Não precisamos desmilitarizar a Polícia Militar para que ela seja uma Polícia Cidadã

Se isso fosse verdade, as Polícias Civis do Brasil seriam um modelo de perfeição.

Há muitos anos ouço que a Polícia Militar precisa ser desmilitarizada, como se os graves problemas da Segurança Pública no Brasil se devessem à Polícia ser militarizada. Isso não faz sentido. Seria simplificar demais os problemas relacionados à segurança pública, achar que desmilitarizando tudo mudaria. Se isso fosse verdade, as Polícias Civis do Brasil seriam um modelo de perfeição.

É sabido que as Polícias Militares do Brasil tiveram origem no Exército, assim como boa parte das polícias no mundo (como a Gendar maria francesa, os Carabineiros Espanha e os Carabineiros na Itália). Desde os primórdios, quando surgiram as sociedades e os Estados, ficou evidente a importância das organizações militares para sua existência e preservação. Os militares tornaram-se o braço forte do Estado, responsáveis pela defesa de seus interesses, dentre os quais a ordem pública e a liberdade, seja garantindo-a ou limitando-a.

POR : ASCOM SSP

Maquiavel, em seu livro “Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio”[i], deixa clara sua preferência pela organização política da Roma antiga, onde havia uma aparente liberdade popular. Segundo ele a participação do povo na vida pública era muito importante, principalmente para a garantia de uma cidade militarmente forte e próspera. Ele afirmava que uma população numerosa, armada, treinada para participar de guerras e defender sua cidade de seus inimigos externos é uma população que tem força para causar tumultos e reivindicar benefícios diante dos poderosos, ou seja, para atuar em seus conflitos internos.

Em decorrência desses tumultos e conflitos os militares (membros dos Exércitos permanentes, não confundir com a população convocada eventualmente para empunhar armas para defender a cidade) sempre tiveram um papel importante na defesa e preservação da sociedade e do Estado. Esse papel de destaque remonta à Grécia antiga, na defesa das cidades-estados, ganhando maior importância no império romano.

Com a criação do que hoje nós conhecemos como Estado, os militares receberam atribuições que vão além da atuação nas guerras e na defesa dos inimigos externos: adquiriu o papel de polícia, responsável pela manutenção da ordem pública e garantidora da paz social, ou seja, um trabalho mais ligado a segurança interna. E assim surgiram as polícias. Todas tiveram origem nas organizações militares.

Com o tempo, no entanto, elas foram assumindo identidade própria. As polícias não mais tinham a finalidade de defenderem o Estado, mas sim o cidadão.

Durante muito tempo a noção de segurança pública estava vinculada à ideia de defesa do Estado e da ordem econômica e social. No caso do Brasil, principalmente durante o período da década de 60 (sessenta) até os anos 80 (oitenta), essa ideia era mais evidente, pois era a política implementada pelos governos militares, cujo foco principal era a defesa nacional.

[i] MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

Reprodução

Durante muito tempo a noção de segurança pública estava vinculada à ideia de defesa do Estado e da ordem econômica e social. No caso do Brasil, principalmente durante o período da década de 60 (sessenta) até os anos 80 (oitenta), essa ideia era mais evidente, pois era a política implementada pelos governos militares, cujo foco principal era a defesa nacional.

Ocorre, no entanto, que com o advento da atual Constituição Federal, promulgada em 1988, onde os direitos e garantias fundamentais ganharam destaque, a noção de segurança pública foi mudando, apesar do texto destinada à segurança pública remeter a uma ideia de repressão ao crime. Não obstante isso, ganha força a ideia de uma segurança pública voltada para garantir a dignidade da pessoa humana. Somado a isso, as pressões dos organismos internacionais, que exigiam uma visão de segurança pública mais condizentes com estado democrático de direito e que respeita a dignidade humana, trouxeram uma nova concepção de segurança pública, denominada “segurança cidadã”.

Segundo Pamplona, aos poucos, o direito internacional passou a construir um conceito de segurança que se afastasse do conceito de segurança do Estado, com seus corolários que se voltam à proteção do ente estatal interna ou externamente e se aproximasse das necessidades dos indivíduos para que pudessem se desenvolver plenamente, com a garantia de que o Estado lhes proveria do ambiente adequado a viver com dignidade.

Por isso, o conceito forjado, na Constituição, de segurança pública, sob a responsabilidade das polícias, deixa de ser suficiente. Passa a ser necessário o envolvimento do Estado como um todo, em seus órgãos que cuidam da educação, do planejamento, do trabalho, da saúde. É essa a nova interpretação que deve ser dada ao artigo 144 do texto constitucional.

De fato, este conceito de segurança cidadã tem crescido e mostra-se adequado para ser seguido por uma política de segurança pública. Ela está de acordo com as melhores teorias sobre política de segurança, pois envolve todos os seguimentos da sociedade e do Estado. Ocorre, no entanto, que ainda temos um longo caminha pela frente até que esse conceito seja efetivado. Não há necessidade de destruir a Polícia Militar e criar outra, desmilitarizada, para torná-la mais cidadã. O que precisa ser feito e corrigir os erros e implementar essa mentalidade nas corporações policiais militares.

Um erro grave que se faz ao atacar as Polícias Militares é associá-la diretamente ao Exército. Como se este tivesse o controle absoluto sobre as Polícias Militares. Antigamente tinha um enorme controle, mas foi diminuindo com o tempo. Hoje as Polícias Militares têm organização própria, legislação peculiar própria e mentalidade própria.

Como afirma Artur Trindade M. da Costa[i], as polícias têm se diferenciado cada vez mais das Forças Armadas, principalmente no “ethos do uso da força; nos mecanismos de supervisão e controle; nas formas de emprego e; nas relações de trabalho”.

No que diz respeito ao “ethos do uso da força”. Ethos é uma palavra com origem grega, que significa “caráter moral“. É comum utilizá-la para descrever o conjunto de hábitos, crenças e costumes que definem uma comunidade ou nação. No caso em questão, “ethos do uso da força”, diz respeito de como, em que circunstâncias, a força é empregada para cumprir sua missão institucional.

Segundo Artur Trindade M. da Costa, as polícias são “aquelas organizações destinadas ao controle social com autorização para utilizar a força, caso necessário”. É essa possibilidade de usar a força que distingue as polícias de outras instituições que exercem funções de controle social. Entretanto, as definições anteriores não explicam a diferença entre polícia e Forças Armadas. Tanto as polícias quanto os militares têm autorização legal para usar a força. Então, qual é a diferença entre o uso da força policial e militar? Uma primeira distinção diz respeitos às situações nas quais elas são empregadas. Idealmente, nos regimes democráticos, as Forças Armadas são acionadas excepcionalmente, dentro de limites estabelecidos, enquanto as polícias atuam no dia a dia. Com base nesta diferenciação, caberia um esforço para regulamentar essas situações excepcionais[ii].

O emprego das Forças Armadas em situações típicas de polícia tem ocorrido, frequentemente, em segurança de grandes eventos, como Jogos Panamericanos, Copa do Mundo e Olimpíadas. Ocasionalmente, tem sido empregada, também, em “substituição às polícias, especialmente nos casos de greves, como já aconteceu na Bahia (2012), Pernambuco (2016) e Espírito Santo (2017)”[iii].

O emprego das Forças Armadas em situações típicas de Polícia Militar extrapolou o campo da excepcionalidade e tornou-se algo frequente. 

As Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que seriam para momentos de exceção, se tornaram regra. Chegou-se, inclusive, a usar as Forças Armadas para intervir na segurança pública do Rio de Janeiro por quase um ano, através de operações de Garantia da Lei e da Ordem.

Reprodução: Agência Brasil

 O emprego das Forças Armadas em situações típicas de Polícia Militar extrapolou o campo da excepcionalidade e tornou-se algo frequente. As Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que seriam para momentos de exceção, se tornaram regra. Chegou-se, inclusive, a usar as Forças Armadas para intervir na segurança pública do Rio de Janeiro por quase um ano, através de operações de Garantia da Lei e da Ordem.

O emprego de militares em atividades cotidianas de segurança, segundo Artur Trindade M. da Costa, é apenas inadequado.É, segundo ele, sobretudo, imprudente, pois expõem os militares a situações para as quais eles não foram treinados nem equipados. Um exemplo disso é o que aconteceu no período de intervenção no Rio de Janeiro, onde aconteceu aquela desastrada e fatal abordagem em um veículo, que resultou na morte de duas pessoas, um músico e um catador de latas.

Segundo consta, no dia 07 de abril de 2019, militares do Exército, em serviço de segurança em Quadalupe, Rio de Janeiro, quando efetuaram 257 tiros de fuzil contra o veículo do músico Evaldo Rosa, de 51 anos, que seguia para um chá de bebê com a família. O veículo foi atingido por 62 disparos de fuzil e pistola naquela tarde de domingo, e transformou em réus 12 integrantes do Exército: um segundo tenente, um terceiro sargento, dois cabos e oito soldados responderam por homicídio qualificado, tentativa qualificada e omissão de socorro.

De acordo com o Ministério Público Militar – MPM, os militares buscavam autores de um roubo e dispararam contra o carro onde estava Evaldo, um Ford KA branco. O sogro do músico foi ferido na ação, enquanto sua mulher, seu filho e uma amiga que também estavam no veículo, não foram atingidos. O catador Luciano foi baleado ao tentar socorrer Evaldo e morreu 11 dias depois no hospital. Segundo o Ministério Público Militar,

“Os acusados definitivamente, por prova segura e inconteste dos autos, não estavam em situação de legítima defesa. Os militares apertaram os gatilhos de seus fuzis sem previamente certificarem-se de quem eram as pessoas à sua frente”

As provas constantes dos autos convenceram o Conselho, composto por um juiz togado e quatro juízes militares, de que os réus cometeram o crime de homicídio. De fato, merecem ser punidos, mas a culpa não é apenas deles. O Estado também tem culpa na morte daquelas pessoas, pois atribuiu a eles uma missão da qual não estavam preparados. Segurança Pública é coisa de Polícia Militar e não de Forças Armadas.

As Polícias Militares não atuam como as Forças Armadas, apenas carregam em seu DNA os valores a atributos de coragem, disciplina, lealdade, senso de dever e disposição para sacrificar a vida em prol da sociedade. Não vejo isso como demérito, mas sim como qualidade.

Obviamente, este artigo não esgota o assunto. Ele é polêmico e complexo demais para esgotar-se nestas poucas laudas. Oportunamente, abordaremos o tema com maior profundidade.

Referências 

[1] MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

[1] COSTA, Arthur Trindade M. A Polícia Militar e seus dilemas identitários. Contemporânea v. 11, n. 1 p. 287-312 Jan. Abr. 2021

[1] COSTA, Arthur Trindade M. A Polícia Militar e seus dilemas identitários. Contemporânea v. 11, n. 1 p. 287-312 Jan. Abr. 2021

[1] COSTA, Arthur Trindade M. A Polícia Militar e seus dilemas identitários. Contemporânea v. 11, n. 1 p. 287-312 Jan.Abr. 2021


Sávio A. B. Lessa é Doutor em Ciência Política; pós graduado em Ciências Penais, Segurança Pública, Direitos Humanos e Direito Militar; Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal e Processual Penal da FCR; Pesquisador do PROCAD/MIN. DEFESA; e Coronel da Reserva da PMRO.

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