Mulheres indígenas trocam experiências sobre cultura das panelas de barro

Encontro entre indígenas de Roraima e do Mato Grosso do Sul aconteceu na Comunidade Indígena Raposa I, na Terra indígena Raposa Serra do Sol, no Norte de Roraima. 

Separadas por 2.564 km, mas unidas pelo barro, a arte e uma cultura ancestral. Mais de 20 mulheres indígenas são testemunhas de uma troca de conhecimento sobre a arte de fazer panelas de barro entre três povos Macuxi, da comunidade Raposa I, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, e Kadiwéu e Terena, distribuídas por terras do Mato Grosso do Sul. Com diferentes costumes, elas se reuniram em intercâmbio com foco na luta por manter as tradições.

A produção das panelas de barro é uma atividade ancestral e motivo de orgulho para as mulheres dos três povos indígenas. Elas buscam a valorização da cultura e encontram no barro o sentido da própria vida.

“Estou representando a minha etnia Kadiwéu através dela. Ela [cerâmica] é a minha vida, sem ela eu acho que não viveria”, afirma Creuza Begilio, de 50 anos.

Ceramista da etnia Kadiwéu, Creuza Begilio, de 50 anos. Foto: Yara Ramalho/g1 Roraima

O intercâmbio cultural aconteceu durante o ‘Encontro Ancestral: Barro, uma linguagem da terra’, na Raposa Serra do Sol, localizada no município de Normandia, Nordeste de Roraima, e ligou as duas regiões do Brasil. O evento teve o apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) em Roraima.

O encontro entre as mulheres indígenas foi promovido pelo projeto ‘Bem Viver’ em parceria com o Conselho Indígena de Roraima (CIR). De acordo com o etnoturista e representante da comunidade Raposa I, Enoque Raposo, a ideia surgiu após uma visita dele até as comunidades do Pantanal mato-grossense.

“O coordenador do projeto me encontrou [nas redes sociais], viu a importância do trabalho que divulgo e, com isso, tivemos a ideia de fazer um trabalho com as mulheres do Mato Grosso do Sul. Então, fui em um encontro que ocorreu no município de Bonito, em duas comunidades, e fiz o convite especial para esse evento”, lembrou Enoque.

A reunião das mulheres serviu para fortalecer o ofício com o barro e favoreceu a todas as pessoas da comunidade, avalia a antropóloga da Natureza e Cultura Internacional pela Universidade Cornell, nos Estados Unidos, Leda Leitão Martins.

“Isso gera um movimento de ebulição cultural, eu acho que favorece a todos. Nós somos o Estado mais indígena do Brasil e a gente tem uma riqueza, que são os povos indígenas”,

disse.

Encontro reuniu mulheres de três etnias indígenas. Foto: Reprodução/ Yara Ramalho

“Essa diversidade étnica cultural tem que ser alimentada, tem que ser valorizada, tem que ser respeitada e colocada em um lugar de destaque, de protagonismo. O protagonismo é delas, das mulheres indígenas”, ressalta a antropóloga.

A ceramista do povo Teresa, Selma Polidorio, de 38 anos,disse que o intercâmbio cultural, além de permitir que ela conhecesse a história outras pessoas, possibilitou que incorporasse, na sua cultura, uma nova forma de trabalhar com a argila: “Também estou muito feliz por poder encontrar as mulheres que fazem o mesmo trabalho, só que de uma forma diferente. O que eu aprender aqui eu tenho certeza que eu vou ensinar lá onde eu moro”.

A ceramista vive na aldeia Cachoeira, localizada na cidade de Miranda, a 186 km de Campo Grande, na região oeste do Mato Grosso do Sul. Lá, assim como na história do povo Macuxi, o trabalho é uma herança de família e ela já passou o conhecimento adiante, ensinando a filha, de 8 anos.

“Quero que ela aprenda desde criança para a gente nunca perder a nossa cultura, porque isso é muito importante, é a nossa raiz, é a nossa cultura e nós devemos valorizar cada vez mais”, desejou.

Selma Polidorio, de 38 anos, ceramista Terena. Foto: Reprodução/ Yara Ramalho

Diferente das panelas macuxi que, inicialmente, só eram produzidas por mulheres, no povo Terena as cerâmicas sempre foram confeccionadas por todas as pessoas e não há muitas regras para trabalhar com o barro.

Há uma regra: antes de iniciar a modelagem, quem vai trabalhar com o barro precisa ficar atento a higiene e evitar tocar na argila com as mãos sujas de comida. O contato com o sal ou algum outro tempero pode estragar a peça.

“Quando a gente mexe com argila não pode ter contato com comida, porque se misturar com algum tipo de óleo ou sal a cerâmica não vai prestar, vai rachar e começar a quebrar. Então, a argila é muito sensível nessas partes, tem que ter cuidado”, ressalta Selma. 

Cerâmicas feitas por mulheres da etnia Kadiwéu, do Mato Grosso do Sul. Foto: Reprodução/ Yara Ramalho

Já no povo Kadiwéu, há apenas uma regra: apenas mulheres podem trabalhar com a argila, de acordo com Creuza Begilio. A ceramista vive na cidade de Porto Murtinho, a 425 km da capital Campo Grande.

“Na minha etnia só trabalham as mulheres, é uma regra. As crianças também podem, desde que sejam meninas. Eu já estou ensinando a minha neta de seis anos”, disse Creuza.

Apesar das poucas diferenças culturais, a fabricação das panelas é igual para entre os três povos indígenas. Para começar a produção, o barro é coletado nas serras, seco ao sol, pilado, peneirado e separado em duas partes.

Uma das partes é colocada dentro de tambores com água e, após um dia, o material se transforma em uma espécie de “goma de barro”, utilizada na confecção das cerâmicas. A outra é utilizada como um pó que, misturado à goma, dá início a modelagem das panelas.

Com a peça pronta, a diferença entre as culturas surge novamente. Na cultura Terena, as cerâmicas tem detalhes florais, na Kadiwéu há presença de cores e detalhes geométricos, e, na Macuxi, os detalhes são mínimos.

“A gente também usa essas pinturas florais no nosso corpo, quando vamos para alguma festa. Nós fazemos esses detalhes no rosto e a gente também passou isso para a cerâmica. Então, é uma celebração, estamos expondo nossa cultura”, contou Selma Polidorio.

Argila usada na confecção das panelas de barro. Foto: Reprodução/ Yara Ramalho

Na Kadiwéu, os detalhes geométricos também tem relação com as pinturas corporais e as cores representam o que é importante para eles, como a esperança (verde), a riqueza na saúde (amarelo) e a terra (vermelho).

Já na cultura Macuxi, as cerâmicas não possuem muitos detalhes. A maioria das peças é lisa e sem desenhos. Algumas são parcialmente tingidas pelo jenipapo, um fruto nativo da América do Sul, que produz um corante natural na cor azul.

Após a pintura, as panelas são queimadas. Ao fim da queima, na cultura Macuxi, elas passam por um processo de “cura” onde as indígenas cozinham arroz ou tucupi, molho tradicional da região Norte, extraído da mandioca brava, dentro da peça, que filtra o óleo. Nas outras duas etnias, essa prática não acontece, mas serão apresentadas as pessoas.

“É um privilégio muito grande poder levar o que eu aprendi para a minha comunidade. Vou ensinar tudo o que eu aprendi quando chegar lá”, planejou Selma.

Cores utilizadas nas cerâmicas representam as coisas que os indígenas Kadiwéu consideram importantes. Foto: Reprodução/ Yara Ramalho

 *Por Yara Ramalho, do g1 Roraima

Publicidade
Publicidade

Relacionadas:

Mais acessadas:

Estudo internacional mostra que relação da Amazônia com a seca não é uniforme

O território tem capacidade variável de resposta à crise climática e algumas regiões parecem ter chegado ao ponto de colapso ecológico.

Leia também

Publicidade