Elas que lutem: a força das mulheres indígenas, quilombolas e ribeirinhas

Mulheres quilombolas, indígenas e ribeirinhas e o que as move.

“Quando eu era criança, sempre ia um coronel lá em casa falar pro meu pai que a gente não era dono da terra, que a gente estava lá de favor”

Vercilene Dias

Vercilene Dias, da comunidade Kalunga (GO) 

Tudo começou com dois soldadinhos de brinquedo. Vercilene Dias era pequena quando deixou o quilombo Kalunga (GO), e foi viver no Tocantins, para estudar. Quando ganhou o presente, ouviu dos padrinhos, com quem vivia, que os soldados eram bons e puniam as pessoas más. E ali, decidiu que queria ser igual a eles, para poder prender o coronel que ameaçava sua família e tentava negar seu pertencimento à terra.

“E aí não parei mais. Parece que cada passo que eu dava era um passo de realizações, de seguir em frente. Se eu tivesse pelo menos a chance de estudar, para mim acho que já era suficiente”.

Foto: Matheus Sant’Ana/ISA

O interesse pela Justiça cresceu e os soldadinhos viraram um diploma em Direito e um título de Mestre em Direito Agrário. Não sem dificuldades, se tornou a primeira quilombola do Brasil a receber ambos. “Eu sentia que ser advogada era defender os direitos da minha família, dos meus, da população quilombola que vem sendo extremamente vulnerabilizada e invisibilizada durante todos esses séculos de resistência”.

Como assessora jurídica da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), esteve entre as primeiras quilombolas do país a assinar uma ação no Supremo Tribunal Federal. Mas o pioneirismo, ela conta, apesar de gratificante, é um trajeto solitário. “A responsabilidade é muito grande, o peso é enorme. Mas é gratificante saber que eu abri o espaço para várias outras mulheres brilharem e mostrarem que a gente é capaz também de estar ocupando esses espaços”.

“Hoje, eu colho a realização de um sonho, de lutar pelos direitos dos meus como se fossem os meus direitos”, Vercilene completa. “A luta continua, porque ela é constante na nossa vida. Tem uma longa jornada ainda pela frente. Mas a força que me guia é saber que as pessoas que vão ser beneficiadas estão lá na ponta e são minha família, meus amigos, companheiros de luta.”

Alessandra Munduruku, a força feminina contra a destruição do território

Quem vê Alessandra Munduruku hoje, mal consegue imaginar que ela um dia já foi tímida e quieta. Sempre em movimento pela sobrevivência do seu povo, ela parece não esmorecer ou recuar jamais. Mas foi vendo seu território ser invadido e destruído por grandes empreendimentos que ela começou a tomar a palavra, participar das discussões políticas e despontar como uma das protagonistas da resistência indígena no Brasil.

Foto: Luiza Calagian/ISA

“Muitas vezes nos falavam que nós mulheres não éramos capazes, que nós mulheres não podíamos estar na luta, que não podíamos ficar falando. Mas de repente dissemos: as mulheres têm coragem”.

Alessandra Munduruku

Da timidez, não resta nem sombra. Alessandra foi a primeira mulher a presidir a Associação Indígena Pariri, que representa mais de dez aldeias do Médio Tapajós. Em 2019, chegou a discursar para mais de 270 mil pessoas no Portão de Brandenburgo, em Berlim, e recebeu, em 2020, o Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos, um reconhecimento de sua força e coragem para proteger seu território e defender direitos.

Recentemente, esteve em Brasília para exigir o respeito à Consulta Livre, Prévia e Informada no processo de concessão da Ferrogrão, atualmente travado pela Justiça. “Não adianta fazer audiência pública com tudo pronto, querendo só que o povo diga sim,” explica ao Mongabay. “E todo o mundo tem voz, até as crianças”.

Mas o protagonismo não veio sem ameaças. Sob os holofotes, Alessandra acabou atraindo também a atenção de quem não a quer bem: em 2019, invadiram sua casa em Santarém e levaram documentos, pastas e um cartão de memória. “Eu fiquei bem assustada no começo, [mas] tive que continuar”, diz ao Portal Catarinas. “Não conseguiram me matar naquele tempo; não é agora que vão me calar”.

“A gente precisa de floresta, a gente precisa preservar o território para os nossos filhos, para os nossos netos ou tataranetos,” comenta, ao Brasil de Fato. “A gente vai resistir para continuar vivo.”

Mayalú Txucarramãe: saúde, bem viver e combate às fake news

Neta do grande cacique Raoni Metuktire, Mayalú Kokometi Waurá Txucarramãe cresceu junto a uma referência de força, luta e conexão com o território. “Meus avós me ensinaram a importância da natureza,” conta. “Só que quando a gente é adolescente, estamos sob as asas dos nossos pais e não temos a preocupação com o que pode acontecer”.

Eu estou numa luta em defesa dos direitos dos povos indígenas, porque se a sociedade não indígena não reconhece os nossos direitos, a gente não interage bem, como está acontecendo hoje

Mayalú Txucarramãe

Foto: Cacá Meirelles/ISA

Em 2011, tudo mudou. Neste ano, seu pai, o cacique Megaron Txucarramãe, foi exonerado da Coordenação Regional da Funai de Colíder (MT) e decidiu voltar à Terra Indígena Capoto Jarina (MT). “E aí eu me senti sozinha aqui”, diz Mayalú, que na época cursava Geografia na UNEMAT.

Como ela, a juventude que vivia na cidade ficou sem referência de liderança por perto. “Vivíamos um caos, de discriminação com a juventude, e esses adolescentes entrando para o caminho do alcoolismo. Vi tudo isso e pensei: ‘eu tenho que conduzir [essa situação] como meu pai iria conduzir'”. Foi então que ela uniu os mais jovens e fundou o Movimento Mebêngokrê Nyre. “A juventude começou a se organizar para estar à frente, junto com as lideranças, e eu comecei o meu ativismo”.

“Eu estou numa luta em defesa dos direitos dos povos indígenas, porque se a sociedade não indígena não reconhece os nossos direitos, a gente não interage bem, como está acontecendo hoje,” explica.

Mayalú fnfrentou o racismo estrutural, a discriminação contra indígenas da cidade e a falta de oportunidades. Entrou para o DSEI Kayapó MT. Começou na limpeza, se tornou assistente administrativa e, hoje, é Secretária Executiva do CONDISI Kayapó MT. “Eu mostrei que estou lutando pelos direitos do meu povo e essa instituição é um espaço nosso, que nós devemos acessar”. Na saúde indígena, luta para garantir o bem viver do seu povo e o respeito à interculturalidade, “para que a equipe de saúde não venha com a imposição da medicina ocidental e não interfira no nosso modo de cuidar”.

Veio a pandemia de Covid-19 e Mayalú arregaçou as mangas para cuidar dos seus. Enquanto os parentes se isolavam no território, ela permaneceu na cidade, sensibilizando-os a se protegerem, compartilhando informações qualificadas e conquistando a confiança das lideranças diante de tantas mentiras. Funcionou: em março, os Mebêngokrê aceitaram a vacinação. “Foi muita emoção, choro pra todo lado,” conta. “A gente vive em constante medo. Em memória de quem perdeu a vida, a gente ficou feliz”.

“Eu acredito na ciência assim como eu acredito nos costumes e nas nossas tradições. E hoje, eu, enquanto professora, falo pra vocês que tem que acreditar na ciência”, finaliza.

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