​O “novo cangaço”, a supremacia de força e a aplicação do princípio da “presunção de inocência” aos policiais

“Não podemos olhar para o cangaço com uma visão romantizada, idolatrando seu maior representante, o Capitão Virgulino Ferreira, o ‘Lampião’, rei do cangaço”, destaca Sávio Lessa.

Iniciaremos este artigo explicando o que significa a expressão “novo cangaço”.  E para entendermos o significado de “novo cangaço” precisamos saber o que significa “cangaço”.

Para muitos, como o jornalista Válter Xéu, o “cangaço” era um “movimento social” diretamente relacionado à disputa da terra, coronelismo, vingança, revolta à situação de miséria no Nordeste e descaso do poder público. Segundo Xéu, muitos cangaceiros formavam bandos para vingar a morte de familiares assassinados por fazendeiros e coronéis, que por sua vez também tinham seus bandos, os quais cometiam atrocidades e tomavam terras i

No entanto, não podemos olhar para o cangaço com uma visão romantizada, idolatrando seu maior representante, o Capitão Virgulino Ferreira, o “Lampião”, rei do cangaço. Não podemos ignorar que os “cangaceiros”, como eram chamados os integrantes desses bandos, aterrorizavam as cidades, roubavam e extorquiam a população, praticavam sequestros, matavam todos os que resistissem a eles, além de saquear fazendas.

Foto: Benjamin Abrahão/Instituto Moreira Salles

Como o cangaço existiu no Nordeste, no final de século IXX e início do século XX, permanecendo ainda vivo na memória, história e cultura do povo nordestino, resolveu-se denominar de “novo cangaço” a onda de roubos e assaltos que ocorreram nas pequenas cidades do nordeste na década de 90. Bandidos fortemente armados invadiam as cidades do interior, atacando as instalações da polícia, assaltando os bancos e aterrorizando a população, fazendo-os reféns.

Esse tipo de ação criminosa cresceu nos últimos anos. Recentemente, em 30 de agosto do corrente ano, um bando fortemente armado atacou a cidade de Araçatuba, Estado de São Paulo. Cerca de 20 criminosos fortemente armados atacaram três agências bancárias no centro da cidade. Pelo menos três pessoas morreram, segundo a Polícia Civil, sendo dois moradores e um criminoso. Moradores foram feitos de reféns e usados como escudos humanos, a fim de evitar a ação da polícia. Usaram até dinamite para causar terror.

Em 31 de outubro último passado, em Varginha, sul de Minas Gerais, a Polícia Militar de Minas Gerais e a Polícia Rodoviária Federal (PRF) realizaram uma operação conjunta e desmantelaram uma quadrilha de assalto a bancos de alta periculosidade, conhecida como “novo cangaço”. Os criminosos resistiram à prisão e 25 (vinte e cinco) deles morreram em confronto com as polícias durante a operação, e vários ficaram feridos.

O confronto, segundo consta, ocorreu em duas chácaras da cidade. Na primeira, 18 criminosos, foram mortos quando atacaram os policiais. Na segunda chácara, foram sete mortos. O grupo estava armado com arsenal de guerra, explosivos e coletes a prova de balas.

Segundo a polícia, as 26 pessoas que perderam a vida entraram em confronto com os policiais. “Infelizmente perderam a vida, mas ainda prefiro que eles tenham perdido a vida do que um de nossos policiais. A ideia era fazer a prisão, mas a partir do momento que eles vão pra cima das equipes policiais, houve o confronto”, afirmou Aristides Junior, que afirma que os homens teriam equipamentos de guerra capazes de inclusive derrubar helicóptero. “A ideia desses criminosos era fazer uma grande ação que poderia trazer números desastrosos ii“.

A suprema arte da guerra é vencer o inimigo sem lutar

Sun Tzu

Diversas pessoas e parcela significativa da mídia criticaram a ação policial, insinuando que houve execução, estranhando que muitos bandidos morreram, mas nenhum policial morreu na operação. Talvez ficassem mais felizes se alguns policiais tivessem morrido no confronto. Deveriam ficar felizes que nenhum policial tenha morrido. Obviamente, nenhum policial desejava a morte dos bandidos. O objetivo, com certeza, era prender todos eles. Ocorre, no entanto, que quando os criminosos resistem à prisão, atirando contra os policiais, não resta outra opção a não ser revidar. Como os policiais estavam preparados para uma eventual reação dos criminosos, conseguiram sair vivos do confronto.

Sun Tzu, grande estrategista militar, e autor do livro “A arte da guerra”, ensina que “a suprema arte da guerra é vencer o inimigo sem lutar“. Infelizmente, nem sempre isso é possível, pois o “inimigo” muitas vezes está disposto a tudo para não ser preso: a matar ou morrer.

Algumas pessoas foram à imprensa criticar a ação policial, com base apenas no número de mortos, ignorando que as polícias conseguiram evitar mais uma ação criminosa onde muitas pessoas inocentes poderiam ter morrido. Chegaram a alegar que as polícias poderiam ter evitado as mortes dos criminosos usando “armas não letais” (fumígenos, armas de choque elétrico e balas de borrachas). Essas pessoas devem ter algum problema. Em que mundo vivem? 

Será que não conseguem entender que não se combate grupos armados com fuzis, granadas, explosivos etc. com balas de borracha e armas de choque elétrico. Comentários como esses beiram as raias do absurdo, são feitos por quem não entende nada de abordagem policial nem do que criminosos são capazes de fazer para não serem presos. As polícias agiram com paridade de armas, ou seja, usaram armas equivalentes às que os criminosos estavam portando. Foi exatamente o que disse a Capitão Layla Brunnela, porta-voz da Polícia Militar de Minas Gerais:

“A gente usa um armamento proporcional à agressão que a gente estava sofrendo, nós sabíamos por meio do serviço de inteligência da possibilidade de sermos alvejados ou sermos recebidos com disparos de fuzil, é uma arma muito utilizada por essas quadrilhas, então nossos policiais foram preparados para responderem à altura também com fuzis. Inclusive na declaração de ontem, os policiais envolvidos no fato atribuem a questão do óbito a essas armas que têm uma alta energia, um alto poder, por isso a possibilidade de sobrevida é menor”

Foto: Reprodução/Instagram-laylabrunnela

O Manual de Tática Policial, Abordagem a Pessoas e Tratamento às vítimas da PMMG, dispõe que ao iniciar uma abordagem, a guarnição militar deverá realizá-la com segurança. Se for realizada especificamente a uma pessoa em atitude suspeita, é necessário que haja supremacia de força para que a abordagem ocorra com máxima segurança iii

Supremacia de força é uma vantagem tática do policial militar em relação ao abordado para uma atuação segura. Esta vantagem é medida de forma qualitativa e quantitativa, podendo estar relacionada não só ao número de policiais militares, mas também ao uso de força e à posse de instrumentos, equipamentos e armamentos por parte da guarnição. Uma atuação policial com supremacia de força é aquela em que os policiais militares envolvidos dispõem de níveis de força adequados para reagirem às ameaças que poderão advir dos abordados.

Não se descarta a possibilidade de que tenha havido excessos ou erros por parte dos policiais. O número de vítimas em uma ação dessa natureza é incomum, no entanto, também são incomuns as ações violentas e o poderia bélico desses bandidos. De fato, essa operação precisa ser investigada. Até aí tudo bem, pois houve mortes. Porém, não se pode condenar a ação dos policiais, acusando-os de terem executado os criminosos, por mera presunção, sem que haja elementos probatórios disso. A presunção deve ser de “ação legal”. Presume-se que eles tenham agido dentro da lei, até que se prove o contrário.

Já me manifestei em outras ocasiões sobre esses ataques às policiais, acusando-os de excessos, abusos e arbitrariedades em ocorrências sem que haja quaisquer indícios ou provas. Sempre me causa perplexidade ver defensores ardorosos do princípio da presunção de inocência condenarem os policiais sem provas concretas e um julgamento justo. O mais sensato seria aguardar os laudos periciais e as investigações. Será que o princípio da presunção de inocência não se aplica a polícias militares?

A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU também consagrou o princípio da presunção de inocência ao estabelecer que “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa”.

O princípio da presunção de inocência também está previsto na Constituição Federal, em seu art. 5º, inc. LVII: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória“.

Esse princípio consagrado pela DUDH e pela Constituição Federal brasileira é um direito fundamental de todo e qualquer indivíduo, é um direito fundamental. Para quem não sabe, os policiais também são indivíduos detentores de direitos.

Até que se prove o contrário, a única presunção que deve ser considerada aqui é a de veracidade e legalidade da ação policial, ou seja, presume-se que os policiais agiram dentro da lei.

Importante deixar claro que é permitido ao policial utilizar de força necessária contra o abordado resistente, à terceiros resistentes e ou em caso de tentativa de fuga do preso, conforme preceituado no artigo 284 e 292, ambos do CPP: 

Art. 284. Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso.

(…)

Art. 292. Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.

O Código Penal autoriza o policial utilizar de meios necessários para repelir injusta agressão a si ou a terceiros, assim o policial será isento de pena se a sua atuação for justificada, tornando-a uma ação considerada legítima conforme os artigos 20 § 1º, art. 23, art. 25 e art. 329, § 1º e § 2º, ambos artigos do Código Penal:

Artigo 20, § 1º – É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.

Art. 23 – Não há crime quando o agente pratica o fato: I- em estado de necessidade; II- em legítima defesa; III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Art. 25 – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

Art. 329 – Opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio: Pena – detenção, de dois meses a dois anos. § 1º – Se o ato, em razão da resistência, não se executa: Pena – reclusão, de um a três anos. § 2º – As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.

As polícias merecem mais respeito por parte da sociedade e da mídia. Deixemos que as investigações sigam seu rumo, e caso a perícia aponte algum indício de excesso que seja instaurado o devido inquérito policial para apurar os fatos. Até lá, vamos dar um voto de confiança àqueles que arriscam diária e diuturnamente suas vidas em prol da sociedade.

Referências

i https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/08/31/o-que-e-novo-cangaco-onde-surgiu-e-criticas-ao-termo.htm

ii https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2021/10/31/interna_gerais,1318766/novo-cangaco-em-varginha-saiba-como-a-policia-descobriu-a-atuacao-do-grupo.shtml

iii MINAS GERAIS. Polícia Militar. Tática Policial, Abordagem a Pessoas e tratamento às Vítimas. Manual Técnico-Profissional 3.04.02 – Belo Horizonte: Academia de Polícia Militar, 2013.

Sobre o autor


Sávio A. B. Lessa é Doutor em Ciência Política; pós graduado em Ciências Penais, Segurança Pública, Direitos Humanos e Direito Militar; Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal e Processual Penal da FCR; Pesquisador do PROCAD/MIN. DEFESA; e Coronel da Reserva da PMRO.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista
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