Cerca de 300 pessoas – entre indígenas, ribeirinhos, representantes do governo, setor privado e sociedade civil – lotaram o auditório do centro de Convenções de Altamira (PA), na terça (21/3). O tema da Audiência Pública, convocada pelo Ministério Público Federal (MPF), foi a discussão da garantia das condições de vida na Volta Grande do Xingu, região mais impactada pela instalação da hidrelétrica de Belo Monte e ameaçada com a eventual instalação da mineradora canadense Belo Sun. Uma cadeira da mesa, no entanto, permaneceu vazia. A Norte Energia, concessionária da usina, não compareceu para prestar esclarecimentos à população.
Volta Grande em convulsão
Entre as denúncias feitas no evento, está a ausência de água potável nas comunidades ribeirinhas e as sérias dificuldades na navegabilidade no rio e no reservatório da barragem. Durante 2016, comunidades inteiras ficaram isoladas o ano todo sem comunicação fluvial ou terrestre (leia aqui). Em fevereiro, um pescador morreu afogado no reservatório por causa da correnteza no lago da usina, fenômeno conhecido como “banzeiro”, ao tentar chegar em Altamira.
Outra reclamação comum tem a ver com o alagamento de roças, portos, galinheiros e até campos de futebol, que a própria Norte Energia instalou em áreas que supostamente não deveriam ser alagadas. A empresa divulgou que, neste mês, a vazão da água não superaria o máximo de 4 mil m3/segundo e colocou uma estaca apontando até onde o rio subiria nos principais portos da região. A informação estava errada – a vazão superou 23 mil m3/segundo – o que causou uma série de danos. As roças e até o túmulo de um parente dos índios Juruna da aldeia Mïratu foram alagados, por exemplo.
“O prejuízo tem sido deixado nas costas da população mais vulnerável. São fundamentais a responsabilização de quem causou esses danos e a indenização das pessoas que perderam as roças e não têm o que colher”, alerta a advogada do ISA Biviany Rojas.
Para a Procuradora da República Thais Santi, é evidente que os mecanismos e espaços de comunicação previstos no licenciamento da hidrelétrica não estão funcionando. O Ibama reconheceu a necessidade urgente de aprimoramento desses espaços e comprometeu-se com sua avaliação.
Monitoramento independente
Os Juruna da aldeia Mïratu fizeram uma apresentação do monitoramento independente de segurança alimentar e atividade pesqueira na Terra Indígena Paquiçamba. O trabalho foi feito pela Associação Indígena Yudjá Miratu da Volta Grande do Xingu (Aymix), em parceria com a Universidade Federal do Pará (UFPA) e ISA.
O estudo vem sendo realizado entre indígenas e pesquisadores da UFPA por meio da coleta de dados mensais sobre as dinâmicas da pesca e o consumo alimentar das famílias da aldeia. Esses dados são importantes para desenhar a linha base que permite comparar a situação antes do barramento com as transformações que estão acontecendo. “O objetivo do monitoramento é mostrar com dados reais que nós estamos sendo impactados. Queremos denunciar isso não só nas nossas falas, mas nos dados colhidos todos os dias por nós mesmos”, conta Bel Juruna.
O monitoramento independente é realizado de forma ininterrupta, desde setembro de 2013. O levantamento identificou mudanças no aumento de consumo de alimentos provenientes da cidade, a perda de importantes áreas de pesca, diminuição do consumo de peixe e da pesca ornamental. Isso representa uma progressiva perda de soberania alimentar da comunidade Juruna.
Os indígenas solicitaram que esse monitoramento independente seja levado em consideração pelo Ibama, órgão licenciador da hidrelétrica, para contrapor os relatórios da Norte Energia. O monitoramento da empresa foi interrompido durante 8 meses antes do barramento do rio, comprometendo a consistência da linha base utilizada por ela para identificar impactos.
“Antes a gente tinha água saudável pra tomar”
Os ribeirinhos que vivem nas comunidades Ressaca e Ilha da Fazenda denunciaram o abandono dos postos de saúde, das escolas e dos sistemas de abastecimento e sanitário. A construção e manutenção dessas instalações seriam de responsabilidade da Norte Energia e da prefeitura de Senador José Porfírio.
Dona Dêca Sampaio, técnica de enfermagem que mora há 34 anos na Ilha da Fazenda, fez uma apresentação emocionada com imagens do posto de saúde em deterioração e da bomba de água abandonada. “Estamos jogados pras pragas”, repetiu mais de uma vez na audiência. Ainda que tenham sido instalados os poços para coleta de água, a falta de manutenção impossibilita seu uso. “Antes a gente tinha água saudável pra tomar. Fomos criados bebendo água do rio. Agora, a água está podre, não podemos tomar banho. As pessoas estão com micose e as crianças com as barrigas inchadas de verme”, conta.
As comunidades ribeirinhas mais isoladas, como a do Itatá, nem sequer tiveram os poços perfurados. Um dos encaminhamentos do evento foi que seja feita uma vistoria para atestar as condições e a instalação dos equipamentos necessários para garantir o acesso à água de qualidade.
“Não é possível que uma comunidade impactada como a Ilha da Fazenda não tenha uma escola e um posto de saúde, um transporte escolar digno. O que falta para o Ibama multar a Norte Energia pelo abandono total da Volta Grande do Xingu?”, questionou Francisco de Assis Nascimento, advogado do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).
Funai reitera ineficácia das medidas
Em carta conjunta, os índios Arara e Juruna reivindicaram o cumprimento imediato de antigas pendências relacionadas à proteção e vigilância de suas terras, navegação, alternativas produtivas e efetivação de espaços de acompanhamento e controle social do empreendimento. Cobraram ainda que governo do Estado realize um processo de consulta livre, prévia e informada sobre a mineradora Belo Sun.
A Coordenadora de Licenciamento Ambiental da Funai, Janete Carvalho, reiterou as conclusões de parecer técnico do órgão no sentido de reconhecer a gravidade dos impactos sofridos pelos indígenas e a ineficácia das medidas de mitigação até aqui implementadas.
”A Volta Grande do Xingu é tema ultra-sensível para a Funai. A licença de Belo Monte estabeleceu que o modo de vida dos Juruna e dos Arara fosse assegurado. Os impactos previstos no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) não só se confirmaram, como também foram potencializados pela ineficácia das medidas de mitigação. Precisa ser revista a matriz de impactos e o Plano Básico Ambiental – Componente Indígena (PBA-CI)”, comentou.
Um ponto de coincidência entre os indígenas e a Funai foi a insuficiência dos espaços de participação desenhados no PBA. Para os indígenas, esses espaços são uma “verdadeira perda de tempo” onde nada é resolvido, sem interlocutores adequados para encaminhar soluções ou responder perguntas técnicas. Segundo a própria Funai, “o Comitê da Vazão Reduzida, condicionante estabelecida pela Funai, não está funcionando”.