Narrativas orais no viver ribeirinho

As comunidades ribeirinhas na Amazônia produzem um espaço rico em narrativas orais, imaginários, experiências e os conteúdos dessas narrativas evidenciam muito do viver ribeirinho.

As comunidades ribeirinhas na Amazônia produzem um espaço rico em narrativas orais, imaginários, experiências e os conteúdos dessas narrativas evidenciam muito do viver ribeirinho, suas visões de mundo e de sobrevivência na Amazônia.
Comunidade ribeirinha de Calama em Porto Velho – Foto: Divulgação

O espaço ribeirinho é palco dessas narrativas, as quais tentam explicar os estranhamentos, as descobertas, a exemplo das peripécias dos botos, as ilhas imaginárias, as cobras grandes, as assombrações, os que são levados por algum “animal” e tornam-se “encantados do rio”. A convivência com o imaginário é um traço forte da cultura amazônica.

Quanta riqueza cultural há na Amazônia e o povo ribeirinho sabe narrar uma história com jeito, simplicidade, tons, emoções, ritmos e efeitos especiais. É um privilégio poder compartilhar dessa experiência em ouvir o narrador e se deliciar com narrativas contadas a beira de algum rio amazônico.

Do rio depende a vida, a fertilidade das várzeas, a inundação, a sobrevivência. O rio participa de toda a construção humana das pessoas, evidenciando os significados coletivos do grupo e a arte de contar histórias. 

Banco de madeira, local de contação de histórias – Foto: Divulgação

No universo da navegação, a cobra grande é temida e os barqueiros a descrevem-na como animal causador de medo, que costuma boiar, mora nos lugares profundos e oferece perigo ao barco pela possibilidade de colisão com a mesma.

Os barqueiros que atuam nos recreios (embarcações motorizadas) recorrem à dimensão simbólica para representar este espaço por eles navegado e materializado no diálogo mantido com a população ribeirinha. O comandante Waldir, 71 anos, relata a experiência do encontro com a cobra grande: “Eu já vi cobra grande lá no meu lago. Eu moro dentro do lago Jamarizinho e na frente de minha casa tem várias serpentes. Eu já vi ela muitas vezes no meu porto”.

Essa geografia das narrativas possibilita o encontro com a cultura ribeirinha, no sentido de conhecer lugares, experiências significativas como o encontro do Senhor Waldir com a “serpente”, sendo uma maneira de comunicar aquilo que vivencia e ver o mundo.

Outro personagem que faz parte das histórias é o boto, o ser misterioso das águas, o qual se apresenta como namorador/encantador, perseguidor, curador de doenças não-naturais, protetor e outras representações.

Geralmente, os botos não são perseguidos ou arpoados, havendo respeito por esse animal. Não é costume comê-lo, matá-lo por brincadeira porque acreditam que o animal possa ser vingativo. Se você malinar com algum boto de forma irresponsável poderá sofrer consequências nada agradáveis, desde ficar enfeitiçado, com febres, calafrios, dores no corpo, quebranto, perder o sentido das coisas e não ter sorte no trabalho.

No rio Madeira existem os botos tucuxi e vermelho. O boto tucuxi é cinza, tem fama de brincalhão, gosta de andar em grupo. É tido como o protetor dos barqueiros, dos que navegam nos rios da Amazônia como diz o barqueiro Elton: “Pra gente que vive na área de navegação, o boto é um protetor da gente. O boto não ataca a gente. Se alguém chegar a se alagar, naufrágio, bicho nenhum chega perto e ele não sai de perto da gente. Ele fica cercando e nenhum bicho não encosta […]”. 

Botos tucuxis – Foto: reprodução internet

O outro boto, o vermelho, é tido como agressivo, gosta de perseguir o pescador e furar sua malhadeira (instrumento de pesca) para pegar os peixes. Costuma manter uma atração irresistível às mulheres em fase menstrual. Durante esse período as mulheres costumam evitar viagens em canoa ou aproximar-se do rio ou dos igarapés.

A passageira Ana, 66 anos, nos conta: 

“Uma vez o boto tentou me perseguir, aconteceu comigo, meu irmão e minha irmã. A gente saindo e eles começaram a ir atrás, pegar no remo, um pouco mais começaram a pegar debaixo da canoa, se a gente não encostasse na beira eles tinham alagado mesmo a canoa. Era o boto vermelho, o principal na perseguição da canoa”.

O narrador conta a sua experiência e a dos outros, promovendo essa reflexão em torno da vida. O aprendizado compartilhado ajuda no conhecimento do espaço amazônico, fortalece a dimensão da transmissão dos saberes locais e o pertencimento das pessoas aos lugares.

Que esta experiência de Olhar Amazônia com pertencimento e justiça social possa ser multiplicada para a definição de campos possíveis de ação nas políticas públicas destinadas às populações ribeirinhas. Continue nos acompanhando e envie suas sugestões no e-mail: lucileydefeitosa@amazoniaribeirinha.com

Lucileyde Feitosa

Professora, Pós-Doutoranda em Comunicação e Sociedade (Universidade do Minho/Portugal), Doutora em Geografia/UFPR, Integrante do Movimento Jornalismo e Ciência na Amazônia e colunista da Rádio CBN Amazônia/Porto Velho. 

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