O uso dos saberes tradicionais e dos insumos da floresta na indústria de fármacos e cosméticos tem ganhado enorme ‘cartaz’ com o recente apelo comercial da sustentabilidade. Tudo o que é ‘verde’ e vem de povos ancestrais, ganha a simpatia dos consumidores preocupados com a vida no planeta. Mas o quanto do que é arrecadado no comércio retorna a essas comunidades e o quanto fica no Brasil, quando produtos e nomes são apropriados por grandes marcas?
Essa apropriação muitas vezes institucionalizada comercialmente, em alguns momentos chamada de biopirataria, já é antiga, mas só recentemente passou a fazer parte do vocabulário e das lutas dos povos tradicionais. O próprio termo só foi lançado em 1993 pela Fundação Internacional para o Progresso Rural, em português (Rafi).
Na Amazônia, que é vendida nas agências de turismo como a área de maior biodiversidade do planeta, o combate a essa modalidade de pirataria já vem sendo articulado por povos indígenas, preocupados com casos semelhantes ao ocorrido com o açaí e o cupuaçu, e até mesmo com o roubo de material genético humano.
Povos em alerta
Os baniwa (população indígena distribuída entre Brasil, Colômbia e Venezuela) do Amazonas em 2014 iniciaram as ações do Conselho Baniwa e Coripaco de Gestão de Patrimônio Cultural. A princípio criado para a defesa dos saberes tradicionais de agricultura, seus processos e produtos, o conselho não se esquivou da luta contra a biopirataria e das tentativas de apropriação de sua cultura, explica o presidente da Associação Indígena da Bacia do Içana, André Baniwa. “Sabemos de casos de biopirataria acontecidos com outros ‘parentes’ e é um dever nosso evitar que mais aconteçam. Buscamos mobilizar todos os baniwa para combater essa prática”, afirma.
Segundo o indígena, os baniwa foram procurados por uma grande marca para a produção de cosméticos com produtos da floresta, mas não houve prosseguimento. “A legislação nem sempre deixa claro o que pode ser usado com fins acadêmicos ou comerciais. Mas estamos cientes de que se houver algo do tipo, temos direitos a uma participação nos lucros. Para isso, nós mesmos queremos ‘assinar’ esses produtos já que é assim que a ‘civilização ocidental’ reconhece os direitos”, fecha.
De grande ajuda aos baniwa e demais povos próximos aos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) vem atuando junto a Fundação Nacional do Índio (Funai) na capacitação das lideranças indígenas para o combate a biopirataria e a conscientização na hora de comercializar e exigir preços justos e participação nos lucros dos produtos gerados com insumos da floresta, disse o presidente da Federação, Renato Matos. “Temos que participar das negociações e da criação de políticas públicas para que as etnias tenham acesso ao mercado, projetos, seminários de conscientização e convencimento”, conclui Renato Matos.
Luta wapichana
Os posicionamentos ativos das lideranças wapichana, povo residente nas savanas roraimenses e da Guiana Inglesa, são um caso paradigmático de povos ancestrais que viram potencialidades econômicas nesses conhecimentos tradicionais amazônicos, especialmente indígenas. Esse interesse despertou na década de 1990, após os indígenas tomarem contato com os trabalhos de bioprospecção do alemão Conrad Gorinsky que havia patenteado o cunaniol e o rupuni nos Estados Unidos, Europa e Grã-Bretanha.
Essas patentes foram usadas para a produção de dois fármacos para controlar e amenizar a febre, combater hemorragias, estancar sangramentos, anticoncepcional e abortivo e potencial inibidor de viroses e tumores, podendo ser utilizado no tratamento de AIDS e doenças de células, como os cânceres. Os indígenas pedem a revogação das patentes por conta de que Gorinsky divulgava os poderes medicinais das plantas como descobertas suas. Até hoje, nem o Brasil nem os wapichana, receberam qualquer benefício com as patentes.