No Amazonas, durante esse período, os filhos dos hansenianos eram enviados para o Educandário Gustavo Capanema ou dados para outras famílias
O documentário “Órfãos de Pais Vivos”, do diretor manauara Marcos César, resgata um triste episódio da história recente do Brasil, o isolamento forçado dos portadores de hanseníase e a retirada de seus filhos, que eram enviados para educandários ou entregues para adoção com ou sem a permissão dos pais. Situações essas amparadas por força da Lei Federal 610/1949 que estabeleceu normas para a profilaxia da lepra, como a Hanseníase era popularmente conhecida.
Pressionado pela população que temia ser contagiada pela doença, o governo brasileiro alinhou-se à corrente médica que defendia o isolamento dos hansenianos como medida mais efetiva para controlar a proliferação da moléstia, opção que nunca foi consenso na comunidade médica, haja vista que a Noruega obteve sucesso no controle da doença apenas com adoção de medidas sanitárias e educação da população.
A opção pelo isolamento compulsório dos “Leprosos”, como eram chamados pela população os portadores de hanseníase, apenas serviu para potencializar a discriminação contra os doentes. “o que fizeram com os hansenianos no Brasil só encontra paralelo com o que se fez aos judeus na Alemanha nazista”, observa o Advogado Domingos Oliveira, um dos filhos separados que relatou sua história no documentário.
No Brasil, a política oficial de isolamento dos “Leprosos” foi baseada em um tripé formado por uma rede de Hospitais-Colônia, instituições de saúde de internação compulsória, os Preventórios, instituições que receberiam os filhos dos hansenianos compulsoriamente internados e ainda os Dispensórios, um serviço de busca ativa de novos casos, uma espécie de polícia sanitária responsável por encontrar doentes de Hanseníase e levá-los para internação forçada.
No Amazonas, durante esse período, os hansenianos eram internados no Leprosário Belisário-Pena, na Vila de Paricatuba em Iranduba, e posteriormente no Hospital-Colônia Antônio Aleixo, em Manaus e seus filhos eram enviados para o Educandário Gustavo Capanema ou dados para outras famílias.
O documentário “Órfãos de Pais Vivos” colhe os relatos dos filhos de hansenianos que diante das câmeras descortinaram o drama da separação familiar forçada, e relataram os maltratos sofridos no preventório ou nas mãos das famílias adotivas, para onde sobretudo as meninas eram levadas apenas para serem empregadas domésticas não remuneradas.
A obra, filmada na Colônia Antônio Aleixo e na Vila de Paricatuba, é fruto do Prêmio Manaus de Conexões Culturais, promovido pela ManausCult no âmbito da Lei Adir Blanc com recursos oriundos do Governo Federal, além de ter sido realizada em parceria com a TV Encontro das Águas que exibirá a obra na íntegra em 2021.
Segundo o diretor da obra, Marcos César, é extremamente importante divulgar esse episódio recente da história, sobretudo neste momento em que os filhos separados estão lutando para receber do governo brasileiro uma reparação por todo o sofrimento que lhes foi imposto por uma política de estado equivocada. “Em 1949, quando o Brasil passou a internar compulsoriamente os hansenianos e a separá-los dos seus filhos, já fazia 8 anos da descoberta das Sulfonas, drogas eficientes no tratamento da doença, ou seja, o governo brasileiro começou a encarcerar seres humanos doentes numa época em que isso nem era mais usado no resto do mundo e só encerrou de vez essa prática em 1986” destaca Marcos César.
A perda do vínculo e a desestruturação familiar foram, sem qualquer dúvida, a pior consequência que a história do isolamento compulsório trouxe para os filhos de pessoas com hanseníase, mas seus relatos também revelam as sequelas do preconceito que enfrentaram, antes, durante e depois do período de afastamento compulsório de suas famílias. Sem a proteção de seus pais, a maioria não teve condições adequadas de escolarização e socialização e enfrentou dificuldades para se inserir no mercado de trabalho e no seio da sociedade.
“Órfãos de Pais Vivos” é sobretudo um alerta sobre o perigo das políticas baseadas na ideia de que é bom segregar seres humanos, seja por qual for razão, pois tal conduta desumaniza pessoas tornando socialmente aceitável que seres humanos sejam tratados como objetos que podem ser descartados em nome do bem-estar da maioria. Como observa a pesquisadora amazonense Maria de Nazaré de Souza Ribeiro em sua tese de doutorado sobre a história da Colônia Antônio Aleixo “A segregação anula a cidadania, fazendo com que o indivíduo não seja considerado um ‘semelhante’ e, portanto, alguém revestido de direitos”.