Mulheres quilombolas, indígenas e ribeirinhas e o que as move.
“Quando eu era criança, sempre ia um coronel lá em casa falar pro meu pai que a gente não era dono da terra, que a gente estava lá de favor”
Vercilene Dias
Vercilene Dias, da comunidade Kalunga (GO)
Tudo começou com dois soldadinhos de brinquedo. Vercilene Dias era pequena quando deixou o quilombo Kalunga (GO), e foi viver no Tocantins, para estudar. Quando ganhou o presente, ouviu dos padrinhos, com quem vivia, que os soldados eram bons e puniam as pessoas más. E ali, decidiu que queria ser igual a eles, para poder prender o coronel que ameaçava sua família e tentava negar seu pertencimento à terra.
“E aí não parei mais. Parece que cada passo que eu dava era um passo de realizações, de seguir em frente. Se eu tivesse pelo menos a chance de estudar, para mim acho que já era suficiente”.
O interesse pela Justiça cresceu e os soldadinhos viraram um diploma em Direito e um título de Mestre em Direito Agrário. Não sem dificuldades, se tornou a primeira quilombola do Brasil a receber ambos. “Eu sentia que ser advogada era defender os direitos da minha família, dos meus, da população quilombola que vem sendo extremamente vulnerabilizada e invisibilizada durante todos esses séculos de resistência”.
Como assessora jurídica da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), esteve entre as primeiras quilombolas do país a assinar uma ação no Supremo Tribunal Federal. Mas o pioneirismo, ela conta, apesar de gratificante, é um trajeto solitário. “A responsabilidade é muito grande, o peso é enorme. Mas é gratificante saber que eu abri o espaço para várias outras mulheres brilharem e mostrarem que a gente é capaz também de estar ocupando esses espaços”.
“Hoje, eu colho a realização de um sonho, de lutar pelos direitos dos meus como se fossem os meus direitos”, Vercilene completa. “A luta continua, porque ela é constante na nossa vida. Tem uma longa jornada ainda pela frente. Mas a força que me guia é saber que as pessoas que vão ser beneficiadas estão lá na ponta e são minha família, meus amigos, companheiros de luta.”
Alessandra Munduruku, a força feminina contra a destruição do território
Quem vê Alessandra Munduruku hoje, mal consegue imaginar que ela um dia já foi tímida e quieta. Sempre em movimento pela sobrevivência do seu povo, ela parece não esmorecer ou recuar jamais. Mas foi vendo seu território ser invadido e destruído por grandes empreendimentos que ela começou a tomar a palavra, participar das discussões políticas e despontar como uma das protagonistas da resistência indígena no Brasil.
“Muitas vezes nos falavam que nós mulheres não éramos capazes, que nós mulheres não podíamos estar na luta, que não podíamos ficar falando. Mas de repente dissemos: as mulheres têm coragem”.
Alessandra Munduruku
Da timidez, não resta nem sombra. Alessandra foi a primeira mulher a presidir a Associação Indígena Pariri, que representa mais de dez aldeias do Médio Tapajós. Em 2019, chegou a discursar para mais de 270 mil pessoas no Portão de Brandenburgo, em Berlim, e recebeu, em 2020, o Prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos, um reconhecimento de sua força e coragem para proteger seu território e defender direitos.
Recentemente, esteve em Brasília para exigir o respeito à Consulta Livre, Prévia e Informada no processo de concessão da Ferrogrão, atualmente travado pela Justiça. “Não adianta fazer audiência pública com tudo pronto, querendo só que o povo diga sim,” explica ao Mongabay. “E todo o mundo tem voz, até as crianças”.
Mas o protagonismo não veio sem ameaças. Sob os holofotes, Alessandra acabou atraindo também a atenção de quem não a quer bem: em 2019, invadiram sua casa em Santarém e levaram documentos, pastas e um cartão de memória. “Eu fiquei bem assustada no começo, [mas] tive que continuar”, diz ao Portal Catarinas. “Não conseguiram me matar naquele tempo; não é agora que vão me calar”.
“A gente precisa de floresta, a gente precisa preservar o território para os nossos filhos, para os nossos netos ou tataranetos,” comenta, ao Brasil de Fato. “A gente vai resistir para continuar vivo.”
Mayalú Txucarramãe: saúde, bem viver e combate às fake news
Neta do grande cacique Raoni Metuktire, Mayalú Kokometi Waurá Txucarramãe cresceu junto a uma referência de força, luta e conexão com o território. “Meus avós me ensinaram a importância da natureza,” conta. “Só que quando a gente é adolescente, estamos sob as asas dos nossos pais e não temos a preocupação com o que pode acontecer”.
Eu estou numa luta em defesa dos direitos dos povos indígenas, porque se a sociedade não indígena não reconhece os nossos direitos, a gente não interage bem, como está acontecendo hoje
Mayalú Txucarramãe
Em 2011, tudo mudou. Neste ano, seu pai, o cacique Megaron Txucarramãe, foi exonerado da Coordenação Regional da Funai de Colíder (MT) e decidiu voltar à Terra Indígena Capoto Jarina (MT). “E aí eu me senti sozinha aqui”, diz Mayalú, que na época cursava Geografia na UNEMAT.
Como ela, a juventude que vivia na cidade ficou sem referência de liderança por perto. “Vivíamos um caos, de discriminação com a juventude, e esses adolescentes entrando para o caminho do alcoolismo. Vi tudo isso e pensei: ‘eu tenho que conduzir [essa situação] como meu pai iria conduzir'”. Foi então que ela uniu os mais jovens e fundou o Movimento Mebêngokrê Nyre. “A juventude começou a se organizar para estar à frente, junto com as lideranças, e eu comecei o meu ativismo”.
“Eu estou numa luta em defesa dos direitos dos povos indígenas, porque se a sociedade não indígena não reconhece os nossos direitos, a gente não interage bem, como está acontecendo hoje,” explica.
Mayalú fnfrentou o racismo estrutural, a discriminação contra indígenas da cidade e a falta de oportunidades. Entrou para o DSEI Kayapó MT. Começou na limpeza, se tornou assistente administrativa e, hoje, é Secretária Executiva do CONDISI Kayapó MT. “Eu mostrei que estou lutando pelos direitos do meu povo e essa instituição é um espaço nosso, que nós devemos acessar”. Na saúde indígena, luta para garantir o bem viver do seu povo e o respeito à interculturalidade, “para que a equipe de saúde não venha com a imposição da medicina ocidental e não interfira no nosso modo de cuidar”.
Veio a pandemia de Covid-19 e Mayalú arregaçou as mangas para cuidar dos seus. Enquanto os parentes se isolavam no território, ela permaneceu na cidade, sensibilizando-os a se protegerem, compartilhando informações qualificadas e conquistando a confiança das lideranças diante de tantas mentiras. Funcionou: em março, os Mebêngokrê aceitaram a vacinação. “Foi muita emoção, choro pra todo lado,” conta. “A gente vive em constante medo. Em memória de quem perdeu a vida, a gente ficou feliz”.
“Eu acredito na ciência assim como eu acredito nos costumes e nas nossas tradições. E hoje, eu, enquanto professora, falo pra vocês que tem que acreditar na ciência”, finaliza.