Enquanto a maioria da nação lamentava a saída precoce do Brasil na Copa do Mundo de Futebol, no interior da Amazônia, meninas ribeirinhas já estavam com as mentes e o foco no mundial de 2027.
A Copa do Mundo de Futebol Feminino 2023 chegou ao fim em agosto com uma decisão inédita entre Inglaterra e Espanha. Enquanto a maioria da nação ainda lamenta a saída precoce do Brasil da competição, no interior da Amazônia, meninas ribeirinhas já estão com as mentes e o foco no mundial de 2027.
Na comunidade de Porto Braga, localizada na Desenvolvimento Sustentável (RDS) Mamirauá, interior do Amazonas e às margens do Rio Solimões, centenas de jovens atletas concorreram ao título de melhor time de futebol feminino, na faixa etária de 10 a 17 anos. O torneio, sem dúvida o mais concorrido do evento, fez parte das Olimpíadas da Juventude da Floresta, evento socioeducativo promovido pela Fundação Amazônia Sustentável (FAS).
“Nosso polo trouxe equipes para todas as modalidades das Olimpíadas: queimada, cabo de guerra, vôlei, futebol e corrida no saco. Mas eu quero participar mais do futebol, o futebol é a minha inspiração”,
conta Valdeane Santos, 16 anos, moradora do Punã, uma das 41 comunidades que participaram dessa edição do evento esportivo.
A fala da adolescente reflete um sentimento coletivo. Sem grandes patrocinadores e longe dos holofotes, os campeonatos amadores no interior da Amazônia talvez sejam o exemplo mais eloquente da máxima que o futebol é uma paixão nacional.
Nas franjas e recônditos do Brasil, do qual a Amazônia representa mais da metade do território, é onde a paixão futebolística pulsa mais forte, em cada campinho de várzea ou chão batido. Em lugares como a RDS Mamirauá, uma das maiores reservas florestais do Brasil, onde está situada Porto Braga, sede desta edição das Olimpíadas da Juventude da Floresta.
Enquanto seleções femininas de futebol de todo o mundo se enfrentavam na Austrália e Nova Zelândia, do outro lado do globo, as atenções dessa pequena comunidade ribeirinha amazônica se voltaram para um só lugar: o gramado local, onde as medalhas foram disputadas com a garra e emoção de uma final olímpica.
“Eu sou acostumada a ser atacante, eu sempre jogo campeonatos. Mas fazer um gol nas Olimpíadas tem um sentimento diferente, uma emoção”, diz a jovem Liliane Dias, 16 anos, que representou a comunidade Coadi e o polo (grupo de comunidades da mesma região) “Gaviões da Floresta”.
“Eu estou muito feliz, porque fiz um gol. Foi bom, eu sou do polo Ribeirinho e essa foi uma oportunidade para jogar no time. Eu jogo na comunidade, mas essa posição de atacante foi nova pra mim. Não esperava fazer o gol, me senti alegre”, revela Maria Laíne de Oliveira, 13 anos.
Reconhecimento e valorização
Se o futebol é um símbolo da nossa brasilidade, querido e apreciado por uma maioria, quando olhamos para o futebol feminino, a realidade é muito menos favorável e de luta contra preconceitos e estereótipos.
A prática do esporte inclusive foi proibida para mulheres no país, durante um dos governos de Getúlio Vargas, e assim permaneceu por mais de 40 anos, até o fim da ditadura militar nos anos 1980. Hoje, por conta do machismo enraizado na sociedade, o futebol feminino segue largamente desvalorizado no Brasil. As ligas nacionais femininas ainda estão engatinhando, com pouco patrocínio e salários baixos para as atletas, principalmente quando comparados aos dos times masculinos.
No Amazonas, o cenário é ainda mais precário em termos de investimento e visibilidade. Com um campeonato estadual modesto e clubes cujo melhor desempenho atual são participações na Série C do Campeonato Brasileiro, o futebol amazonense oferece ainda menos espaço para atletas femininas.
Uma exceção, no entanto, desafiou a regra e aponta um caminho de ruptura e esperança: no Campeonato Brasileiro Feminino de 2017, a equipe do Iranduba foi um fenômeno que arrebatou o país. Contrariando as expectativas, o time dos arredores de Manaus venceu adversários de maior expressão, como Corinthians e Santos, e foi semifinalista da competição daquele ano. Nos jogos em casa, o “Hulk do Amazonas”, como foi carinhosamente apelidado pela torcida, levou milhares de pessoas à Arena da Amazônia e mostrou que o esporte feminino pode ser financeiramente viável e cativar multidões.
Um drible no preconceito
Se ainda falta apoio e estrutura às mulheres no futebol, as Olimpíadas da Juventude da Floresta mostram que quando há o incentivo e investimento necessários, o talento dessas meninas pode ser visto e desenvolvido.
As Olimpíadas fazem parte do projeto “Desenvolvimento Integral de Crianças e Adolescentes Ribeirinhas da Amazônia” (Dicara), desenvolvido pela FAS com financiamento da Unilever e colaboração de prefeituras, secretarias e organizações comunitárias. O evento marca um dos pontos altos do projeto, que promove ações educativas, culturais e de lazer para jovens que vivem em interiores e áreas periféricas.
“O principal objetivo do projeto é trazer questões de cidadania para essa juventude. A Fundação traz esse olhar de esperança, olhar de respeito e de oportunizar a eles um momento de desenvolverem a sua potencialidade, porque existe talento. A partir do esporte nós mostramos a essas crianças e adolescentes que elas têm o direito de sonhar”,
explica Enoque Ventura, supervisor de projetos no Programa de Educação para Sustentabilidade (PES) da FAS.
Talento de sobra foi o que se viu na final do campeonato feminino de 14 a 17 anos das Olimpíadas. A partida entre os polos “Cabloco” e “Gaviões da Floresta”, empatada em 2×2 no tempo regulamentar, foi decidida nos pênaltis. Por 6 x 5 gols, a equipe “Cabloco” levou o título para casa.
Felicidade e motivação para Valdeane, atacante do time, que pensa e sonha com conquistas maiores. “Eu acompanhei a Copa Feminina de Futebol, me inspirei muito nas meninas. Elas representaram, só que não foi dessa vez. Meu foco é conquistar, quero bastante participar de uma Copa pelo Brasil”, afirma.
Sobre o projeto
Criado pela FAS em 2014, o projeto Desenvolvimento Integral de Crianças e Adolescentes Ribeirinhas na Amazônia (Dicara) realiza ações socioeducativas, acompanhamento familiar e capacitação de agentes de comunitário de saúde com foco no fortalecimento da rede de proteção de crianças e adolescentes. A metodologia do projeto segue os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU).
Em 9 anos de atuação, o Dicara já contemplou 09 municípios e 12 Unidades de Conservação na Amazônia. Somente em 2022, mais de 1.600 pessoas foram beneficiadas com as atividades.
As Olimpíadas da Juventude da Floresta em Porto Braga, através do Projeto Dicara, contaram com o financiamento da Unilever e apoio do Governo do Estado do Amazonas, Secretaria Estadual de Meio Ambiente, Prefeitura Municipal de Uarini, Secretarias Municipais de Educação, de Saúde e Cultura, Conselho Tutelar, Guarda Civil, CMDCA e Associação de Moradores e Usuários da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá Antônio Martins (AMURMAM).