Na Amazônia, Instituto Mamirauá realiza 1º manejo sustentável de jacaré em vida livre do Brasil

Atividade pode se tornar fonte de renda alternativa para comunidades ribeirinhas do interior da Amazônia

Nos anos de 1950 a 1970, a caça que alimentava o mercado ilegal de couro colocou o jacaré-açu amazônico, de nome científico Melanosuchus niger, sob risco de extinção na região do Médio Solimões, Amazônia Central. O perigo fez com que, em 1967, a atividade fosse proibida.

A criação de unidades de conservação na área permitiu a recuperação da espécie que hoje, com o recém-implementado Plano de Manejo do Jacaré-açu, simboliza a mais nova alternativa de renda para as populações ribeirinhas do interior da Amazônia.

Em 2020, foi realizado o primeiro manejo legalizado, que estabelece cotas, tamanho mínimo e época adequada para abate do animal.

Com fins experimentais, o abate foi realizado pela Associação de Produtores do Setor Jarauá com assessoria técnica do Instituto Mamirauá entre os dias 4 e 6 de março na Planta de Abate Remoto, a Plantar, localizada na comunidade São Raimundo do Jarauá, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.

“Manejo é guardar tudo: a floresta, todo tipo de peixe, lagos”, diz Jorge Souza Carvalho, conhecido como ‘Tapioca’, pescador e morador da comunidade. O local foi pioneiro do manejo sustentável na região do Médio Solimões nos anos de 1990 com o início do manejo do pirarucu (Arapaima gigas). Em 2020, é também o primeiro a realizar o manejo sustentável do jacaré-açu.

A comunidade é testemunha de que o manejo possibilita a continuidade da pesca, atividade realizada tradicionalmente pelos povos locais na região e que garante subsistência e renda aos ribeirinhos.

O manejo do pirarucu, maior peixe de escamas de água doce, recuperou a espécie, também sob risco local na década de 1970, com aumento de 427% dos estoques do peixe em 20 anos. Hoje, a pesca sustentável do pirarucu simboliza para os ribeirinhos atividade financeira viável: em duas décadas, foram mais de 20 de milhões de reais faturados para os pescadores e pescadoras envolvidas no manejo.

“O manejo de jacarés pode se tornar uma alternativa viável de fonte de renda para as comunidades, promovendo, assim, a diversificação produtiva local, associada à conservação dos jacarés e do ambiente onde vivem”, explica Diogo de Lima, analista de pesquisa e responsável pelo Programa de Pesquisa em Conservação e Manejo de Jacarés do Instituto Mamirauá, organização social fomentada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).

Espécie manejada éa maior entre os jacarés das Américas. (Foto Laís Maia/Instituto Mamirauá)

Treinamento e assessoria

Para tornar realidade o manejo sustentável do jacaré amazônico, foram mais de dez anos de intenso trabalho de técnicos e pesquisadores do Instituto Mamirauá, organização social fomentada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), com apoio de entidades estaduais e nacionais.

O Programa de Pesquisa em Conservação e Manejo de Jacarés do Instituto Mamirauá realiza monitoramento populacional e pesquisas sobre biologia e ecologia da espécie e também capacitou os ribeirinhos para realizarem contagem de jacarés, que permite estimar a população da espécie no local e fornece dados importantes para o manejo.

“É uma forma das comunidades participarem da construção de geração de informações sobre os estoques de jacarés. Essas informações irão subsidiar as tomadas de decisões sobre o manejo sustentável de jacarés na região”, explica Fernanda da Silva, pesquisadora do programa.

O Grupo de Pesquisa em Inovação, Desenvolvimento e Adaptação de Tecnologias Sustentáveis (GPIDATS) e o Programa Qualidade de Vida (PQV) foram responsáveis pelas capacitações sobre uso de energia solar, tratamento das águas residuais, coleta e tratamento de água da chuva e do rio, além de orientações sobre boas práticas de higiene, uso de equipamentos e procedimentos adequados durante o abate.

Conciliando sustentabilidade ambiental, tecnologia e inovação e adequação às exigências higiênicas e sanitárias, a Plantar é uma estrutura flutuante com tecnologias adaptadas para geração de energia e tratamento de água e resíduos e deve servir de modelo a todo o estado de Amazonas.

Legislação

Desde o início dos anos 2000, o manejo de jacarés é autorizado em determinadas categorias de unidades de conservação pela Lei Federal nº 9.985.

No estado do Amazonas, é regulamentado pela Resolução CEMAAM nº 008/2011, que estabelece a extração das espécies de jacarés-açu e jacaretingas em sistemas de manejo comunitário, definindo espécies, tamanho e cotas.

Sobre a questão sanitária, a Instrução Normativa SEPROR/CODESAV nº 001/2011 da SEPROR, estabelece critérios técnicos de abate e beneficiamento de crocodilianos no estado do Amazonas. A legislação é baseada na recém-publicada Resolução nº 008 e na Lei Estadual nº 3.105.

Manejadores realizaram captura de 28 animais para abate com fins experimentais. (Foto Augusto Gomes/Instituto Mamirauá)

Como é feito abate

No dia 4 de março, cerca de 40 moradores da comunidade São Raimundo Jarauá deram início ao abate experimental de duração de três dias.

Os novos manejadores de jacaré tiveram apoio e assessoria técnica do Instituto Mamirauá, organização responsável pelo funcionamento, manutenção e viabilidade do abatedouro.

Foram cerca de 14 profissionais, entre pesquisadores e técnicos, envolvidos na atividade de captura, abate e tratamento dos 28 animais.

“Pela primeira vez, nós temos a possibilidade de testar essa legislação, testar o manejo de jacarés em adequação com todos os aspectos legais, seja das autorizações do manejo, seja na estrutura de abate. É uma expedição que pode apresentar dados muito interessantes e novos para viabilizar o manejo de jacarés enquanto uma atividade produtiva para as comunidades ribeirinhas”, afirma Diogo.

Após a captura, os jacarés são medidos, pesados e sexados. Em seguida, é realizada a inspeção ante mortem, onde são feitas análises e exames pelo veterinário da Agência de Defesa Agropecuária e Florestal do Estado do Amazonas (Adaf). “Nessa etapa o animal é avaliado para ver se ele está apto para o abate. Aqui observo se o jacaré possui algum sinal de doença, se precisa de atenção especial durante o abate”, relata Weberty Dário Marinho, veterinário coordenador da Adaf-Tefé.

Depois disso, o animal é levado para o abatedouro, dividido em três áreas.

Na primeira área é feita a recepção e lavagem do animal com escova. Paula Araújo, veterinária do Instituto Mamirauá e responsável técnica pela estrutura flutuante, explica que as peles dos animais têm limo que podem contaminar a carne durante os próximos passos do abate. “Temos que fazer toda essa avaliação criteriosa para em seguida seguirmos de forma que não comprometa a carne do jacaré na hora do consumo”, ressalta.

Na segunda área, o animal é insensibilizado com pistola pneumática. “A partir desse momento ele já não sente mais dor”, explica Paula. Depois, o jacaré é desmedularizado e realiza-se a sangria, momento em que o animal morre. Em seguida, é realizada a retirada do couro (esfola) e o animal é lavado com água hiperclorada para eliminar possíveis contaminações por bactérias.

Na terceira etapa do processo, o animal é eviscerado, ou seja, são retiradas as vísceras e se realiza mais análises e exames.

“Nessa etapa eu avalio pela última vez as vísceras para ver se tem algum sinal de doença que comprometa a carcaça e o consumo da carne, avalio a própria carcaça do animal para ver se tem alguma alteração que precise descartar ou a carcaça ou algum pedaço dela. Não havendo nenhum problema, essa carcaça é liberada e recebe mais uma lavagem com água hiperclorada para certificar de que não haverá nenhum risco a saúde do consumidor”, afirma Weberty.

Por fim, a carne é embalada e armazenada em barco frigorífico até ser transportada para a feira na cidade.

Dados de pesquisas realizadas pelo Instituto Mamirauáforam utilizados na elaboração de plano (Foto Júlia de Freitas/Instituto Mamirauá)

1º Feira do Jacaré Manejado

No dia 7 de março, a carne do jacaré foi oferecida aos moradores da cidade de Tefé, principal centro urbano da região.

“O comércio visa reconhecer esse mercado e essa demanda para que, conforme ajustes que forem necessários, consigam atingir o público alvo e ter um escoamento adequado da produção”, explica Diogo.

A feira teve o apoio da Prefeitura Municipal de Tefé e do Instituto de Desenvolvimento Agropecuário do Estado do Amazonas (IDAM).

“Como é uma atividade pioneira, ela tem uma importância muito grande do ponto de vista de testar a legislação. Com a expedição e o manejo, nós temos condições de avaliar sua aplicabilidade no contexto local, e sugerir alterações, modificações, atualizações, se for necessário”, afirma o especialista.

Próximos passos

Com os dados obtidos no manejo experimental, será possível avaliar a viabilidade da atividade. A expectativa, explica Diogo, é que nos próximos abates haja aumento da escala de produção.

“O aumento dessa escala vai proporcionar uma renda maior as comunidades que estão envolvidas, e o manejo de jacarés poderá ser uma atividade alternativa para as comunidades”, diz.

Jorge, o pescador, é um dos entusiasmados. “O manejo do jacaré é uma grande alegria porque a gente vai ter mais uma renda. A comunidade é interessada pelo manejo. Quando se fala em manejo a comunidade toda fica ansiosa para ver o que vai acontecer. Se Deus quiser vai dar tudo certo”, afirma.

O Plano de Manejo de Jacaré-açu é resultado de trabalho realizado pelo Instituto Mamirauá junto à Associação de Produtores do Setor Jarauá (APJ) e conta com o apoio do Departamento de Mudanças Climáticas e Unidades de Conservação (Demuc), Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema), Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM), Ibama, Agência de Defesa Agropecuária e Florestal do Estado do Amazonas (Adaf) e prefeituras municipais de Alvarães e Uarini.

As atividades feitas para a viabilização do plano foram possíveis graças ao apoio da Fundação Gordon e Betty Moore.

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