Variação da umidade na Amazônia pode ajudar a explicar diversidade de aves

Existem duas teorias mais aceitas para explicar a diversificação de espécies na Amazônia. A hipótese dos rios como barreira diz que os padrões de diversidade biológica atuais, ou seja, as características diferentes que surgiram ao longo da evolução em cada espécie, seriam efeito dos grandes rios separando as espécies. Já a hipótese dos refúgios explica a origem desses mesmos padrões como resultado de alterações climáticas ocorridas ao longo dos ciclos glaciais e interglaciais, quando a fauna e a flora ficaram concentradas em fragmentos grandes e mais isolados entre si.

Um estudo publicado no mês de julho na revista Science Advances inova ao conciliar as duas explicações trazendo o conceito de gradiente de umidade, isto é, a variação gradual da umidade, que tende a ser maior no oeste amazônico e menor em direção ao leste.

“O grande achado do artigo publicado é que agora temos um modelo um pouco mais completo, que considera não só os rios como barreiras e as alterações climáticas, mas também mudanças que atuaram de diferentes modos ao longo de toda a Amazônia”, explica Sofia Marques Silva, uma das autoras do artigo juntamente com seu orientador, professor Alexandre Aleixo, do Instituto de Biociências (IB) da USP.

Foto:Pablo Cerquera/USP

Diversos trabalhos

O artigo A dynamic continental moisture gradient drove Amazonian bird diversification (Gradiente dinâmico de umidade continental levou à diversificação de aves amazônicas, em português) se apoiou no esforço de diversas outras pesquisas para unir as duas hipóteses. A dos refúgios, proposta pelo ornitólogo Jürgen Haffer há 50 anos, e a dos rios, centenária, oriunda de Alfred Russel Wallace, cofundador da teoria da evolução junto com Charles Darwin.

No começo da última década, ocorreu um aumento significativo do número de expedições de campo na Amazônia brasileira. As amostras coletadas finalmente puderam ser analisadas em laboratórios moleculares recém-estabelecidos.

Os estudantes eram, em sua maioria, oriundos da pós-graduação de instituições científicas sediadas nos Estados que a Amazônia abrange, mas também de outras universidades de renome.

Foto:Alexandre Aleixo/USP

“O paper [artigo científico] é resultado de uma releitura de dados que foram gerados por vários pesquisadores ao longo da última década. Há dados do próprio orientador da Sofia, professor Alexandre Aleixo, de vários dos seus alunos e diversas instituições”, explica Fernando d’Horta. Ele fez doutorado no IB, assim como Sofia Silva, e contribuiu com o artigo cedendo seus dados.

Fernando d’Horta e os outros colaboradores também trabalharam na reanálise de seus estudos anteriores, para que estes pudessem ser comparados. Era preciso entender os tempos de divergência entre as linhagens de espécies das aves distribuídas por toda a Amazônia. Além disso, trabalharam para resgatar a história demográfica dessas populações, como, por exemplo, a variação destas ao longo do tempo.

Das instituições que tiveram participação no estudo por meio de seus pesquisadores, além do IB,  destacam-se o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), a Universidade Federal do Pará (UFPA), o Instituto de Biodiversidade da Universidade do Kansas e o Museu Paraense Emílio Goeldi, onde a cientista Sofia desenvolveu estudos que contribuíram para originar o artigo.

Regiões abrangentes

A dimensão da Floresta Amazônica corresponde a mais de um terço do território brasileiro, bem como porções de países sul-americanos. São eles: Peru, Bolívia, Colômbia, Venezuela, Guiana, Equador e a Guiana Francesa, departamento ultramarino da França.

Foto:A.Gambarini/USP

Apesar de ter foco no estudo da Amazônia brasileira, a fim de abranger toda a região amazônica, o artigo separou o local em territórios levando em conta a capacidade de expressão das espécies estudadas e o dinamismo dos rios, que nem sempre ficaram com o mesmo curso ao longo dos milênios. Todos esses fenômenos tiveram um papel importante na diversificação da Amazônia. “Assim, temos as regiões de Napo, Inambari, Jaú, Imeri, Guiana, Rondônia, Tapajós, Xingu e Belém”, diz Sofia Silva.

Ao todo foram combinadas 23 espécies ou conjuntos de aves que vivem na floresta, com análise de 157 linhagens, 1.050 exemplares com análise de DNA, mais 6.527 registros de observação dessas aves por toda a Amazônia. Mesmo com esses números, a cientista relata a dificuldade em se ter uma boa representatividade e amostragens de indivíduos que sejam amplas o suficiente para abranger toda a área de floresta.

“É uma área muito grande de floresta tropical que traz perguntas sobre como surgiu toda a diversidade. É difícil conseguir chegar a um consenso e hipótese única, porque são muitas espécies que possuem suas particularidades como respostas diferentes às variações do clima, às mudanças da paisagem dos rios, ao aparecimento da floresta”, explica a pesquisadora.

Desse novo estudo feito, foi possível concluir que em determinado momento as linhagens vistas divergiram e que teve um momento em que uma população se tornou duas populações distintas. “E isso nós estimamos com base nas análises de DNA que fizemos”, conta ela.

Foto:A.Gambarini/USP

Impacto no clima

É notória a diversidade que o bioma amazônico apresenta na sua fauna e flora. Com espécies descobertas constantemente graças a sua extensão e áreas remotas, são muitos os impactos que qualquer modificação na floresta pode causar. O gradiente de umidade traz uma nova forma de olhar essa diversidade, que já era relativamente conhecida em outros grupos de seres vivos, como mamíferos, e da observância de que o oeste era mais diverso do que o leste da Amazônia.

“Porém, colocamos o padrão anti-horário, em que as espécies do norte e do oeste divergiram primeiro e depois puderam colonizar o sul e o sudeste, com um papel superimportante para o clima, que permitiu o avanço da floresta mais recentemente”, aponta a cientista.

Foi só depois desse avanço da floresta, por conta do clima, que as espécies foram colonizar e permanecer na região do sudeste amazônico, na área que compreende o Xingu e Belém. Por conta disso, os dados publicados mostram que as espécies de aves do sudeste são as mais jovens, surgindo quando a floresta úmida se expandiu para essa área.

Como o clima não variou de forma homogênea em toda a Amazônia, os rios tiveram cursos e formação dinâmicas e as próprias espécies maiores ou menores tiveram mais capacidades de migrar, ou seja, de atravessar o rio e atingir uma área do que outras. Há também outros trabalhos que mostram que a capacidade de expressão das espécies foi muito importante para a diversificação na Amazônia.

Foto: Reprodução/Science Advances

“É por isso que tudo isso deve ser agregado em um modelo só, e nossos dados apontaram justamente para a agregação das diferentes hipóteses que tinham sido publicadas e pensadas isoladamente, quando, na verdade, elas se unem e se complementam”, justifica Sofia Silva.

Fernando d’Horta fala da contradição existente entre as teorias. “Essas hipóteses na maioria das vezes foram tratadas como sendo excludentes, ou seja, ou era a barreia dos rios ou apenas os refúgios os atores da diversificação.” A característica encontrada de se ter espécies mais jovens na região do sudeste amazônico também indica que a cobertura florestal é historicamente instável e altamente influenciada pela redução de precipitação na região. Apesar disso, hoje, a região sudeste da Amazônia está incluída no que se chama de “arco do desmatamento”, uma região ao sul e sudeste da Amazônia que está perdendo mais florestas em uma taxa mais acelerada e muito rapidamente.

“O sudeste da Amazônia e a área de Belém têm perdido muitas florestas, com registros de espécies que já desapareceram naquela região. E nossas ações estão acelerando o processo de alteração climática global”, alerta Sofia Silva. “Então, nosso trabalho pode mostrar que, se nada for feito, todas as alterações ligadas ao desmatamento podem de fato levar à perda de uma parte da diversidade da Amazônia muito rapidamente”, conclui ela.
O artigo pode ser acessado neste link.

 

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