A jiboia, por muitos anos, teve sua morada em porões das embarcações para evitar entrada de roedores e proteção das cargas alimentícias transportadas nos diversos rios amazônicos.
A cultura amazônica apresenta um universo rico de manifestações decorrentes de imaginários, vivências, emoções, saberes e representações construídas no espaço ribeirinho. Esse modo de vida desperta a atenção de quem se interessa em saber como as populações tradicionais mantêm suas estratégias de sobrevivência nessa convivência com a natureza.
Nesta vasta Amazônia, a vida promove encontros com as jiboias (animal e planta), sendo significativos no espaço ribeirinho, existindo diversas leituras e curiosidades que despertam fascínio, estranhamento e observações interessantes.
Há uma produção humana, de ordem humanista e espiritual, na floresta de símbolos na qual socializa-se com os rios e os diferentes espaços geográficos, sendo interessante para a compreensão de como os ribeirinhos atribuem significados aos locais que moram, visitam e trabalham.
A jiboia é um animal protagonista das narrativas, vence outros animais pela força do olhar hipnotizador e possui grande beleza. Costuma ser respeitada por quem de fato conhece seu comportamento e seu poder nos territórios das matas e das águas.
Sua primeira atuação estar relacionada ao poder hipnotizador no qual detém em relação a atração mantida com outros animais e com o próprio homem na sua andança pela floresta, havendo a manifestação desse poder hipnotizador e do feitiço. Sua força atrativa é lembrada pelo passageiro Chico:
“Passei três dias e três noites na mata, quem me tirou foi um casal. Tinha ido caçar com os cachorros num dia de frio […]. Eu sei que fiquei perdido na mata, quando vi era tarde e não sair mais. Achei que fiquei perdido por causa da jiboia. Ela enfeitiça uma pessoa antes da gente ver ela. Se a pessoa ver a jiboia primeiro ela não enfeitiça”.
Na trajetória da vida, deparar-se com a jiboia pode significar estranhamento, ficar enfeitiçado caso ela perceba primeiro o caçador desavisado. De fato, o homem tenta evitar o contato direto com a cobra, tanto que prefere vê-la primeira para não correr o risco de ser “enfeitiçado”, ou seja, ficar atordoado, perdido e sem rumo na floresta.
A jiboia, por muitos anos, teve sua morada em porões das embarcações para evitar entrada de roedores e proteção das cargas alimentícias transportadas nos diversos rios amazônicos. Era batizada com um “nome” e costumava participar das viagens dos barcos recreios (embarcações motorizadas) na condição de protetora das cargas e o emanar das boas energias no sentido de atrair passageiros, logo o lucro seria garantido.
O habitat da jiboia constitui local de fartura de alimento, pois onde tem jiboia não falta uma boa caçada. Acaba sendo um espaço de grande valorização porque não falta caça, comida para alimentação da população ribeirinha. Como diz o barqueiro Babilônia:
“A jiboia atrai todo tipo de animal, é gente, é tudo. Ela atrai que o homem não a enxerga. Quanto mais velha, mais atraente fica. Ela permanece em buraco e ao redor só fica aquela ossada, o bicho vem onde ela tá e perto onde ela vive não falta caça. Se matar ela se acaba a caça”.
Essa visão proporciona entender na prática o sentido da sustentabilidade, havendo essa consciência da importância da jiboia no espaço amazônico, como age, sua atratividade e a importância em não matá-la e sim protegê-la.
O olhar da jiboia fascina, seduz, deixa perdido, encanta, confunde quem estar na floresta, sendo representações diversas que conectam pessoas no partilhar das experiências a respeito desse animal que participa das melhores narrativas amazônicas. O olhar acaba sendo fonte de observação, estabelecimento de socializações entre os moradores e do interesse que dá sentido a existência humana.
Os ribeirinhos testemunham muitas experiências interessantes, imprimem marcas à sua existência e os espaços são humanizados com marcas de afetividade, socialização, estranhamento e lembranças manifestadas por meio da linguagem que ajuda na transmissão da cultura e na descoberta de mundos.
A produção do olhar sobre a cobra jiboia vai sendo aperfeiçoada, ressignificada nessa convivência harmoniosa e ao mesmo tempo conflituosa com a natureza. A dimensão do olhar ribeirinho e de sua oralidade ajudam no conhecimento da representatividade desse animal na Amazônia.
A cobra jiboia é apresentada com força, beleza, capaz de ultrapassar os obstáculos, havendo uma ação positiva de sua persistência em vencer os desafios para alcançar os objetivos desejados. De modo exemplificativo, a simbologia dos anéis de cobra evidencia esses significados e o afastamento do mau olhado, sendo amuleto de proteção, superstição e misticismo. A jiboia faz parte da vida ribeirinha e continua irradiando brilho, contemplação, respeito, proteção e preservação.
E o espaço ribeirinho continua nos ensinando, por exemplo, da floresta vem a protetora e sagrada planta jiboia, com suas folhas em formato de coração e bastante utilizada para atrair boas energias nas casas e no trabalho.
Plantas Jiboia – Foto: Rubiane Mariana
Cultivar uma planta jiboia, além de ser fácil, ajuda a evitar mau olhado e pode ser utilizada dentro de casa, naquele cantinho bem especial. É uma planta super adaptável e pode decorar vasos, área externa, prateleira ou mesmo deixá-la num vaso com água.
Que esta experiência de Olhar Amazônia com pertencimento e justiça social possa ser multiplicada para a definição de campos possíveis de ação nas políticas públicas destinadas às populações ribeirinhas. Continue nos acompanhando e envie suas sugestões no e-mail: lucileydefeitosa@amazoniaribeirinha.com
Lucileyde Feitosa
Professora, Pós-Doutoranda em Comunicação e Sociedade (Universidade do Minho/Portugal), Doutora em Geografia/UFPR, Integrante do Movimento Jornalismo e Ciência na Amazônia e colunista da Rádio CBN Amazônia/Porto Velho.