Pobres também escravizavam indígenas no Vale do Madeira

Oficial da Marinha dos EUA revela como era a vida na região amazônica em 1879.

Selfridge Jr. mediu a extensão do Rio Madeira, principal afluente do Rio Amazonas. Arte: Divulgação

Por Júlio Olivar – julioolivar@hotmail.com

O então povoado de Santo Antônio do Rio Madeira — hoje parte de Porto Velho (RO) — localizava-se na margem leste do Rio Madeira, a 661 milhas da foz, segundo medição feita em 1879 sob a supervisão do comandante Thomas Oliver Selfridge Jr. (1836–1924), da Marinha dos Estados Unidos. À frente do navio Enterprise, ele liderava uma missão para investigar e mapear a região amazônica.

“Situados quase inteiramente nos trópicos, os rios Amazonas, Negro e Madeira compõem a mais perfeita rede hidrográfica de qualquer país do mundo”, escreveu Selfridge, que mais tarde se tornaria almirante.

Durante a primeira tentativa de construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, o comandante fez registros detalhados sobre aspectos econômicos, sociais e demográficos da região, que era considerada “escassamente habitada”. De acordo com o censo oficial de 1875, o Pará tinha menos de 12 mil habitantes, o Amazonas cerca de 30 mil e o Mato Grosso, 60 mil. Os dados excluíam a população indígena, que não era contabilizada. Em média, havia apenas um habitante para cada 72 milhas quadradas.

Até a introdução da navegação a vapor no Amazonas, em 1854, a comunicação entre o Pará e o interior era esporádica, feita por pequenos veleiros que levavam até seis meses para completar o percurso.

Segundo Selfridge, apenas 25 anos antes o rio Madeira era povoado quase exclusivamente por “índios selvagens”. Em 1749, uma grande expedição portuguesa foi enviada de Belém rumo às minas de Mato Grosso, pelo rio Guaporé, passando pelo Madeira.

Arte: Divulgação

O ‘Boom’ da borracha e os ‘brasileiros preguiçosos’

O que impulsionou a colonização do Vale do Madeira foi a qualidade superior da borracha nativa e sua crescente demanda mundial. “Com base nas melhores informações que consegui reunir, há atualmente cerca de 12 mil pessoas às margens do Rio Madeira — incluindo portugueses, brasileiros, negros e índios domesticados — todos envolvidos na produção de borracha”, afirmou o comandante.

Selfridge avaliava que dificilmente haveria crescimento populacional se o preço do látex não aumentasse significativamente para “estimular os brasileiros preguiçosos a ampliar sua produção”.

Segundo ele, a ocupação da região se estendia por até 15 milhas a partir do rio, com estradas rudimentares que levavam às seringueiras. Para ampliar a produção, os nativos precisavam adentrar o interior da floresta — o que gerava temor de ataques indígenas e exigia esforços físicos que, nas palavras do comandante, “eram evitados pelo brasileiro indolente”.

Indígenas: cativeiro

Até meados do século 19, a população do Madeira era composta majoritariamente por povos indígenas — especialmente das etnias Mura e Caripuna — que viviam da caça, ainda que esta fosse escassa.

No entanto, a presença dos colonizadores mudou a dinâmica local. Selfridge relata que não eram apenas os investidores, seringalista e donos de embarcavas que tinham o ímpeto escravocrático. Ele afirma que, “em cada cabana de um trabalhador brasileiro, há uma ou mais famílias indígenas que, embora aparentemente livres, realizam tarefas como buscar água e cortar lenha”. Isso revela que também os pobres submetiam indígenas à servidão, em um tipo de cativeiro informal e não legalizado.

O termo “tapuia” era utilizado para se referir a indígenas de etnia desconhecida no Baixo Amazonas, os quais, segundo o comandante, eram “industriosos e inteligentes”. Eram preferidos como tripulantes dos vapores da região, em detrimento de brancos ou negros. “As meninas se destacam como serviçais, são hábeis com a agulha e frequentemente criadas desde a infância nas casas de brasileiros das elites”.

Selfridge descreve os povos originários do Madeira como “muito superiores, em aparência, aos nossos índios norte-americanos”, elogiando sua disposição em adotar os costumes europeus, seu cuidado com a higiene e “a beleza singular das mulheres”.

Sobre o autor

Júlio Olivar é jornalista e escritor, mora em Rondônia, tem livros publicados nos campos da biografia, história e poesia. É membro da Academia Rondoniense de Letras. Apaixonado pela Amazônia e pela memória nacional.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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