Da floresta ao mercado: desafios e oportunidades para os sistemas produtivos locais na Amazônia

Os sistemas produtivos locais da Amazônia expressam a relação histórica entre as populações tradicionais e o uso sustentável dos recursos naturais, refletindo as potencialidades e contradições de um modelo de desenvolvimento baseado na sociobiodiversidade e na bioeconomia.

Fruto do açaí. Foto: Reprodução/IDAM

Por Yunier Sarmiento Ramírez e Jose Barbosa Filho

A Amazônia abriga uma diversidade de sistemas produtivos locais (SPLs) — da castanha, do açaí e dos óleos vegetais ao artesanato e ao turismo de base comunitária — que articulam saberes tradicionais, conservação ambiental e geração de renda. No entanto, a passagem “da floresta ao mercado” enfrenta gargalos persistentes de logística, crédito, assistência técnica, certificação e acesso a canais comerciais mais justos, ao mesmo tempo em que convive com pressões de desmatamento e volatilidade de preços.

Da floresta ao mercado: desafios e oportunidades para os sistemas produtivos locais na Amazônia
Açaí é um dos frutos típicos da Amazônia. Fonte: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP). Webinar Extrativismo vegetal e bioeconomia na Amazônia: desafios e oportunidades. Campinas: Instituto de Economia, 2023. Disponível em: https://www.eco.unicamp.br/eventos/historico/webinar-extrativismo-vegetal-e-bioeconomia-na-amazonia-desafios-e-oportunidades. Acesso em: 23 out. 2025.

Este artigo analisa os desafios e oportunidades para o fortalecimento dos sistemas produtivos locais na Amazônia, à luz da transição para uma bioeconomia baseada na sociobiodiversidade e na valorização dos conhecimentos tradicionais. A discussão enfatiza o papel das políticas públicas, do cooperativismo, da rastreabilidade e da inovação tecnológica como eixos estratégicos para a sustentabilidade regional. Em seguida, são mobilizados dados do IBGE que caracterizam a escala e a dinâmica recente da produção extrativista e agroflorestal, oferecendo subsídios para compreender as potencialidades e limitações desses sistemas no desenvolvimento territorial sustentável da região.

1. Panorama da Produção Extrativista na Amazônia

      Os dados mais recentes do IBGE (2024) revelam que o Brasil produziu 763.662 toneladas de produtos alimentícios oriundos da extração vegetal, distribuídas de forma bastante desigual entre as grandes regiões do país. A Região Sul ocupa o primeiro lugar, com 387.200 toneladas, o que corresponde a 51% do total nacional, seguida pela Região Norte, com 277.058 toneladas (36%). As demais regiões — Sudeste (7%), Nordeste (5%) e Centro-Oeste (1%) — têm participações bem mais modestas, conforme apresentado na Figura 1.

      Figura 1 – Quantidade produzida na extração vegetal de produtos alimentícios por grande região, Brasil, 2024.

      Fonte: IBGE – Produção da Extração Vegetal e Silvicultura, 2024.

      A produção expressiva do Sul, contudo, é fortemente concentrada em um único produto: a erva-mate, cuja extração alcançou 377.441 toneladas, representando cerca de 95,5% da produção total da região. Trata-se de uma cadeia consolidada e tradicional, voltada tanto ao mercado interno quanto à exportação, e que difere substancialmente das dinâmicas produtivas observadas na Amazônia. No caso amazônico, a diversidade é a principal característica: castanha-do-pará, açaí, babaçu, andiroba, buriti, copaíba e outros produtos formam uma teia de sistemas produtivos locais (SPLs) baseados no uso sustentável da floresta e na valorização de saberes tradicionais.

      📲 Confira o canal do Portal Amazônia no WhatsApp

      Esses dados revelam dois modelos distintos de extrativismo vegetal no Brasil. O primeiro, predominante no Sul, é marcado pela especialização produtiva e pela inserção consolidada em cadeias agroindustriais. O segundo, característico da Amazônia, apresenta forte relação entre economia e ecologia, sendo sustentado por comunidades ribeirinhas, indígenas e extrativistas que conciliam o uso dos recursos naturais com a conservação ambiental. Essa diferença explica por que, mesmo com menor volume absoluto, a produção amazônica possui maior relevância socioambiental e representa um ativo estratégico para o avanço da bioeconomia e do desenvolvimento territorial sustentável.

      A análise dos levantamentos anteriores do IBGE indica que a participação da Região Norte tem se mantido relativamente estável ao longo dos últimos anos, sempre figurando entre as principais produtoras de alimentos extrativos do país. Essa constância reforça o papel estrutural do extrativismo amazônico na economia regional e sua importância para a transição rumo à bioeconomia sustentável. Essa estabilidade sugere resiliência dos sistemas extrativistas amazônicos, mesmo diante de desafios como a oscilação de preços, o difícil acesso a mercados e a pressão de atividades predatórias. Assim, o fortalecimento dessas cadeias — por meio de políticas de crédito verde, certificação, agregação de valor e infraestrutura logística sustentável — é essencial para transformar o potencial amazônico em vantagem competitiva e sustentável no cenário nacional e global.

      2. Principais Produtos da Extração Vegetal na Amazônia

        A diversidade produtiva é uma das principais marcas do extrativismo amazônico. Os dados do IBGE (2024) revelam que, embora produtos como açaí (229.938 t) e castanha-do-pará (33.422 t) liderem a produção regional, há uma ampla variedade de itens que compõem o mosaico dos sistemas produtivos locais — incluindo fibras, óleos vegetais, borrachas naturais, piaçava, babaçu, buriti e outros frutos nativos com grande potencial de uso na bioeconomia.

        Tabela 1 – Produção de produtos extrativos selecionados na Região Norte, 2024

        Madeira em tora8.080.566,0Metros cúbicos
        Lenha3.309.926,0Metros cúbicos
        Açaí (fruto)229.938,0Toneladas
        Carvão vegetal140.793,0Toneladas
        Castanha-do-pará33.422,0Toneladas
        Fibras5.355,0Toneladas
        Piaçava5.039,0Toneladas
        Palmito3.299,0Toneladas
        Pequi (fruto)3.074,0Toneladas
        Oleaginosos2.467,0Toneladas
        Borrachas1.549,0Toneladas
        Hevea (látex coagulado)1.532,0Toneladas
        Babaçu (amêndoa)1.296,0Toneladas
        Buriti297,0Toneladas
        Copaíba (óleo)290,0Toneladas
        Pequi (amêndoa)270,0Toneladas
        Cumaru (amêndoa)188,0Toneladas
        Ceras120,0Toneladas
        Castanha-de-caju53,0Toneladas
        Hevea (látex líquido)18,0Toneladas
        Mangaba (fruto)12,0Toneladas
        Aromáticos, medicinais, tóxicos e corantes1,0Toneladas
        Urucum (semente)1,0Toneladas
        Tucum (amêndoa)1,0Toneladas

        Fonte: IBGE – Produção da Extração Vegetal e Silvicultura (PEVS), 2024.

        Essa diversidade reflete a interdependência entre economia e ecossistema amazônico, pois cada produto extrativo está associado a um bioma específico, um ciclo ecológico e um saber tradicional distinto. O açaí, por exemplo, é o principal produto alimentar da região, com forte presença em mercados nacionais e internacionais, enquanto a castanha-do-pará constitui um dos pilares da renda comunitária em territórios ribeirinhos e indígenas.

        Além disso, produtos como copaíba, andiroba, buriti e cumaru apresentam crescente demanda nos setores cosmético e farmacêutico, sendo estratégicos para a consolidação da bioeconomia amazônica. Mesmo itens com menor volume, como o urucum e o tucum, possuem valor simbólico e potencial de uso em cadeias artesanais e de pigmentos naturais.

        Essa variedade evidencia que o extrativismo na Amazônia não é apenas uma atividade econômica, mas um modo de vida e de gestão ambiental coletiva, que contribui simultaneamente para a conservação da floresta e para o sustento de milhares de famílias. Assim, fortalecer esses sistemas produtivos exige políticas públicas que combinem inovação tecnológica, valorização cultural e acesso justo a mercados, promovendo uma transição efetiva “da floresta ao mercado”.

        3. Desafios e Oportunidades para os Sistemas Produtivos Locais na Amazônia

          A Amazônia é um território de paradoxos: possui uma das maiores biodiversidades do planeta, mas também enfrenta profundas desigualdades socioeconômicas e gargalos estruturais que dificultam a consolidação de sistemas produtivos locais sustentáveis. De acordo com Dias e Galina (2025), os negócios da floresta — em sua maioria, associações e cooperativas formadas por ribeirinhos, indígenas e extrativistas — representam alternativas concretas de desenvolvimento, pois combinam valorização da sociobiodiversidade com inclusão produtiva e conservação ambiental. No entanto, a ausência de infraestrutura adequada, o alto custo logístico e a concentração de valor nas etapas finais das cadeias produtivas ainda limitam o alcance econômico dessas iniciativas.

          Entre os principais desafios estruturais, destacam-se:

          • Infraestrutura e logística insuficientes, que elevam o custo de transporte dos produtos extrativos e reduzem sua competitividade nos mercados nacional e internacional;
          • Baixa capacidade de agregação de valor, já que a maior parte da produção é comercializada in natura, com pouca industrialização local;
          • Acesso limitado a crédito e assistência técnica, especialmente nas áreas rurais e fluviais;
          • Fragilidade institucional e ausência de políticas públicas contínuas voltadas à bioeconomia e à organização comunitária.

          Como observam Ossame et al. (2025), a bioeconomia amazônica surge como um caminho promissor para enfrentar esses desafios, ao propor a transformação sustentável dos recursos biológicos em produtos de maior valor agregado, como alimentos funcionais, cosméticos naturais e fitoterápicos. Essa abordagem favorece cadeias mais resilientes e reduz a dependência da exploração predatória, ampliando as oportunidades de mercado para comunidades locais.

          Leia também: Amazonas e o clima: impactos das mudanças globais

          Por outro lado, o relatório da Jornada Amazônia (2024) reforça que as cadeias produtivas amazônicas são complexas e fragmentadas, com baixo grau de integração entre os elos de produção, processamento e comercialização. A construção de uma cadeia de valor sustentável, portanto, requer arranjos interorganizacionais capazes de articular comunidades, governos e setor privado — promovendo inovação social, governança compartilhada e inclusão produtiva.

          Ainda que os obstáculos sejam significativos, há oportunidades estratégicas emergindo nesse cenário:

          • Expansão dos mercados verdes e éticos, que valorizam produtos certificados e de origem sustentável;
          • Integração digital e comércio eletrônico, que reduzem intermediários e ampliam o alcance de produtores locais;
          • Valorização dos saberes tradicionais, reconhecidos como ativos culturais e produtivos da sociobiodiversidade;
          • Iniciativas de financiamento climático e investimentos de impacto, que têm direcionado recursos para projetos de baixo carbono e negócios comunitários da floresta.

          Essas dinâmicas indicam que o futuro dos sistemas produtivos amazônicos dependerá da capacidade de conectar inovação tecnológica, justiça social e conservação ambiental. Assim, transformar o potencial da floresta em oportunidades de mercado sustentáveis exige repensar as políticas públicas, os instrumentos de fomento e os modelos de governança regional — colocando as comunidades tradicionais no centro da estratégia de desenvolvimento da bioeconomia.

          4. Considerações finais

            Os sistemas produtivos locais da Amazônia enfrentam o desafio de conciliar conservação ambiental e desenvolvimento econômico em um território marcado por desigualdades estruturais e baixa capacidade de agregação de valor. As cadeias extrativistas, formadas majoritariamente por cooperativas e comunidades tradicionais, ainda sofrem com limitações logísticas, falta de crédito e infraestrutura, além de políticas públicas fragmentadas. No entanto, estudos recentes apontam que a bioeconomia amazônica representa uma oportunidade estratégica para transformar produtos tradicionais — como o açaí, a castanha-do-pará e os óleos vegetais — em bens de alto valor agregado, fortalecendo cadeias de valor sustentáveis e gerando inclusão social. Essa transição, entretanto, exige inovação tecnológica, governança compartilhada e integração entre comunidades, governos e setor privado, de modo que o potencial da floresta seja convertido em riqueza distribuída e sustentável, sem romper o vínculo histórico e cultural das populações amazônicas com seus territórios

            Referências

            DIAS, Sylmara Lopes Francelino Gonçalves; GALINA, Simone Vasconcelos Ribeiro. Negócios da (na) floresta amazônica: desafios e oportunidades da sustentabilidade na cadeia de valor. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, v. 30, e93339, São Paulo: FGV EAESP, 2025. Disponível em: https://doi.org/10.12660/cgpc.v30.93339.

            OSSAME, Reinaldo Dias; EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Bioeconomia, inclusão social e sustentabilidade: caminhos para uma transição verde e justa. RECIMA21 – Revista Científica Multidisciplinar, v. 6, n. 3, p. e636303, 2025. Disponível em: https://recima21.com.br/index.php/recima21/article/view/6303.

            JORNADA AMAZÔNIA. A complexidade da cadeia produtiva na Amazônia: os desafios e potenciais de uma bioeconomia inclusiva. Relatório técnico, 2024. Disponível em: https://jornadaamazonia.org.br.

            Com a colaboração de:

            Prof. Dr, Yunier Sarmiento Ramírez possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade do Estado do Amazonas, mestrado em Gestão de Empresas pela Universidad de Holguín – Cuba e doutorado em Economia pela Universidade Federal de Rio Grande do Sul. Atualmente é professor da Universidade Federal do Amazonas no Departamento de Economia e Análise – DEA e no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia – PPGSS. Desenvolve pesquisas na área de Economia aplicada, teoria econômica e métodos quantitativos

            Sobre o autor

            Prof. Dr, José Barbosa Filho possui graduação em Engenharia de Pesca pela Universidade Federal do Ceará (1989), mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal do Ceará (1992) e doutorado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (2005). Atualmente é professor Titular da Universidade Federal do Amazonas. Desenvolve pesquisas na área de Contabilidade Ambiental, Matemática Financeira e Econometria, com ênfase em Gestão Ambiental, atuando principalmente nas seguintes áreas: valoração ambiental, desenvolvimento sustentável, avaliação de impactos ambientais e gerenciamento de processos.

            Contato: jbarbosa@ufam.edu.br

            *O conteúdo é de responsabilidade do colunista

            Publicidade
            Publicidade

            Relacionadas:

            Mais acessadas:

            Você conhece as mascotes dos times de futebol da Região Norte?

            As mascotes de time são uma tradição no mundo, não só no futebol, mas em todo ambiente esportivo, pois elas são fundamentais para a representação do processo cultural de uma agremiação.

            Leia também

            Publicidade