, de protagonismo. O protagonismo é delas, das mulheres indígenas e eu acho que isso enriquece a todos nós em Roraima”,
ressalta.
Selo de referência
Prontas, as panelas de barro macuxi alcançam as cozinhas de Roraima e até as de fora do Brasil. O produto já foi vendido para Boa Vista, Normandia, Amazonas, São Paulo e até a Guatemala. Conhecidas, elas devem ganhar voos ainda mais longos e um reconhecimento muito maior.
Para que elas tenham este reconhecimento, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) iniciou o processo que garante o selo de Indicação Geográfica (IG) do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).
Com o selo, o produto passa a ter uma indicação de procedência, concedido para localidades que se tornaram conhecidas e reconhecidas a nível nacional e também internacional como um centro de fabricação de um determinado produto.
Além disso, as panelas vão ser protegidas pelas leis de propriedade e direitos industriais. De acordo com a gestora do Projeto de Indicação Geográfica e analista do Sebrae, Fabiana Duarte, a Indicação Geográfica é o reconhecimento da panela de barro e pode agregar valor ao produto feito pelas mulheres macuxi.
“Ela vai ter um selo de procedência que agrega valor. O Sebrae junto a comunidade da Raposa I, está trabalhando a Indicação Geográfica das panelas de barro da Raposa que hoje já são conhecidas no estado e fora do país também. Mas elas precisavam ter uma notoriedade, um selo de procedência de onde vem o produto”, explica Fabiana.
O Sebrae tem realizado a ação por meio de consultoria iniciado em maio de 2021. O processo envolve dez etapas: sensibilização das ceramistas, formação de um comitê gestor, capacitação do comitê, adequação de conselho regulador, criação de intensidade visual, dossiê histórico, delimitação geográfica , elaboração de um Caderno de Especificações Técnicas (CET), simulação do processo e o protocolo e acompanhamento.
A ação já está em fase de documentação e deve ser entregue ao Instituto ainda neste ano. Caso seja aprovado, o produto vai ser a primeira panela de barro indígena do Brasil com Indicação Geográfica.
“No Brasil nós já temos o reconhecimento de uma panela de barro, só que panelas de barro com indígenas vai ser a primeira indicação geográfica do Brasil. Então, é um peso muito bacana para eles, um valor que vai agregar muito”, ressalta a analista.
*Por Yara Ramalho, g1 RR