Terra preta: pesquisadores estudam práticas agrícolas planejadas por indígenas da Amazônia

Adubo pré-histórico enriquece o solo enquanto ajuda a manter o carbono longe da atmosfera.

Um novo estudo traz evidências de que a terra preta amazônica, com alto teor de carbono e nutrientes, teria sido criada intencionalmente há milhares de anos. De acordo com os cientistas, os nativos manipulavam o lixo e o fogo de maneira controlada para elevar a produtividade de alimentos, o que teria aumentado a fertilidade do solo da floresta ao longo dos anos.

A pesquisa revela que esse solo é uma herança do manejo da terra feito pelos povos indígenas que viveram na floresta nos últimos 5 mil anos. A terra preta é um solo mais fértil que outros bastante arenosos presentes na região tropical. Por esse motivo, é mais requisitado para o plantio.

O estudo foi liderado pelo pesquisador Morgan Jason Schmidt, da Universidade Federal de Santa Catarina e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), dos Estados Unidos, em parceria com o Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP e outras instituições.

Schmidt inicialmente teve apoio da Fundação Nacional da Ciência dos Estados Unidos (NSF) e, posteriormente, da Fundação Wenner-Gren, voltada a pesquisas antropológicas. O artigo com a descoberta foi publicado na revista Science Advances. O pesquisador também contou com o apoio do grupo de estudos Ecologia Histórica dos Neotrópicos, coordenado pelo professor Eduardo Neves, do MAE.

“A terra preta existe em quase toda a Amazônia, dentro e fora do Brasil, mas há lugares onde ela não aparece: na bacia do Rio Juruá, por exemplo. Os nossos estudos mostram que ela foi mais disseminada a partir de mais ou menos 2.500 anos atrás”, esclarece Neves, ao ressaltar a contribuição à biodiversidade amazônica trazida pelo manejo indígena. O Rio Juruá nasce no Peru, passa pelos estados do Acre e do Amazonas e desagua no Rio Solimões, tendo uma bacia afunilada.

Moradores do Parque Indígena do Xingu ajudaram a entender a origem do solo fértil da região. Foto: Associação Indigena Kuikuro do Alto Xingu

Anteriormente, alguns cientistas sugeriam que a terra preta teria sido formada a partir de depósitos de cinzas vulcânicas e matéria orgânica de antigos lagos, enquanto outros argumentavam que ela poderia ter sido criada por antigas populações humanas.

“Não vou dizer que era uma grande polêmica, mas era uma coisa desconhecida e havia um pouco de debate sobre isso”, avalia Schmidt ao Jornal da USP. No entanto, a intencionalidade ou não dessa produção era uma discussão maior.

“Havia a hipótese de que o descarte de lixo que criou a terra preta não foi uma coisa intencional, e outra hipótese de que os habitantes estavam cultivando a terra e de alguma maneira criando a terra preta, talvez intencionalmente ou talvez não. Uma não eliminava a outra”, complementa o pesquisador.

Os cinco sítios arqueológicos pesquisados ficam no norte do Mato Grosso, próximos à nascente do Rio Xingu, com datas de ocupação variando de 11 mil a 500 anos atrás. O solo dessa localidades é mais enriquecido em áreas historicamente residenciais e menos modificado em antigas estradas e praças. Assim como os assentamentos pré-históricos, as aldeias modernas no Alto Xingu têm mais que o dobro do carbono orgânico que o solo das periferias. Os pesquisadores também mediram os elementos associados ao enriquecimento do solo por ação humana, como o fósforo, o potássio, o cálcio, o magnésio, que são ao menos 10 vezes maiores nas áreas de terra preta.

Por estar em uma região tropical e de configuração muito antiga, o solo da Amazônia é ácido e tem poucos nutrientes, além de ter a toxicidade do alumínio. Algumas plantas, como a mandioca, são adaptadas a esse tipo de ambiente, porém a maioria dos alimentos não.

Tradição que persiste

Os etnoarqueólogos, como Schmidt, buscam criar uma parceria com as populações locais atuais para responder a problemas da história antiga. Para a sua investigação, o pesquisador coletou dados através de entrevistas com anciões de aldeias amazônicas que reproduzem práticas de descarte e de queima controlada muito parecidas com as das antigas populações da região.

Os pesquisadores investigaram o conhecimento dos indígenas atuais quanto ao descarte de lixo, ao manejo do solo e às crenças que envolvem a produção de terra preta, como explica Schmidt. “Essas entrevistas mostraram que eles são conscientes que estão criando terra preta e que realmente tentam fazer isso de propósito.” As semelhanças entre terras pretas antigas e modernas vão dos locais em que são preparadas em relação às habitações até a composição química.
Pesquisadores retiram amostras de terra preta do Parque Indígena do Xingu para análise. Os cinco sítios arqueológicos pesquisados ficam no norte do Mato Grosso, com datas de ocupação variando de 11 mil a 500 anos atrás. Foto: Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu

Essas tradições persistem entre os indígenas do Alto Xingu e provavelmente se estendem a outras etnias da Amazônia com estilo de vida similar. Uma das técnicas envolve a incorporação de carvão vegetal, que vem ganhando destaque em pesquisas recentes como maneira de reduzir a acidez do solo. Além disso, a inclusão do carvão é um dos meios mais fáceis e eficazes de estocar no solo o carbono, que quando liberado para a atmosfera transforma-se num dos gases responsáveis pelo aquecimento global.

Normalmente, o material orgânico morto é decomposto por microrganismos presentes no solo e cerca de dois terços são transformados em gases de efeito estufa. Quando são controladamente queimados ou cobertos por cinza e carvão, o carbono permanece na terra por centenas de anos.
Segundo Haitsehü, um dos indígenas entrevistados pelos pesquisadores, a terra preta é conhecida como eegepe. Os guaicurus varrem o carvão e as cinzas para onde pretendem realizar o plantio, o ilũbepe, local que se tornará em seguida um ilube egepütipügü. O ilũbepe fica a cerca de um metro do chão e funciona como uma espécie de composteira até chegar à configuração final em alguns anos.

Biochar

O carvão obtido da decomposição térmica de resíduos agrícolas e florestais, quando aplicado ao solo, é capaz de aumentar a retenção de água, favorecer o crescimento das plantas e reduzir as emissões de gases de efeito estufa a partir da degradação do solo.

Esse material, comercialmente conhecido como biochar ou biocarvão, traz benefícios semelhantes aos da terra preta dos indígenas. Há pesquisas sobre a correção do solo a partir desse produto há quase 20 anos. Embora considerada uma novidade, a técnica já é empregada na agricultura da China, dos Estados Unidos e da Europa.

O biochar, obtido da decomposição térmica de resíduos agrícolas e florestais, é capaz de aumentar a retenção de água no solo, favorecer o crescimento das plantas e reduzir as emissões de gases de efeito estufa a partir da degradação do solo. O carvão funciona como uma esponja que retém os nutrientes da matéria orgânica descartada no solo e impede que eles sejam escoados pela água das chuvas. Foto: Carlos Eduardo Pellegrino Cerri/Esalq

O professor Carlos Eduardo Pellegrino Cerri, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, que contribui no estudo, enfatiza os benefícios já encontrados pelas pesquisas acadêmicas sobre o biochar usado na agricultura. “Podemos ter um material que não é igual à terra preta, mas que simula os benefícios que a terra indígena tem do ponto de vista de absorção de água, de melhorar a fertilidade”.

O material controladamente carbonizado estoca, por centenas de anos, o carbono que seria transformado em gás de efeito estufa. Além disso, por ter carga negativa, ele é capaz de atrair nutrientes de carga positiva necessários para o desenvolvimento das plantas.

Tecnologia ancestral 

O modo de lidar com a terra pelos povos amazônicos antigos pode ser simulado na agricultura comercial, para amenizar os efeitos da degradação do ambiente. Isso porque solos ricos em nutrientes como esse minimizam as doenças que normalmente acometem as plantações industriais, em solos mais pobres. Embora as formas comerciais de gestão, com biochar, não disponham do tempo necessário para a criação da terra preta, há benefícios parecidos.

Schmidt conta que outras comunidades da região também reproduzem essa estratégia:

“A terra preta permite uma agricultura sustentável e orgânica. Como os indígenas criam um solo muito fértil, conseguem plantar sem usar agrotóxicos e adubos químicos. Algumas dessas práticas são usadas em toda a Amazônia não só pelos indígenas, mas também pelos ribeirinhos e não indígenas”.

A equipe quantificou o carbono armazenado na terra preta acima do nível do natural. Com isso, conseguiram demonstrar que a criação intencional desse solo não apenas melhorou a fertilidade, mas também atuou armazenando carbono por séculos.

O professor Cerri explica que esses produtos carbonizados possuem carga elétrica negativa, o que ajuda a armazenar no solo os nutrientes carregados positivamente (cátions), necessários para as plantas. “Os nutrientes precisam estar na forma iônica para a planta poder absorvê-los. A planta não absorve diretamente o nitrogênio, o fósforo e o potássio, mas sim suas formas iônicas com carga positiva.” Como o solo tropical naturalmente tem pouca carga negativa, a terra preta, assim como o biochar, torna esse solo mais fértil.

Os solos na periferia de cada assentamento tinham de 6 a 10 quilos por metro quadrado (kg/m²) de carbono orgânico, enquanto os depósitos de terra preta apresentavam de 9 a 22 kg/m2. “Tem terra preta a mais de dois metros de profundidade”, afirma Schmidt.

A gestão de recursos do passado sustentou enormes populações apesar dos baixos níveis de nutrientes do solo amazônico. Isso revela a importância do conhecimento tradicional indígena para o manejo dos recursos naturais, principalmente na floresta tropical e nos rios da Amazônia.

“Havia uma população pré-colonial muito grande na Amazônia, muito densa ao longo dos rios. Por isso, hoje em dia encontramos esses assentamentos com grandes extensões de terra preta, que chegam até a 80 ou 100 hectares em alguns casos”.

Escavação de solo da região próxima à nascente do Rio Xingu. Os nativos manipulavam o lixo e o fogo de maneira controlada para elevar a produtividade de alimentos, o que teria aumentado a fertilidade do solo da floresta ao longo dos anos. Foto: Associação Indigena Kuikuro do Alto Xingu

As cinzas depositadas nesses reservatórios indígenas diminuem a acidez do solo e eliminam o alumínio. O carvão funciona como uma esponja que retém os nutrientes da matéria orgânica descartada no solo e impede que eles sejam escoados pela água das chuvas.

Entretanto, a estabilidade do carbono armazenado pode ser ameaçada por alterações no uso da terra e pelo aquecimento climático. Isso pode ser observado já que os locais ainda florestados são mais ricos em carbono do que os que foram desmatados recentemente.

Marco temporal

Os indícios científicos apontam que as paisagens no Brasil só existem como são hoje por ação dos indígenas, incluindo plantas que só puderam ser introduzidas na região graças à terra preta, como conta Neves.

Há lugares no Brasil ocupados há milhares de anos, mas têm um padrão sazonal. A ideia do marco temporal pressupõe essa ausência de populações que não tem nenhuma sustentação pela arqueologia. Além de ser uma violência contra os povos indígenas, é uma violência contra o conhecimento científico”.

Segundo essa e outras evidências da arqueologia, a tese de que os povos indígenas têm direito apenas às terras que ocupavam a partir da aprovação da última Constituição brasileira, de 1988, é anticientífica.

De acordo com Neves, os povos indígenas têm um papel muito importante como guardiões das florestas que se mantêm em pé, da biodiversidade e do conhecimento sobre a natureza. “Em algumas áreas houve a dizimação, mas em outras há populações que têm história que segue viva. Parte dessa história diz respeito a essas práticas antigas”, conta o professor.

*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Jornal da USP, escrito por Ivan Conterno

Publicidade
Publicidade

Relacionadas:

Mais acessadas:

Pará perde Mestre Laurentino; artista completaria 99 anos em janeiro de 2025

Natural da cidade de Ponta de Pedras, na Ilha do Marajó, ele era conhecido como o roqueiro mais antigo do Brasil.

Leia também

Publicidade