Conheça histórias inspiradoras de quatro mulheres indígenas

Elas falam sobre suas trajetórias, lutas, conquistas e os desafios de serem mulheres indígenas numa sociedade que ainda as apresenta de forma caricata.

Mulheres indígenas muitas vezes são esquecidas nos debates sobre gênero, além de serem grandes vítimas de violação de direitos no país. Essas mulheres que lutam por visibilidade estão ganhando as universidades e se tornando cada cada vez mais atuantes na defesa do direito à terra, proteção do meio ambiente, educação, saúde e cidadania. Dentro das causam que apoiam, elas mantém a cultura, tradições e espiritualidade das suas etnias. 


Conheça histórias inspiradoras de cinco mulheres indígenas. Elas falam sobre suas trajetórias, lutas, conquistas e os desafios de serem mulheres indígenas numa sociedade que ainda as apresenta de forma caricata e ignora seus direitos:

Joênia Wapixana 

Joênia Wapichana é referência mundial em Direitos Humanos pela ONU – Foto: ONU

“Eu sempre tive comigo esse sentimento de que era preciso vencer a injustiça contra os povos índigenas e foi por isso que eu fui fazer Direito.”

Joênia Wapixana

Recém formada, a advogada Joênia Wapixana foi acioanda por uma vizinha desesperada que teve o filho levado para a prisão. Ao chegar na delegacia, a advogada recebeu olhares preconceituosos. “Você é esposa do preso?”, “Você é amiga do rapaz preso?”, perguntavam. “Não, eu sou a advogada dele”, respondeu – para espanto dos policiais. O espanto não era outro senão pelo fato dela ser uma mulher indígena. Joênia quebrou paradigmas ao se tornar a primeira mulher brasileira de origem indígena formada em Direito.


Aos 24 anos, Joênia começou a atuar em ações judiciais locais na reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima. O processo ficou conhecido internacionalemente e serrastou por décadas. Em 2005, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto que homologava de forma contínua a terra indígena Raposa Serra do Sol. O reconhecimento desta terra era uma reivindicação histórica dos índios da região – das etnias macuxi, wapixana, ingarikó, taurepang e patamona. Joênia esteve a frente de todo o processo: “Naquela época, no começo, as pessoas não davam crédito porque eu era jovem, mulher, advogada indígena e sofria preconceito até por ser Wapixana, já que minha etnia é pequena em Roraima. Também existe este preconceito ético entre os próprios indígenas”, relembra. “Eu sempre tive comigo o sentimento de que era preciso vencer a injustiça contra os povos indígenas e foi por isso que eu fui fazer Direito”, lembra.

Como ela mesmo gosta de dizer, “sempre deu a cara pra bater”. Joênia entendia que a visibilidade que o caso recebia na mídia era uma oportunidade para falar sobre as questões indígenas numa escala maior. “Eu falava com a mídia estrangeira, participava de congressos internacionais falando sobre a questão da terra, da biodiversidade. Até o fato de eu conseguir viajar era uma grande vitória porque existia muito machismo dentro das aldeias de que a mulher não podia viajar, sair da cidade, porque ela ia se perder. Como eu ia e representava bem, os homens começaram a deixar as mulheres saírem”. A escolha pelo direito veio da vontade de conhecer melhor os caminhos que podiam levar seu povo a uma vida com mais dignidade.

Não é à toa que em muitas aldeias de Roraima é fácil achar meninas que se chamam Joênia. “Eu fico muito feliz, mas é uma responsabilidade grande porque a gente é espelho. As lideranças sempre nos alertam disso, de que precisamos vigiar porque as pessoas estão olhando pra nós. A gente não podia desistir, tínhamos que dar o melhor de nós mesmos para não desestimular os outros”, diz. 

Zahy Guajajara 

Zahy Guajajara acredita que manter a língua nativa é uma forma de afirmar identidade – Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

“Os indígenas já são artistas genuínos: são grandes artesãos, cantores e dançarinos natos. O que falta é oportunidade de mostrar o quão bom eles são.”

Zahy Guajajara  

Desde que a menina Tainá, interpretada pela atriz Eunice Baia, encantou milhares de expectadores nas salas de cinema do Brasil, a população indígena não tem uma estrela pra chamar de sua. Isso pode mudar depois dos trabalhos feitos pela atriz Zahy Guajajara, da etnia de mesmo nome situada no Maranhão.

Fluente na língua guajajara e no português, Zahy trabalhava como agente de saúde no município maranhense de Barra do Corda ajudando mulheres grávidas que não falavam português nos exames e na hora do parto. Aos 19 anos, decidida a se mudar pro Rio de Janeiro, enfrentou oposição da família e da aldeia. “Quando eu saí, fui muito criticada. Meus parentes achavam que eu não queria mais ser índia, que eu tinha vergonha do meu povo. Hoje eu sou um orgulho pra muita gente, muitos índios se espelham em mim”, comemora a atriz.

Fazendo trabalhos como modelo, Zahy não pensava em ser atriz até receber um primeiro convite. Tomou gosto pelo ofício e começou a estudar. “A curva do rio sujo”, do diretor Felipe Bragança foi o seu primeiro trabalho como atriz. Ela também é a protagonista do média metragem “A sociedade da natureza” e já gravou a minissérie “Dois Irmãos” na Rede Globo sob a direção de Luiz Fernando Carvalho.

Zahy conta que fez das artes seu ativismo. “É claro que também existe muito preconceito em relação à presença de indígenas na TV, no cinema, no teatro. Os indígenas já são artistas genuínos: são grandes artesãos, cantores e dançarinos natos. O que falta é oportunidade de mostrar o quão bom eles são. Estão surgindo índios cineastas, fotógrafos, cantores, que buscam formas de mostrar nossa cultura no meio artístico”.

Naíne Terena

Naíne Terena – Foto: Agência Ophelia

“Existe um interesse enorme dos povos indígenas de se apropriar do registro da narrativa, seja por livro, por filme, no rádio. Além de resguardar o conhecimento, isso nos dá voz. Assim, ninguém distorce nossa fala.” 

Naíne Terena

Graduada em Rádio e TV pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), mestre em Artes pela Universidade de Brasília (UnB), doutora em Educação pela PUC-SP e pós-doutoranda na UFMT no laboratório de Estudos sobre a informação e comunicação na educação. Esse é o currículo de Naíne Terena, que tem usado o meio acadêmico para discutir o papel dos indígenas como protagonistas na educação e na comunicação.

A etnomidia é tema constante dos estudos de Naíne Terena, que defende uma apropriação cada vez maior por parte dos povos indígenas de todos os instrumentos de comunicação para a construção e confecção de narrativas próprias. “Vem surgindo muitas iniciativas nesse sentido, de modelos de comunicação, de empreendedorismo, de produção audiovisual e radiofônica feita pelos indígenas, como a Rádio Yandé”, explica Naíne que também é pesquisadora do Laboratório de Tecnologia, Ciência e Criação da UFMT. “Existe um interesse enorme dos povos indígenas de se apropriar do registro da narrativa, seja por livro, por filme, no rádio. Além de resguardar o conhecimento, isso nos dá voz.  

Em 2014, ela deu início ao “Projeto Territórios Criativos Indígenas: arte e sustentabilidade”, que desenvolveu atividades de pesquisa e capacitação em quatro comunidades indígenas de Mato Grosso, com o intuito de projetar estratégias de sustentabilidade e geração de renda geridas pelas próprias comunidades. 

Pesquisadores doutores vinculados à UFMT e estudantes indígenas da mesma instituição dão orientação técnica às comunidades indígenas para o desenvolvimento de atividades econômicas com o foco na comercialização de produtos, direitos culturais e patrimônio indígena e captação de recursos que visem o benefício comunitário e familiar. 

Para além dos trabalhos com foco em etnomídia e empreendedorismo dentro das aldeias, Naíne luta pelo cumprimento que se tornou uma da Lei nº 11.645, de 2008, que prevê a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas brasileiras. Segundo ela, são poucas as instituições de ensino que tem cumprido a lei. “Nós temos um problema porque até mesmo os professores não passaram por uma formação específica pra dar esse tipo de conteúdo, os materiais didáticos são fracos. O professor não sabe como colocar essa temática dentro da sala de aula. Estamos lutando para que isso não se torne uma disciplina optativa”. 

Anna Terra Yawalapiti 

Anna Terra Yawalapiti – Foto: Mario de Brunoro/ISA

“Por que não ter um espaço só das mulheres para a gente compartilhar umas com as outras o que a gente sabe?” 

Anna Terra Yawalapiti

Em algumas aldeias do Alto Xingu, no Mato Grosso, os homens sempre tiveram um espaço próprio para se reunir e tomar decisões. A “Casa dos Homens” geralmente fica no centro das aldeias e a entrada de mulheres é terminantemente proibida. Existem objetos sagrados dentro destes espaços que, pela tradição indígena, não podem sequer receber os olhares de uma mulher.

Ana Terra Yawalapiti cresceu sabendo que não era bem vinda no espaço. Nem a curiosidade de criança a fez se arriscar a espiar o que se passava dento da “Casa dos Homens”. Já adulta, junto com a irmã Watatakalu, começou a ansiar por um lugar em que as mulheres da aldeia Tuatuari também pudessem se reunir. “Quando você olhava ao redor na aldeia, percebia que as mulheres não sabiam mais fazer o artesanato, as redes, as cerâmicas tradicionais do nosso povo. Começou a existir um desinteresse.”, diz Ana. Um pensamento começou a se tornar constante: “Por que não ter um espaço só das mulheres para a gente compartilhar umas com as outras o que a gente sabe?”.

A vontade surgiu em 2013 e não foi bem recebida pelos homens da aldeia que viam a ideia como despropositada, uma espécie de rebelião. Só o pai de Ana, o cacique Pirakumã Yawalipiti apoiou a empreitada. “A primeira vez que nós conversamos, não teve nenhum apoio. Foi uma batalha enorme e a com o tempo a gente foi conversando e se entendendo”, explica Ana, que é hoje uma liderança do Xingu e uma veemente defensora do patrimônio imaterial dos povos indígenas, especialmente o direito à imagem contra a apropriação cultural dos elementos sagrados de seu povo.

Três anos depois da primeira conversa com a lideranças da Aldeia, em 2013, as irmãs Yawalapiti trabalham sem descanso na construção da “Casa da Mulher”, que deve ser inaugurada em junho deste ano. Feita de madeira, num modelo de casa tradicional, o espaço servirá para troca de saberes entre as mulheres que passam a adquirir mais visibilidade e assumir a liderança nas comunidades e fora das aldeias. Antes mesmo do início da construção, Ana se empenhou em reunir as mulheres da aldeia que num resgate da tradição voltaram a ter contato com cêramica, tecelagem e cestaria. Avós passaram a ensinar o bordado das redes para as netas, e mãos destreinadas voltaram a moldar o barro. Assim a tradição tem sido resgatada. “Nós começamos a fazer um mutirão, passamos a ensinar as crianças. A “Casa da Mulher” vai ser um lugar de aprendizado, para que a gente volte a confeccionar o algodão, o barbante e servirá também como um lugar de acervo daquilo que a gente produz”. 

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