Um novo estudo verificou que a teia alimentar microbiana responde pela maior parte do carbono circulante em lagos, várzeas e planícies inundáveis da Amazônia. Apoiado pela Fapesp, o estudo foi publicado na revista Hydrobiologia.
“Nosso trabalho concluiu que a quantidade de carbono que circula na teia alimentar microbiana das regiões alagáveis amazônicas é até 10 vezes maior do que o carbono circulante na cadeia alimentar clássica, que envolve fitoplâncton e zooplâncton”, disse Hugo Miguel Preto de Morais Sarmento, professor no Departamento de Hidrobiologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Pela sua enorme extensão, a Amazônia tem papel fundamental no ciclo de carbono do planeta – que precisa ser compreendido para se poder mensurar a dimensão e as consequências das mudanças climáticas globais. Daí a importância de quantificar os estoques e fluxos de biomassa das diversas cadeias alimentares amazônicas, terrestres ou aquáticas.
A maioria dos estudos que buscam quantificar o ciclo de carbono na Amazônia parte da análise da biomassa terrestre (plantas e animais) ou então da biomassa na água dos grandes rios, como o Solimões.
Até o momento, poucos trabalhos científicos investigaram a participação no ciclo do carbono da biomassa presente em águas das regiões alagáveis, que abrangem nada menos do que 20% de todo o bioma amazônico. E esses estudos levam em conta apenas o ciclo de carbono da cadeia alimentar clássica, que inclui fitoplâncton (produtores primários) e zooplâncton, peixes e invertebrados (consumidores primários, secundários e detritores).
O novo estudo investigou a chamada teia alimentar microbiana, que se refere às interações tróficas combinadas entre todos os microrganismos em ambientes aquáticos, o que inclui bactérias, algas microscópicas (fitoplâncton), microrganismos unicelulares como ciliados (protozoários) e flagelados, além de invertebrados.
“Nosso trabalho buscou verificar e quantificar no sistema amazônico as interações na teia alimentar microbiana em dois momentos, na estação úmida, quando o nível das águas é mais elevado e a teia alimentar é mais simples (menos interações), e na estação seca, quando a quantidade de água é menor e a teia alimentar se torna mais complexa, com mais interações”, disse Sarmento.
Para coletar o material do estudo, os pesquisadores elegeram o Puruzinho, um lago muito estreito e sinuoso de quase 8 quilômetros de comprimento que fica num afluente do rio Madeira, no estado do Amazonas. Foram coletadas 30 amostras de água cerca de meio metro abaixo da superfície, no fim de maio de 2014, durante o final da época chuvosa na Amazônia, quando as áreas inundadas atingem seu nível máximo, e no final de outubro do mesmo ano, na estação seca, quando o nível do lago é o mais baixo.
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“O lago é raso, com profundidade máxima de 11 metros. Portanto, não há diferença relevante na composição microbiana das águas coletadas a meio, a 2 ou a 5 metros de profundidade, uma vez que a coluna de água é homogênea. Seria diferente caso o lago fosse mais profundo, com a formação de duas ou mais camadas de água com temperatura e oxigênio dissolvido diferentes”, disse Sarmento.
Biodiversidade desconhecida
No laboratório, foi feita a contagem da quantidade de bactérias, de fitoplâncton, de ciliados e flagelados e de zooplâncton presentes nas amostras.
Sarmento explica que, em 1 mililitro de água do lago (equivalente a três gotas), espera-se encontrar cerca de 1 milhão de bactérias. Já os vírus, muito menores (e que não foram contabilizados no trabalho), são cerca de 10 milhões. Quanto ao fitoplâncton, há cerca de 10 mil na mesma quantidade de água. No caso do zooplâncton, trata-se de organismos muito maiores, alguns inclusive visíveis a olho nu. Daí o que se espera é encontrar cerca de 10 animais do zooplâncton em 1 litro de água do lago.
“No caso do fito e do zooplâncton, a contagem é feita com microscópio óptico invertido, contando e medindo os organismos um a um. No caso das bactérias, usamos o citômetro de fluxo, o mesmo equipamento usado em laboratórios de análises clínicas para contar a quantidade de plaquetas e células no sangue”, disse o pesquisador.
Outro passo importante da pesquisa foi fazer o rastreamento (screening) genômico, de modo a determinar quais são os diferentes grupos de bactérias na amostra – descrito em outro artigo publicado recentemente pelo mesmo laboratório na revista Freshwater Biology (Flood pulse regulation of bacterioplankton community composition in an Amazonian floodplain lake). O trabalho mostrou que as bactérias, além de numerosíssimas, são muito diversas e variam muito de tamanho.
Para estimar o total de carbono nas amostras de forma precisa, foi necessário verificar quais eram os grupos de bactérias presentes e as quantidades de cada uma, de modo a poder inferir quanto cada grupo aporta de carbono no cômputo geral.
“O rastreamento genômico revelou outro dado muito interessante. Cerca de 60% das bactérias nas amostras pertenciam a espécies e gêneros ainda desconhecidos. Muitos microrganismos só identificamos no nível da família. Seus gêneros permanecem desconhecidos. Isso demonstra o quanto ainda não se sabe sobre a biodiversidade microbiana nos rios e lagos da Amazônia”, disse Sarmento.
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O passo seguinte foi estimar o total da biomassa microbiana (do carbono) que existe, em média, em cada mililitro de água do lago Puruzinho, coletada na estação chuvosa e na estação seca.
Foi assim que os pesquisadores puderam constatar a diferença de uma ordem de grandeza entre as quantidades de carbono da teia alimentar microbiana nas águas do lago (em média 245,5 microgramas por litro) e da cadeia alimentar clássica (24,4 microgramas por litro), formada por fito e zooplâncton.
Em outras palavras, 90% da quantidade de carbono no lago Puruzinho circula na teia alimentar microbiana. Se essa mesma relação servir de parâmetro para estimar o total de carbono circulante na teia alimentar microbiana de todas as áreas alagáveis da Amazônia, o que se verifica é que, sob qualquer ponto de vista, a quantidade de carbono na região ainda é muito subestimada.
Outro dado curioso que despontou da análise geral dos resultados foi a constatação de que a grande maioria dos microrganismos da teia alimentar microbiana no Puruzinho, tanto em diversidade como na quantidade de carbono acumulado, é formada por heterotróficos, ou seja, consumidores primários, secundários e detritores.
Os microrganismos autotróficos – algas unicelulares que constituem o fitoplâncton e que realizam fotossíntese – perfazem um volume incompatível com o sustento da teia alimentar do lago.
De acordo com o estudo, os produtores primários microbianos do lago não são em número suficiente para metabolizar o carbono necessário para sustentar a teia alimentar lá existente. A dúvida é de onde vem a maioria do carbono utilizado pelos consumidores microbianos primários e secundários.
“Nossa hipótese é que a maior parte do carbono nas águas do Puruzinho seja proveniente de folhas, material em decomposição e partículas orgânicas do húmus e da serapilheira da floresta circundante”, disse Sarmento.
“Na ausência da teia trófica microbiana, todo esse carbono acumularia no fundo do lago e ficaria sequestrado no lodo e no sedimento. Mas o que se verifica é que muito do carbono que escorre das margens é reciclado na cadeia microbiana, retornando para a atmosfera nas formas de gás carbônico e de metano, que são gases do efeito estufa. Cada elemento desta teia trófica participa do ciclo de carbono na atmosfera”, disse.
Agora que os pesquisadores sabem quais são os integrantes da teia trófica microbiana no lago Puruzinho, os próximos passos da pesquisa envolvem descobrir o que aquelas bactérias estão fazendo.
“Queremos entender a ligação da matéria orgânica terrestre com os sistemas aquáticos e saber de onde vem toda a matéria orgânica consumida no lago. Queremos também saber especificamente o que é produzido no lago e o que é proveniente da floresta, de modo a entender melhor os fluxos de carbono na Amazônia”, disse Sarmento.
Participaram da pesquisa publicada na revista Hydrobiologia cientistas das universidades federais de Juiz de Fora, do Rio de Janeiro e de Rondônia e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. O trabalho também contou com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
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