Gestor do parque há um ano e meio, o ecólogo Gustavo Ganzaroli é o responsável pela linha de frente na tentativa de dar visibilidade à unidade e captar recursos para sua implementação. Há anos a unidade de conservação (UC) tenta resolver o impasse da sobreposição com a Terra Indígena Yanomami e com a Floresta Nacional do Amazonas.
“Mesmo que o tamanho do parque diminua, nós não perderemos área de proteção, porque essa área é protegida pela Terra Indígena. E resolvendo a redelimitação, poderíamos avançar na conclusão do Plano de Gestão, começar a regulamentar o turismo e desenvolver a infraestrutura básica”, segundo o gestor.
O entrave para conseguir alterar o perímetro da unidade é outro, a falta de recursos. O parque não recebe recursos da ARPA, como a maioria das unidades de conservação amazônicas, tampouco possui uma verba própria que permita financiar a consulta pública necessária para redefinir os limites do parque.
Em entrevista ao WikiParques, Gustavo Ganzarolli explica diversos pontos sobre o parque, como sua história e a possibilidade de redelimitação.
O Parque Estadual Serra do Aracá existe há mais de 20 anos, mas é desconhecido da maioria dos brasileiros. Conte um pouco da história do parque.
Gustavo Ganzarolli: O Parque Estadual Serra do Aracá foi criado em 1990, através de um decreto que criou várias unidades de conservação no estado do Amazonas (Decreto Estadual n° 12.836/1990). Já haviam sido realizadas expedições de reconhecimento e pesquisa na década de 80 que identificaram várias espécies endêmicas e raras na Serra do Aracá, mas não houve estudos prévios para criação do parque em si. Dois anos depois foi criada a Terra Indígena Yanomami, sobreposta ao parque. De fato, existe uma ocupação indígena ali há décadas e a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) já estava estudando a criação dessa área quando o parque foi instituído. Depois da homologação da terra indígena, uma outra unidade de conservação foi criada sobreposta ao parque: a Floresta Nacional do Amazonas (AM).
Por anos a UC foi um daqueles parques de papel, porque tinha sido criado, mas ninguém do Estado tinha feito nada. Só em 2006, o Amazonas começou a fazer as primeiras expedições de reconhecimento desse parque. E em 2009, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA), através do extinto CEUC (Centro Estadual de Unidades de Conservação), fez uma parceria com a Fundação Vitória Amazônica (FVA), uma ONG local, para captação de recursos com o objetivo de implementar o parque.
Nessa época, o corpo da SEMA era bem grande, eram tempos de vacas gordas, por assim dizer, diferente da crise que estamos vivendo agora. E nós demos início aos estudos necessários para elaboração do Plano de Gestão, que é como nós chamamos o Plano de Manejo. Em 2010, foi concluída a primeira versão desse plano, e levada para discussão em uma consulta pública, que é quando a população é convidada a participar do processo. Nessa consulta, os membros das organizações indígenas falaram do problema da sobreposição.
No Plano de Gestão nós elaboramos regras, fazemos o zoneamento, entre outras coisas, isso incomodou os Yanomamis pela perspectiva de ter um parque ditando as regras do território deles. A própria Constituição reconhece o direito de uso inalienável dos índios sobre a sua terra (Artigo 231 da Constituição). Nós reconhecemos o direito dos indígenas, e iniciamos o trabalho para retirar essa sobreposição e alterar o perímetro da unidade. Com esse objetivo, em 2012, foi criado um Grupo de Trabalho (GT), dentro da Secretaria, composto por várias ONGs, governo e pelos próprios indígenas através das suas instituições, para entrar em acordo sobre a redelimitação.
Quais foram as propostas para redelimitação?
Gustavo Ganzarolli: A região da Serra do Aracá em si, onde está a maior cachoeira em queda livre do Brasil e os tepuis (montanhas cuja formação se assemelha a uma meseta), não está no Território Indígena. Portanto, mesmo desafetando a área com sobreposição, preservaríamos a Serra dentro da unidade.
A primeira proposta era simplesmente reduzir o parque para área em que não há sobreposição, o que corresponde a uma redução de cerca de 80% do território total. Para não haver uma redução tão grande, foi feita uma segunda proposta de ampliá-lo na sua zona de amortecimento, onde passaria a ter uma extensão de 908 mil hectares. Isso faria com que o parque abarcasse outras áreas importantes para conservação, inclusive uma região muito rara geologicamente, que é uma formação de areais, dunas e campinas no meio da Amazônia, ao sudeste da Serra do Aracá.
Portanto, os técnicos propuseram que, uma vez que o parque seria redelimitado, ele deveria incluir essa área. A terceira proposta segue a mesma lógica de reduzir e ampliar. Porém criando uma unidade de conservação de uso sustentável em uma região onde existem comunidades ribeirinhas tradicionais que sobrevivem do extrativismo da piaçava. Ou seja, reduzir o parque, mas adicionar uma unidade de uso sustentável em área contígua. Essa ideia de ampliar o parque ou de criar outra unidade de conservação não avançaram muito porque existe o interesse da FUNAI para criação de uma outra Terra Indígena nessa área, apesar deles ainda não terem concluído os estudos na região.
Por que a redelimitação ainda não aconteceu?
Gustavo Ganzarolli: Depois que o Grupo de Trabalho apresentou seu relatório, o próximo passo seria marcar uma nova consulta pública para discutir a redelimitação. Entretanto, o desafio é que, para essa consulta ser feita, são necessários recursos para garantir a participação da comunidade e viabilizar a ida das pessoas ao município de Barcelos (AM). A logística na Amazônia é muito complicada, nós dependemos de muito recursos apenas para fazer uma reunião dessas acontecer. É gasto de combustível, barco para buscar as pessoas nas comunidade. Essa consulta pública não aconteceu ainda por falta de recursos.
Como é a relação com a Floresta Nacional do Amazonas, que também está sobreposta ao parque?
Gustavo Ganzarolli: A questão da Floresta Nacional é um pouco mais sensível. Entre o parque e a Terra Indígena há uma maior compatibilização de interesses e, se esse diálogo do governo com os indígenas melhorar, é possível trabalhar em conjunto. O contexto da Flona é mais complicado, porque é uma categoria de unidade voltada para uma perspectiva econômica, para exploração da própria floresta. Inclusive houve um grande receio de que a unidade estivesse sendo criada para concessão de minérios. Hoje a Flona não cumpre seu papel como unidade de conservação, não tendo sido ainda efetivamente implementada pelo ICMBio.
Qual sua opinião sobre a redelimitação?
Gustavo Ganzarolli: As pessoas precisam entender que mesmo que o tamanho do parque diminua, nós não estamos perdendo área de proteção. Porque essa “área perdida” já é Terra Indígena. Não estamos falando, portanto, em reduzir a proteção da área. E se a redução do parque fosse efetivada poderíamos avançar na conclusão do Plano de Gestão, começar a regulamentar o turismo e desenvolver a infraestrutura básica da unidade. Já seria um progresso.
Como é a gestão da unidade diante da falta de recursos?
Gustavo Ganzarolli: Eu estou na gestão há um ano e meio. Antes de mim, a UC ficou três anos sem gestor. Houve uma única outra gestora, em 2013, eu acho, que ficou apenas um ano, e nas mesmas condições de falta de recursos para trabalhar. Eu não sou cargo comissionado da SEMA, tampouco concursado. Eu entrei por um processo seletivo de um projeto com recursos de compensação ambiental.
O estado conseguiu me colocar como gestor, disponibilizou o escritório, mas o governo do estado dispõe de poucos recursos próprios para lidar com as unidades de conservação. A maioria das UCs sobrevive através do ARPA [Programa de Áreas Protegidas da Amazônia]. Mas o ARPA não apoia unidades de conservação com conflito territorial e sobreposição, como o nosso parque e o próprio Parque Nacional Pico da Neblina (AM), que também não recebe recursos do programa. Só que para fazermos a redelimitação precisamos de recursos, ou seja, estamos em uma sinuca de bico.
E a equipe do parque é só você, então?
Gustavo Ganzarolli: Exato, mas eu conto com o apoio de diversos assessores da SEMA do escritório em Manaus e da rede de gestores das outras unidades estaduais. Como eu fui contratado por um projeto específico, meu vínculo é temporário, com prazo determinado. Eu sei que vou sair em junho, quando termina o contrato.
Como é a visitação na unidade?
Gustavo Ganzarolli: Aqui na SEMA nós possuímos um trâmite para visitação das unidades de conservação. É necessário seguir esse procedimento para ser autorizado e ganhar uma espécie de “licença de entrada”, na qual explicamos como é feito o acesso na UC. Isso vale para todas as unidades de conservação estaduais do Amazonas. Não são todas as pessoas que fazem isso, para ser sincero. Algumas pessoas entram nas unidades sem autorização, às vezes até pela falta de uma infraestrutura no local que sinalize aos visitantes a necessidade dessa autorização prévia da SEMA. No caso do Parque Estadual Serra do Aracá, para chegar nele é preciso fazer uma expedição.
Nós temos até um pouco de receio de divulgar o parque, porque apesar dele ter muitos atrativos, ele não oferece nenhuma infraestrutura de apoio à visitação. Existe turismo, mas é um público bem restrito. As trilhas são de alto grau de dificuldade, não é qualquer pessoa que sobe lá, tem até um trecho de escalada para chegar no alto da serra. Em agosto do ano passado, eu realizei uma atividade de monitoramento na região, acompanhando um operador de turismo que organizou um grupo para visitar o parque. Essa foi a única vez que visitei a unidade, e uma oportunidade de saber como ela é e como acontece a visitação nela.
E existe pesquisa no parque?
Gustavo Ganzarolli: Sim. O Instituto Nacional de Pesquisa do Amazonas (INPA) já foi lá algumas vezes, o Jardim Botânico do Rio de Janeiro também já visitou a unidade, fizeram até um filme, mas são principalmente instituições de pesquisa da Amazônia. Lá existem muitas espécies raras e endêmicas. Em toda expedição científica são descobertas novas espécies e feitos novos registros pro Brasil, de espécies que às vezes só eram conhecidas na Venezuela, que faz fronteira com o parque e abrange essa região de montanhas da Amazônia. Todas essas pesquisas também passam por um trâmite específico do SEMA para serem autorizadas. É necessário assinar um termo de compromisso, onde deixamos claro o risco da expedição, uma vez que não é um local de fácil acesso e não possuímos nenhuma infraestrutura lá.
Como é feita a fiscalização da área? E quais os principais problemas na unidade?
Gustavo Ganzarolli: Como o parque está em uma região de fronteira, o próprio Exército monitora a área. Lá não há tanto desmatamento porque é uma região muito distante, a última comunidade está a quase 200 quilômetros de distância em linha reta, por meio de rios. O desmatamento acontece em baixa escala, mais próximo das comunidades. O que foi constatado é o garimpo. Isso já foi denunciado pelos próprios Yanomamis, porque é um problema da região como um todo.
Diante do tamanho do desafio de gerir um parque nesse contexto, qual sua principal meta de gestão?
Gustavo Ganzarolli: O meu objetivo é mostrar a importância do parque. Ele é desconhecido, pouquíssimas pessoas sequer ouviram falar dele. Minha meta é divulgar esse patrimônio e sensibilizar as pessoas e, consequentemente, os políticos. A conservação precisa ser uma pauta prioritária nas agendas. O objetivo de um parque, de uma forma geral conforme descrito pelo SNUC [Sistema Nacional de Unidades de Conservação] é a visitação turística e a pesquisa. Para ele funcionar como parque é necessário, portanto, um recurso expressivo que permita implementá-lo, criar trilhas, capacitar condutores, ter a presença de guarda-parques, uma sede no local. O parque abriga a maior cachoeira do Brasil em queda livre, a caverna mais profunda de quartzito, a paisagem do lugar é linda, temos um potencial turístico enorme.
Apesar de ser um pouco chata essa questão de ordenamento territorial, ela pode ser uma oportunidade para gestão desses conflitos. Se todos os interessados sentarem na mesa: o órgão estadual, o órgão nacional, as comunidades tradicionais e os indígenas; para definir e ordenar o território, essa redelimitação pode ser uma referência para outras áreas protegidas no Brasil.
Por um lado o parque funciona como uma barreira de proteção para os indígenas, por outro, eles podem auxiliar o turismo no parque, como está sendo desenvolvido no Parque Nacional Pico da Neblina. Também queremos integrar as unidades da região do Alto Rio Negro. Inclusive existe a oportunidade da Serra do Aracá fazer parte do roteiro “Montanhas Sagradas”, uma iniciativa do ICMBio no Pico da Neblina. Além disso, estamos tentando sensibilizar o ARPA e o Ministério do Meio Ambiente para captação de recursos que permitam a implementação da unidade. A nossa meta é unir forças em nome da conservação.