Museu Integrado de Roraima foi inaugurado em 1985 e demolido no início do mês após 12 anos de abandono.
A poeira, destroços, lixo e a placa avisando que naquele espaço funcionava o Museu Integrado de Roraima (MIRR) foram as únicas coisas que sobraram do único espaço onde eram conservados a relíquias da história roraimense. O prédio, antes localizado no Parque Anauá, zona Leste de Boa Vista, foi demolido pelo governo após 12 anos de abandono. Conheça um pouco da história do local:
O prédio foi demolido pelo governo do estado no início de maio. Um dia depois da estrutura ir abaixo, a reportagem esteve no local e encontrou operários ainda trabalhando para organizar os destroços. Os telhados, tijolos, portas e janelas que antes faziam parte da estrutura do único museu de Roraima agora seriam descartados.
Para o arquiteto e urbanista, que é membro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAUB), Nikson Dias de Oliveira, a demolição do prédio simboliza o descaso com a história e com os símbolos que fizeram o estado de Roraima.
“A demolição do MIRR sinaliza um apagamento da história roraimense, o deletar de um marco histórico que repetidamente acontece em todo território brasileiro. Patrimônio histórico existe para proteger os bens culturais e naturais que possuem herança histórica, artística, arquitetônica, urbanística, paisagística, arqueológica, entre outras áreas do conhecimento”
destacou.
Ficavam expostos no local materiais arqueológicos, peças de arte, materiais líticos, cerâmicos, ossos humanos e animais, restos alimentares, contas de colar (adornos), material construtivo, metal, vidros entre outras coisas.
Além disso, havia também uma lápide em homenagem ao pesquisador Theodor Koch-Grünberg – um dos pioneiros no uso de recursos cinematográficos e fonográficos em pesquisas de campo em Roraima no início do século XX. Ele morreu de malária, em Caracaraí, região Sul.
Desde o abandono, o acervo estão em uma sala na sede da Secretaria de Cultura (Secult) – alguns, fechados para visitação, conforme o Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Com avaliação semelhante ao do arquiteto, o pesquisador em visualidades amazônicas e professor doutor em história social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Maurício Zouein, frisa que a demolição do museu simboliza o abandono de Roraima por suas próprias raízes.
“Há 11 anos Roraima é o único estado da federação que não tem nenhum museu. Se um museu representa a memória de um lugar, a memória de um povo, há 11 anos Roraima está sem memória”
diz o pesquisador.
O governo justifica que a demolição faz parte de um projeto de “modernização Parque Anauá”, obra que deve ser feita pela Secretaria de Infraestrutura (Seinf), com um novo espaço para o funcionamento do Museu e a exposição de suas peças.
A Seinf afirma que o projeto arquitetônico prevê o funcionamento do Museu dentro do Centro Cultural do Parque Anauá, que também abrigará a Escola de Música e auditório para apresentações artísticas. A previsão é que esteja pronto na “terceira fase” da revitalização do Parque, porém, não divulgou data.
O prédio do Museu estava desativado desde desde 2011. Em 2015, um laudo do Corpo de Bombeiros interditou por medida de segurança, “uma vez que a estrutura de madeira estava comprometida pela ação do tempo e de vetores como cupins.”
Um estado sem memória
Inaugurado em 1985 – há 38 anos, o Museu Integrado de Roraima foi aberto com os objetivos de “pesquisar, identificar, cadastrar, conservar e expor didaticamente o patrimônio natural e cultural do estado”, segundo o Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Inicialmente, o Museu pertencia ao Departamento de Assuntos Culturais da Secretaria de Educação. Depois, em 2003, passou para a extinta Fundação Estadual do Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia (Femact), onde permaneceu até 2011. Posteriormente, passou a ser administrado pelo Instituto de Amparo à Ciência, Tecnologia e Inovação (IACTI), até sua extinção. Atualmente, é vinculado à Secretaria de Estado da Cultura (Secult).
A edificação do museu foi desenhada pelo premiado arquiteto e urbanista cearense Otacilio Teixeira. Inicialmente, foi pensado como uma exposição temporária em homenagem aos 25 anos de criação do Território Federal de Roraima.
A exposição foi um grande sucesso e, por isso, acabou sendo transformada em um museu permanente. De acordo com o arquiteto e urbanista Nikson, a estrutura do museu em si era uma obra que deveria ser preservada assim como o acervo que abrigava. Na avaliação dele, reconstruir “é um desrespeito à história de Roraima.”
“No urbanismo, a cidade é uma tela que remonta história, experiências e marcas que retratam a vida de um povo. Quando se caminha pela cidade, ao passar pela velha escola lembra da infância, ao passar pela praça, uma memória se apresenta. Significa que aquele espaço urbano te representa e remonta sua história”.
“Quando nenhum desses sentimentos de pertencimento são saudados, significa que o pertencimento não existe, que o lugar não representa ou apresenta valor histórico para a comunidade que ali vive. Não ter a velha escola, a antiga igreja ou o parque que crescemos é como ter sua história apagada”
afirma o urbanista.
Para Maurício Zouein, o abandono da cultura é algo enraizado no pensamento roraimense e a demolição do museu é fruto de um descaso não só de políticos, mas de toda a população. Para ele, “nessa história não temos culpados, mas também não temos inocentes”.
“O pior não é ser abandonado pela instituição governamental, o pior é ser abandonado pela sociedade, e a própria sociedade não se respeita. A própria sociedade não cultua a sua história. O museu foi abandonado, ninguém ia e ninguém se interessava em ir. Isso faz parte de um processo”, avalia.
Para o pesquisador, antes de qualquer coisa é necessário que seja feito um planejamento para que a população em Roraima volte a se interessar pela própria história e, com isso, volte a se interessar pela existência de um museu em Roraima. Para ele, tudo isso deveria fazer parte de um plano de valorização.
“O que precisa ser feito é um planejamento para que a população roraimense passe a valorizar a própria história. Precisa ser estudado, será que o local é muito longe? É um lugar de difícil acesso? Muitas questões. Então, existe todo um processo por trás da demolição deste edifício”.
“Quando foi construído, existia toda uma intenção positiva. Era uma novidade. O Parque Anauá era uma novidade. As pessoas iam e frequentavam o local. Com o passar do tempo, com o passar de vários projetos de governo diferentes que não priorizavam a preservação da nossa história e de fazer com que o trabalho progrida dentro do museu. Sem essa intenção, o Parque Anauá, obviamente o museu, caiu no esquecimento”.
relatou.
Para Nikson, o problema antecede a necessidade de construir outro museu, pois uma reconstrução não remontará a memória e o marco temporal da época em que a edificação foi levantada.
“Estamos falando de um museu que historicamente foi construído para sinalizar a conquista do território, estamos falando de um museu que foi espaço de visitação de gerações. Uma nova edificação sinaliza um novo passo, um novo tempo, um novo movimento e não representa os marcos vividos pela cidade”.
“Partimos do pressuposto que toda edificação que carrega em si marcos históricos, remontam memórias afetivas, fez parte da formação social e educacional de um povo, merece respeito e cuidado”.
Nikson explica que como o museu foi demolido, não há como se falar em restauração, porque, diferente da restauração e de uma técnica chamada retrofit, não houve a preocupação em manter qualquer traço da arquitetura original.
“A restauração preserva o edifício antigo em seu estado original, recuperando e conservando suas características arquitetônicas e históricas. Essa técnica é utilizada em edifícios que possuem valor histórico, artístico ou cultural. Já o retrofit moderniza e atualiza o edifício antigo, adaptando-o às necessidades e exigências atuais. Essa técnica é utilizada em edifícios que não possuem valor histórico ou cultural, mas que ainda apresentam boas condições isoladas”.
“Reconstruir no caso no museu, é apagar a história e construir uma nova, se esse era o intuito, o objetivo foi atingido”.
‘Um museu que lutou’
O museu marcou a vida de profissionais que atuaram no funcionamento. A doutoranda em museologia pela Universidade Lusófona de Portugal, Elena Campo Fioretti, foi diretora do Museu Integrado de Roraima de 1993 até 2009. Ela descreve o período em que esteve no comando do museu como “de muita luta”. Ela voltou para a direção em 2022.
Quando assumiu a direção em 1993, o museu estava fechado e era necessária uma reconstrução. Elena afirma que o MIRR precisou de vários “recomeços”.
“Já é uma trajetória que eu percebo de muita luta, trajetória de eternos recomeços porque em 93 quando eu fui o museu também estava fechado, também estava desarticulado. Me parece que é uma função de busca de recomeço, é um museu que lutou muito. Muito disso, atribuído por conta do momento em que eu trabalhei junto com a equipe de reinstalação do museu”.
Para Elena, o MIRR é importante não só para o estado, como para ela em particular. Ela diz que o museu foi essencial pois constituiu sua trajetória como profissional.
Ao voltar para a direção do MIRR em 2022, ela diz ter se deparado com uma “tragédia anunciada”. De acordo com Elena, não havia sequer condições para reformas por conta das consequenciais dos anos de abandono. Ela destaca os cupins e as traças que estavam em todas as partes do único museu de Roraima.
“Um quadro totalmente precarizado, o museu totalmente desarticulado. Eu infelizmente encontro o museu numa situação totalmente de abandono sem sede, já que estava literalmente caindo. Ou seja o prédio já estava inclusive pendendo pro lado, sem servidor, porque os servidores regressaram pros seus órgãos de origem… estava lamentável”.
“Eu dediquei quase 20 anos da minha vida ao museu e a importância dele é para além da consolidação da minha trajetória profissional, é para a consolidação da história do estado como um todo”
finaliza.
Por Caíque Rodrigues e Yara Ramalho, g1 RR — Boa Vista*