Euclides da Cunha já denunciava devastação e violência contra indígenas na Amazônia

Relatos de viagens entre de 1904 e 1905 foram analisados sob a perspectiva histórico-social: na época, o escritor alertava sobre o extrativismo do látex e a agressão contra os povos indígenas.

Os relatos de viagem da expedição feitos pelo jornalista e escritor Euclides da Cunha entre 1904 e 1905 ao Acre e à Amazônia e publicados em forma de livros e ensaios impressionam por sua atualidade. Na época, o autor de ‘Os Sertões’ (1902), sobre a Guerra de Canudos, na Bahia, já denunciava a violência contra os povos originários, a devastação ambiental e a exploração predatória dos recursos naturais da floresta, destruição cujos responsáveis eram os caucheiros peruanos, extrativistas que exploravam a região em busca de látex, seiva retirada de espécies vegetais usada para a produção da borracha.

“Abrindo a tiros de carabinas e a golpes de machetes (um tipo de facão utilizado para poda de árvores) novas veredas a seus itinerários revoltos, e desvendando outras paragens ignoradas, onde deixariam, como ali haviam deixado, no desabamento dos casebres ou na figura lastimável do aborígine sacrificado, os únicos frutos de suas lides tumultuárias, de construtores de ruínas”,

– Euclides da Cunha

Fotomontagem com imagens de Pixabay e Domínio Público. Arte: Joyce Tenório

Neste trecho, o escritor critica a lógica econômica e social de exploração do látex da seringueira e do caucho (árvore que também contém látex) para produção da borracha, uma vez que na virada dos séculos 19 e 20 havia uma demanda do mercado internacional pelo produto, devido ao advento da Segunda Revolução Industrial. Na linguagem da época, os escritos ressaltavam a invasão de territórios pelos seringueiros, a violência contra os povos indígenas e a ausência de aproveitamento da terra de forma racional e de longo prazo.

“Foi um período que marcou profundamente a vida dos povos indígenas e da paisagem social dessa região”, conta ao Jornal da USP o historiador José Bento Camassa, autor da pesquisa de mestrado ‘Os icebergs e os seringais: representações e projetos políticos nos relatos de viagem de Roberto Payró sobre a Patagônia (1898) e de Euclides da Cunha sobre a Amazônia (1904-1905)’

Camassa analisou relatórios de viagens desses dois autores enviados especiais à Amazônia brasileira e à Patagônia, na Argentina, para colherem informações sobre esses territórios que, na época, haviam sido recentemente anexados geograficamente aos seus países. A pesquisa foi apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Segundo o historiador, tanto Euclides quanto Payró tinham ambições intelectuais literárias publicando relatos de viagens, porque ambos os autores integraram um período de grande prestígio do ensaísmo e da viagem intelectual à América Latina. Euclides, por exemplo, queria repetir o feito do livro de sua autoria sobre a Guerra de Canudos que fazia muito sucesso editorial na época. Porém, o principal objetivo deles foi direcionar o debate público sobre a ocupação e o desenvolvimento da região, além de demonstrar a relevância que o território poderia ter na geopolítica sul-americana e mundial. Euclides seguiu rumo ao Norte amazônico, nos anos de 1904 e 1905, chefiando a Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus, organizada pelo Itamaraty; e o jornalista Payró viajou à Patagônia, em 1898, como enviado especial do jornal La Nación, de Buenos Aires, Argentina.

Os dois autores se deslocaram quase na mesma época para terras afastadas de suas capitais nacionais, regiões que estavam passando pelo processo de ocupação e integração territorial e viviam disputas fronteiriças. Camassa lembra que o Acre tinha acabado de ser anexado ao Brasil, por meio do acordo feito com a Bolívia pelo Tratado de Petrópolis, em 1903; e a Patagônia, que, após o processo de etnocídio (conceito usado para descrever a destruição da cultura de um povo) contra as populações indígenas locais conhecido como “Conquista do Deserto”, foi em parte anexada pela Argentina e parcialmente pelo Chile, de modo que a definição das fronteiras sulinas entre os dois países ainda estava pendente.

O Peru não reconheceu o acordo de anexação do Acre ao Brasil, porque o país também tinha interesse no território acriano. Segundo o historiador, esse era um dos motivos das tensões na região, que resultaram em conflitos de seringueiros brasileiros contra os caucheiros peruanos (seringueiros do Peru) na disputa dos seringais amazônicos para extração de látex da borracha.

Barracão do Seringal Sebastopol no Rio Purus no início do século XX. Fonte: Arquivo Nacional

Soberania e povoamento da região

Os dois viajantes descreveram as duas regiões como “espaços geográficos desamparados, mas com grandes potencialidades”. Divergiam, porém, sobre aspectos políticos. Por exemplo, como deveria acontecer o povoamento das regiões e o grau de autonomia política que elas deveriam ter.

Payró era cético quanto à atuação econômica do Estado e simpático à iniciativa privada e às ideias liberais. Influenciado pelo pensamento argentino da possibilidade de europeização do país, ele desejava uma Patagônia desenvolvida de forma mais independente do governo central da Argentina e com estreita ligação com a Europa e o império britânico. Admirando a Inglaterra, seu povo e sua cultura, Payró desejava que a Patagônia fosse povoada sobretudo por brancos imigrantes recém-chegados da Europa.

Em oposição, Euclides era nacionalista e defendia que o Estado fosse protagonista no desenvolvimento político e econômico da Amazônia e que a região deveria ser ocupada sistematicamente por brasileiros, inclusive pelos seringueiros que vinham de outros Estados brasileiros e que, em sua visão, poderiam se fixar na região.

Euclides chegou a propor a construção de uma ferrovia no território acreano para melhorar o aproveitamento econômico e promover sua integração com o espaço geográfico nacional, diz o estudo. Ele entendia que o desamparo e abandono da região estavam ligados à ausência de instituições estatais no território, o que resultava em brutal violência e exploração do trabalho nos seringais.

Observando a exploração econômica do látex por grupos privados, Euclides saiu em defesa dos seringueiros, aqueles que estavam na base da cadeia econômica e na lida do dia a dia da sangria das árvores. Ele dizia que esses trabalhadores viviam em situação análoga à escravidão e todo o lucro ficava concentrado com os patrões.

No trecho abaixo, Euclides descreve essa situação:

“O homem, ao penetrar as duas portas que levam ao paraíso diabólico dos seringais, abdica as melhores qualidades nativas e fulmina-se a si próprio, a rir, com aquela ironia formidável. É que (…) o aguarda a mais criminosa organização do trabalho que ainda engenhou o mais desaçamado egoísmo. (…) De feito, o seringueiro, e não designamos o patrão opulento, se não o freguês jungido à gleba das ‘estradas’, o seringueiro realiza uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se”.

– Euclides da Cunha

Contemporaneidade de Euclides

O historiador diz que Euclides da Cunha apresenta grande interesse para o Brasil contemporâneo. Seus escritos podem ser revisitados para compreender a situação atual da Amazônia, que nos últimos anos tem vivido situação de calamidade pública em razão do descaso dos últimos anos do governo federal, que desaparelhou órgãos de fiscalização e desassistiu os povos indígenas. O abandono governamental levou à proliferação da pesca e caça predatórias, do corte ilegal de madeira e da instalação irregular de garimpos em terras Yanomami. “Mesmo havendo garantias constitucionais de proteção do Estado brasileiro, nos últimos anos houve tolerância e estímulo em prol da destruição e de interesses econômicos privados criminosos”, diz o historiador.

“A civilização, barbaramente armada de rifles fulminantes, assedia completamente ali a barbaria encontrada (…) E os caucheiros aparecem como os mais avantajados batedores da sinistra catequese a ferro e fogo, que vai exterminando naqueles sertões muitíssimos os mais interessantes aborígines sul-americanos”. (Trecho de relatos de viagem de Euclides da Cunha)

Ao voltar de suas jornadas, Euclides e Payró publicaram suas impressões sobre a Amazônia/Acre e a Patagônia em forma de artigos, entrevistas e livros e se tornaram referências frequentemente citadas sobre as duas regiões ao longo do século 20.

Ainda que hoje devam ser criticados em virtude de seu racismo e etnocentrismo, os escritos de Euclides seguem relevantes para a compreensão da Amazônia, uma tarefa imprescindível para nosso país, diz o historiador.

Ponte entre o passado e o presente

No caso das pesquisas sobre Euclides e a Amazônia, Camassa “estabeleceu interessantes pontes entre o passado e o presente, entendendo que os textos do escritor podem subsidiar as análises sobre os problemas vividos na contemporaneidade”, relata a orientadora da pesquisa, Stella Maris Scatena Franco, professora do Departamento de História da FFLCH, também especialista em História Latino-Americana. 

De acordo com o estudo, Euclides, em seu tempo, aludiu à ciência como caminho para se estabelecer formas de cuidado da região, refletiu sobre mecanismos racionais de desenvolvimento econômico que gerassem menos impacto sobre o manancial natural e mostrou preocupação com as comunidades locais – todos estes, traços de permanência até os dias de hoje. “É, portanto, uma pesquisa sobre o passado que se conecta com o contexto atual”, conclui.

A pesquisa contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

*Por Ivanir Ferreira, com arte de Joyce Tenório, para o Jornal da USP

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