Tecnologia e floresta: a infraestrutura digital como vetor da bioeconomia amazônica

A Amazônia ocupa um papel central nas discussões contemporâneas sobre sustentabilidade, clima e desenvolvimento, dada sua importância ecológica, sociocultural e econômica para o Brasil e o mundo.

Estação das Docas em Belém. Fonte: Reprodução/Arquivo/Agência Pará. (In: METRÓPOLES. Pará terá o mais diversificado parque de bioeconomia do Brasil. Disponível AQUI)

Ao longo das últimas décadas, o debate sobre modelos de desenvolvimento para a região tem evidenciado as limitações das abordagens tradicionais, baseadas na exploração intensiva de recursos naturais e em infraestruturas pouco integradas às dinâmicas locais. Nesse contexto, cresce o interesse por alternativas capazes de conciliar conservação da floresta, geração de renda e valorização dos conhecimentos territoriais, entre as quais a bioeconomia se destaca como proposta central.

Paralelamente, a revolução digital transforma profundamente a forma como sociedades produzem, circulam e utilizam informações. A expansão de redes de conectividade, o avanço do sensoriamento remoto, a inteligência artificial e as plataformas de dados vêm remodelando setores econômicos e abrindo novas possibilidades para regiões que antes permaneciam isoladas das dinâmicas tecnológicas globais. No caso da Amazônia, essas transformações ganham contornos particulares diante dos desafios de acesso, da grande extensão territorial e das profundas desigualdades entre áreas urbanas e comunidades rurais, ribeirinhas e indígenas.

A infraestrutura digital, entendida como o conjunto de tecnologias, redes, sistemas e plataformas que possibilitam a comunicação e o fluxo de dados, passa a ser um elemento fundamental para apoiar iniciativas econômicas sustentáveis. Além de ampliar a circulação de informações e facilitar o acesso a mercados, essa infraestrutura pode fortalecer processos produtivos baseados na sociobiodiversidade, apoiar o monitoramento ambiental e promover maior integração entre comunidades, instituições, pesquisadores e cadeias produtivas. Ao mesmo tempo, a ausência ou fragilidade dessa infraestrutura limita o desenvolvimento de atividades inovadoras, aprofundando desigualdades estruturais e restringindo a capacidade da Amazônia de avançar em novos modelos econômicos.

Diante desse cenário, torna-se fundamental compreender como tecnologia e floresta se conectam na construção de caminhos para um desenvolvimento sustentável. Assim, este artigo tem como objetivo analisar de que forma a infraestrutura digital atua como vetor estratégico para o fortalecimento e a expansão da bioeconomia na Amazônia, evidenciando oportunidades, desafios e contradições que emergem dessa articulação.

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Bioeconomia amazônica: conceitos, potenciais e desafios

A bioeconomia tem se consolidado como uma das principais alternativas para promover o desenvolvimento sustentável da Amazônia, sobretudo diante da necessidade de conciliar conservação ambiental e geração de renda. Embora o conceito seja amplo e multifacetado, no contexto amazônico ele se associa principalmente ao uso sustentável dos recursos da sociobiodiversidade, à agregação de valor a produtos florestais e à integração entre conhecimentos científicos, tecnológicos e tradicionais.

Nesse sentido, a bioeconomia amazônica não pode ser reduzida à lógica industrial baseada em biomassa, típica de países desenvolvidos, mas deve ser compreendida como um modelo territorialmente situado, que envolve práticas de manejo sustentável, cadeias produtivas tradicionais, tecnologias sociais e a valorização de saberes ancestrais.

Os potenciais da bioeconomia na Amazônia são reconhecidos internacionalmente. A região abriga milhares de espécies com alto valor econômico e farmacológico, além de cadeias produtivas já consolidadas, como o açaí, a castanha, o cacau, os óleos vegetais, a borracha e a pesca manejada. Esses setores movimentam economias locais, fortalecem a agricultura familiar e contribuem para manter a floresta em pé. Além disso, iniciativas baseadas em sistemas agroflorestais, turismo de base comunitária, meliponicultura e manejo florestal comunitário demonstram a possibilidade de articular conservação, inovação e inclusão social, ao mesmo tempo em que ampliam a diversificação econômica e a adaptação climática.

Açaí
Açaí é uma das frutas mais populares da Amazônia. Foto: Divulgação/Idam
  • Apesar desse potencial, a bioeconomia amazônica enfrenta desafios estruturais que limitam sua expansão. Entre os principais estão:
  • a baixa agregação de valor nas cadeias produtivas;
  • a dependência de intermediários;
  • dificuldades logísticas típicas de uma região continental;
  • assimetrias de informação entre produtores e mercados;
  • fragilidades na organização socioprodutiva;
  • e limitações no acesso a crédito, certificações e infraestrutura adequada.

Além disso, persistem lacunas regulatórias relacionadas ao uso de recursos genéticos, à repartição de benefícios e à proteção de conhecimentos tradicionais, o que gera insegurança jurídica e dificulta o desenvolvimento de novos produtos e pesquisas.

Outro elemento crucial é o distanciamento histórico entre ciência, inovação e práticas produtivas locais. Embora a Amazônia concentre centros de pesquisa de excelência, a transferência de tecnologia e a articulação entre instituições, empreendedores, comunidades e governos ocorrem de forma desigual e muitas vezes fragmentada. A falta de integração limita a criação de ambientes de inovação e dificulta o fortalecimento de ecossistemas bioeconômicos capazes de gerar competitividade regional. A isso se soma a desigualdade territorial no acesso a serviços públicos e infraestrutura, que afeta diretamente a capacidade de comunidades ribeirinhas, aldeias indígenas e agricultores familiares de participar de mercados mais amplos.

Portanto, compreender a bioeconomia amazônica exige reconhecer tanto seus enormes potenciais quanto as barreiras que impedem a sua plena consolidação. A superação desses desafios demanda políticas públicas estruturantes, investimentos em ciência e tecnologia, fortalecimento das organizações comunitárias e modelos de governança que respeitem os territórios, seus conhecimentos e seus modos de vida. Nesse cenário, a infraestrutura digital emerge como elemento fundamental para conectar atores, ampliar a circulação de informações, dinamizar cadeias produtivas e viabilizar novos arranjos econômicos — tema que será explorado nas seções seguintes.

Infraestrutura digital: conectividade, dados e transformação territorial

A infraestrutura digital tem assumido papel central nos processos contemporâneos de desenvolvimento, estruturando novas formas de produção, circulação de conhecimento, inovação e interação social. No contexto amazônico, sua importância se intensifica devido à extensão territorial, às limitações históricas de conectividade e às desigualdades no acesso à informação.

A infraestrutura digital compreende um conjunto de tecnologias, redes e sistemas — como internet de banda larga, conectividade móvel, satélites, cabos ópticos, computação em nuvem, sensores, plataformas de dados e inteligência artificial — que permitem o fluxo contínuo de informações, ampliando capacidades produtivas e de governança. Assim, torna-se uma dimensão estratégica para quaisquer iniciativas que pretendam integrar sustentabilidade, competitividade e inclusão social.

A expansão da conectividade modifica profundamente as dinâmicas socioeconômicas dos territórios. Em regiões urbanas, a infraestrutura digital impulsiona setores como comércio, serviços financeiros, educação e saúde à distância. Em áreas rurais e florestais, entretanto, ela adquire uma função ainda mais estruturante: conecta comunidades isoladas, fortalece redes de cooperação, permite o acesso a mercados, incentiva a formalização produtiva e amplia a capacidade local de acompanhar mudanças ambientais e econômicas. A presença de uma rede digital mínima passa a ser requisito para que agricultores familiares, extrativistas, pescadores, artesãos e empreendedores locais tenham condições de participar de circuitos econômicos mais dinâmicos, reduzindo assimetrias históricas de informação.

Ao mesmo tempo, a infraestrutura digital viabiliza o uso de tecnologias de monitoramento e processamento de dados que têm transformado a forma como o território amazônico é observado, analisado e planejado. Sistemas de sensoriamento remoto, imagens de satélite, drones, geoIA (inteligência artificial geoespacial) e plataformas de análise avançada permitem acompanhar desmatamento, queimadas, cheias, secas e dinâmicas produtivas quase em tempo real. Essas ferramentas contribuem para o fortalecimento da governança ambiental, apoiam decisões sobre manejo florestal, logística de produção e prevenção de riscos climáticos, além de ampliar a transparência sobre o uso do território. Nesse sentido, a digitalização também se torna parte dos mecanismos de controle social e de sustentabilidade ambiental.

No entanto, a transformação digital não ocorre de maneira homogênea. Persistem profundas desigualdades de acesso entre regiões, municípios e grupos sociais. Comunidades ribeirinhas, aldeias indígenas, pequenas cidades e áreas de difícil acesso ainda enfrentam limitações de conectividade, custo elevado de equipamentos, baixa formação digital e falta de infraestrutura energética adequada. Essas barreiras não apenas restringem o uso de tecnologias avançadas, mas também impedem que populações locais usufruam dos benefícios associados ao mercado digital, à rastreabilidade de produtos, às plataformas de comercialização e à economia da informação. Assim, a ausência de infraestrutura digital reforça desigualdades históricas e compromete o potencial transformador da bioeconomia.

Leia também: Caminhos sustentáveis: como a infraestrutura verde impulsiona a bioeconomia na região amazônica

Além disso, a expansão acelerada de tecnologias digitais na Amazônia suscita debates críticos sobre soberania de dados, dependência tecnológica, vigilância e assimetrias de poder entre grandes plataformas tecnológicas, governos e populações tradicionais. A captura e o uso de dados territoriais e biológicos por empresas e instituições externas podem aprofundar formas de colonialismo digital, reproduzindo lógicas extrativas agora centradas na informação. Nesse sentido, discutir infraestrutura digital na Amazônia implica questionar quais tecnologias são implementadas, por quem, para quem e com quais mecanismos de governança e participação social.

Desse modo, a infraestrutura digital pode atuar como vetor de transformação territorial, ampliando oportunidades econômicas, fortalecendo a governança ambiental e promovendo maior integração regional. Contudo, seu impacto depende da capacidade de garantir acesso equitativo, participação comunitária, governança transparente e alinhamento com estratégias de desenvolvimento sustentável. É nessa interface entre tecnologia, território e inclusão que se define o potencial da digitalização para apoiar a bioeconomia amazônica — questão aprofundada na próxima seção.

Conexões entre tecnologia e bioeconomia: caminhos de integração

A integração entre infraestrutura digital e bioeconomia amazônica constitui hoje um dos campos mais promissores para a construção de modelos de desenvolvimento sustentáveis na região. A digitalização tem potencial para fortalecer cadeias produtivas, ampliar a agregação de valor, melhorar o monitoramento ambiental e promover a inclusão socioeconômica de populações tradicionais. Ao conectar florestas, pessoas, dados e mercados, a tecnologia cria condições para transformar produtos da sociobiodiversidade em ativos competitivos, rastreáveis e integrados a circuitos econômicos de maior escala, sem romper com a lógica da conservação ambiental.

Um dos principais pontos de convergência entre tecnologia e bioeconomia é a rastreabilidade produtiva. Plataformas digitais, blockchain, georreferenciamento e certificações eletrônicas permitem acompanhar a origem, o modo de produção e a trajetória dos produtos florestais não madeireiros, como açaí, castanha, cacau, óleos vegetais e mel de abelhas nativas. Esse processo não apenas garante maior transparência e confiança aos consumidores, mas também assegura que os benefícios econômicos retornem às comunidades produtoras. A rastreabilidade digital também reduz intermediários, amplia a inserção internacional dos produtos amazônicos e contribui para combater irregularidades como exploração ilegal, fraudes e desmatamento associado.

Mel produzido das flores dos açaizeiros. Foto: Arthur Corrêa/Nectar Amazônia

Outro campo central de integração é o monitoramento ambiental digital. O uso de tecnologias de sensoriamento remoto, drones, imagens de satélite e inteligência artificial possibilita acompanhar desmatamento, queimadas, cheias, secas e dinâmicas ecológicas com alta precisão. Essas ferramentas fortalecem o manejo florestal comunitário, orientam decisões sobre áreas de coleta de produtos extrativos, antecipam riscos climáticos e ampliam a segurança territorial. Em cadeias como as de borracha, pirarucu, castanha ou meliponicultura, o mapeamento digital possibilita otimizar rotas, identificar períodos de coleta e monitorar estoques naturais, integrando sustentabilidade e eficiência produtiva.

Além disso, a tecnologia desempenha papel fundamental na formação, comunicação e integração entre agentes da bioeconomia. Plataformas digitais de aprendizagem, redes comunitárias de internet, telecentros e aplicativos móveis permitem que agricultores familiares, extrativistas, jovens rurais e empreendedores de base comunitária acessem informações técnicas, capacitações e mercados antes distantes. Esse acesso contribui para reduzir assimetrias de conhecimento, apoiar a inovação territorial e fortalecer organizações locais, como cooperativas e associações, que passam a operar com maior autonomia e capacidade de gestão.

As plataformas de comercialização digital também se apresentam como importantes aliados da bioeconomia. Marketplaces regionais, ferramentas de pagamento digital, comércio eletrônico e aplicativos móveis ampliam a visibilidade dos produtos amazônicos e diversificam formas de venda. Em muitos casos, a digitalização possibilita acessar consumidores urbanos, mercados internacionais e nichos específicos interessados em produtos de origem sustentável, orgânica ou florestal. Para microempreendedores e grupos comunitários, isso representa oportunidades concretas de geração de renda e consolidação produtiva, diminuindo a dependência de intermediários e aumentando o valor agregado.

Contudo, essa integração entre tecnologia e bioeconomia não está isenta de riscos e contradições. O avanço da digitalização pode gerar desigualdades dentro das próprias cadeias produtivas, excluindo grupos com menor acesso à internet, baixa alfabetização digital ou restrições de infraestrutura elétrica. Há também questões de soberania e segurança dos dados territoriais, especialmente quando informações sobre recursos naturais, práticas tradicionais e conhecimentos associados entram em plataformas controladas por agentes externos. Assim, o uso da tecnologia precisa estar alinhado a princípios de autonomia, ética, transparência e governança participativa.

A articulação entre infraestrutura digital e bioeconomia demanda políticas públicas integradas, investimentos de longo prazo e fortalecimento de capacidades locais. A tecnologia, por si só, não garante desenvolvimento sustentável. Seu potencial depende do modo como é incorporada aos territórios, do protagonismo das populações amazônicas e do estabelecimento de arranjos institucionais que combinem inovação, inclusão e preservação da floresta. Quando orientada por esses princípios, a integração entre tecnologia e bioeconomia pode se tornar uma das principais vias para um futuro amazônico sustentável, competitivo e socialmente justo.

Considerações finais

A relação entre tecnologia e floresta revela um campo estratégico para pensar novos modelos de desenvolvimento para a Amazônia. A infraestrutura digital, ao ampliar o acesso à informação, permitir monitoramento ambiental preciso e conectar produtos da sociobiodiversidade a mercados mais amplos, emerge como elemento estruturante da bioeconomia contemporânea. Contudo, seu potencial transformador só se realiza plenamente quando articulado às realidades territoriais, aos conhecimentos tradicionais e à superação das desigualdades históricas que marcam a região.

Os resultados da análise mostram que a digitalização pode fortalecer cadeias produtivas sustentáveis, promover inclusão socioeconômica e ampliar a capacidade de governança ambiental. Rastreabilidade, certificações digitais, sensoriamento remoto, plataformas de dados e comércio eletrônico constituem instrumentos concretos para agregar valor, aumentar transparência e melhorar a competitividade de produtos florestais. Ao mesmo tempo, essas ferramentas fortalecem estratégias de conservação ao possibilitar monitoramento contínuo e participação comunitária em ações de gestão territorial.

No entanto, os avanços não eliminam os desafios. A insuficiência de conectividade em áreas rurais, o acesso desigual à formação digital, os custos tecnológicos e os riscos de dependência de grandes plataformas globais demonstram que a digitalização da bioeconomia amazônica exige políticas públicas consistentes, democráticas e territorialmente sensíveis. O fortalecimento da infraestrutura digital deve vir acompanhado de marcos de governança que garantam soberania de dados, participação social e distribuição justa dos benefícios econômicos.

Assim, a tecnologia não deve ser vista como solução isolada, mas como um vetor que pode potencializar arranjos produtivos existentes, promover inovação social e gerar valor econômico sem romper com a lógica da floresta em pé. A construção de uma bioeconomia amazônica digitalizada depende da articulação entre governos, instituições científicas, setor privado, organizações comunitárias e populações tradicionais. É nesse encontro entre saberes, territórios e tecnologias que se delineia a possibilidade real de um desenvolvimento sustentável, inclusivo e baseado no fortalecimento da sociobiodiversidade amazônica.

Com a colaboração de:

Prof. Dr, Yunier Sarmiento Ramírez possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade do Estado do Amazonas, mestrado em Gestão de Empresas pela Universidad de Holguín – Cuba e doutorado em Economia pela Universidade Federal de Rio Grande do Sul. Atualmente é professor da Universidade Federal do Amazonas no Departamento de Economia e Análise – DEA e no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia – PPGSS. Desenvolve pesquisas na área de Economia aplicada, teoria econômica e métodos quantitativos

Sobre o autor

Prof. Dr, José Barbosa Filho possui graduação em Engenharia de Pesca pela Universidade Federal do Ceará (1989), mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Ceará (1992) e doutorado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (2005). Atualmente é professor Titular da Universidade Federal do Amazonas. Desenvolve pesquisas na área de Contabilidade Ambiental, Matemática Financeira e Econometria, com ênfase em Gestão Ambiental, atuando principalmente nas seguintes áreas: valoração ambiental, desenvolvimento sustentável, avaliação de impactos ambientais e gerenciamento de processos.

Contato: jbarbosa@ufam.edu.br

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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