Oito autoras amazônidas para conhecer em 2024

Uma das coisas que não só o mundo, mas os amazônidas precisam internalizar também, é que essa região é rica não apenas pela diversidade de sua fauna e flora, mas das identidades que atravessam esse espaço.

Fotos: Divulgação

Uma das justificativas atribuídas à palavra “Amazônia” é a de que sua origem remonta à existência das guerreiras amazonas, na antiga Grécia, de modo que não é surpresa que as mulheres nascidas nessa região herdam, mais de seu sangue originário do que qualquer nome trazido pelos europeus, valores heroicos bastante impressionantes.

Algumas escolhem (ou são escolhidas para) travar uma batalha diferente, uma cuja única arma é a pena e um espírito inquieto, ansioso para registrar uma marca que, sendo deixada no mundo, tem também o poder de mudá-lo.

Uma das coisas que não só o mundo, mas os amazônidas precisam internalizar também, é que essa região é rica não apenas pela diversidade de sua fauna e flora, mas das identidades que atravessam esse espaço. A maioria delas é justamente caracterizada pela força com que o imaginário popular as povoa, um sincretismo de crenças católicas e afro-indígenas que se manifesta no mundo real, na forma de visagens, assombrações e misuras que só o amazônida conhece. É isso que Beatriz Ferreira da Costa, natural de Abaetetuba (Pará), retrata no livro de contos ‘Vovó tem medo do escuro’ (Uiclap, 2024), uma introdução ao estranho e familiar espaço das visagens amazônicas.

Imagem retirada do site oficial da autora

Embora já explorasse o universo infantojuvenil em ‘O calor do teu abraço e a frieza do teu olhar’, conheci o trabalho de Costa apenas no volume 3 da Revista Égua Literária (disponível gratuitamente, inclusive), por meio do conto ‘O jabuti e a Nossa Senhora’, uma breve pérola com ares de mitologia que serve como exemplo ideal do sincretismo aqui mencionado.

E se estamos falando de autoras popularizadas pela saudosa Égua (que merece uma Marca Texto só para si), conheci, em sua quinta edição dedicada a vampiros nortistas, a narrativa de horror de Jéssica Mota, macapaense que, prestando homenagem a Drácula, de Bram Stoker, cria uma história com um senso de isolamento que só uma comunidade do interior é capaz de passar.

A famosa narrativa vitoriana de Stoker, que se vale de um conjunto de matérias de jornal fictícias, cartas e páginas de diário para criar uma atmosfera de inquietação acerca dos ataques da criatura então desconhecida, se aproxima do conto ‘Toque de Estrela’, de Mota, no qual as dificuldades das comunidades mais afastadas da capital se mostram dão abertura aos eventos sobrenaturais que cercam o espaço criado pela autora, que certamente terá minha atenção em seus próximos lançamentos.

Como mencionei antes, o Norte é atravessado por muitas identidades, ao passo de incluir até mesmo o Leste do mundo em suas raízes. É o que nos traz Giu Murakami, escritora belenense que mantém vivas suas heranças nortista e japonesa em sua literatura. Não coincidentemente, ela fez parte da equipe editorial da Égua Literária, e, por extensão, ofereceu uma contribuição inestimável tanto para a região amazônica quanto para escritores independentes que buscavam publicar seus primeiros textos.

Retirado do site oficial da autora

Quantos aos textos da própria Murakami, versatilidade é a palavra de ordem. Vencedora dos prêmios Fox-Empíreo de Literatura e Uirapuru, sua obra se caracteriza pelos mesmos encontros que conformam a identidade da escritora. Com ‘Guardiões do Império’, celebra sua herança japonesa e seu amor por fantasia, enquanto ‘As Formidáveis Gomes & Doyle’ (Noveltter, 2022) e ‘A Aprendiz de Erveira’ (Folheando, 2023) exaltam a estética futurista que passa a ser um dos diferenciais da escrita de Murakami. Inclusive, fico ansioso pela chegada do meu exemplar de ‘Aprendiz’, que promete ser uma adição de peso ao movimento amazofuturista que cresce de maneira substancial nos últimos anos.

Não estranha ao movimento amazofuturista é também Leila Plácido, com quem tive o prazer de trabalhar junto (e com os demais membros do Coletivo Visagem) na produção da antologia ‘Encantarias – histórias de uma Amazônia futurista’, vencedora do Prêmio Manaus de Conexões Culturais em 2021. Com o conto ‘Cápsula do tempo’, Plácido enriquece seu trabalho com as visões de futuro no espaço amazônico ao lado de seu romance de estreia ‘Quase o fim’ (Lendari, 2016), que apresenta uma Manaus desolada pelo ataque de uma sociedade secreta.

Acervo pessoal da autora

Embora se destaque com seus títulos para o público jovem-adulto, Plácido tem se voltado também para o público infantil. Suas últimas publicações contam inclusive com ilustrações próprias, oferecendo mundos de cor e conversa à imaginação de pequenos leitores. ‘Apenas uma canoa nas noites de verão’ (2022) é uma fábula amazônica que exalta o poder das histórias, e o fato de nossas raízes acompanharem às das árvores que nos oferecem sustento. A autora inclusive teve sua próxima obra infantojuvenil contemplada pela Lei Paulo Gustavo, com lançamento programado ainda para 2024.

Se o assunto é literatura infantojuvenil, destaca-se também Lucila Bonina, que além do talento narrativo em sua escrita, construiu para si uma reputação de eficaz contadora de histórias também na oralidade. Em sua obra, ‘Os sapos contaram’ (Caravana), Bonina resgata a figura da avó narradora, em sua própria versão da Mamãe Ganso, para recriar histórias do universo mítico amazônico, traduzidas diretamente do canto dos sapos.

Divulgação/Secretaria de Cultura do Estado

Professora de Língua Portuguesa, Bonina contribui com a formação de colegas docentes e é participante frequente de ações do programa Mania de Ler, da Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas, por vezes ao lado de Plácido. Além disso, é integrante do projeto Enluaradas (@enluaradas__), movimento de poetas mulheres que celebra, por meio da publicação de coletâneas, a produção poética de mulheres do Brasil inteiro.

A poética, inclusive, é a forma escolhida por Deborah Bacelar para conquistar a vida. Seu livro de estreia, ‘desejo absoluto’ (Urutau, 2022), já desponta como uma celebração de uma estética que acena para as referências do passado, ao passo que adota tendências bastante contemporâneas para manifestar uma poesia considerada perigosa pela própria autora.

Também acadêmica da área das Letras, a autora utiliza seus versos para expressar uma versão de feminilidade que, ao mesmo tempo particular, também conversa com o universal. Ou como Alice Silva define sobre o livro de estreia, “aqui, a serpente divide o fruto proibido com Lilith”, e arrisco a adicionar um cheiro de bile e formol que Augusto dos Anjos com certeza acharia interessante.

Ainda no mundo da poesia, 2024 recebeu o trabalho da acreana Gabe Alódio, escritora trans que divide com o público um conjunto de poemas doloridos sobre sua transição e disforia, mas também sobre a complexidade que é se apaixonar, com todas as suas graças e desgraças às quais qualquer ser humano está sujeito.

Divulgação/G1

Alternando textos em português e inglês, a autora busca destacar sua identidade enquanto sujeito, ainda que parte de uma comunidade por vezes invisibilizada. Os poemas são comprometidos com a habilidade humana de amar, e com a inabilidade de navegar pelas implicações poderosas de tal sentimento, registradas no que é talvez meu conjunto favorito de versos do ano: “Eu sou um poema de guerra/que escrevi para você” (aqui traduzidos, pois na obra apresentam-se em inglês).

Já no interior de Nova Olinda do Norte, às margens do rio Abacaxis, o povo indígena Maraguá é agraciado pela literatura de Lia Minápoty, que veem suas narrativas tradicionais imortalizadas por meio da ficção da autora. Uma das principais referências na produção literária Maraguá, Lia celebra sua cultura por meio de uma vastíssima contística, além de ser membro de destaque da AmiMA – Associação das Mulheres Indígenas Maraguá.

Divulgação/Livraria Maracá

Ao longo de livros como ‘A árvore de carne e outros contos’ (Tordesilhinhas, 2012), ‘Lua-menina e Menino-onça’ (RHJ) e ‘Com a noite veio o sono’ (Leya, 2011), Minápoty integra o projeto de visibilidade dos povos indígenas ao compartilhar com o mundo as cosmogonias, as crenças e os contos populares das comunidades de Maraguapajy, contribuindo para a produção prolífica dos Maraguá e consagrando-se como um dos expoentes da literatura nacional.

Evidente que um número bem maior de guerreiras de pena e papel poderiam estar aqui – penso na vencedora do Prêmio Literário Cidade de Manaus, Myriam Scotti, na transescritora Márcia Antonelli (que já teve um espaço todo especial nesta coluna), nos romances cosmológicos de Regina Melo ou em Alessandra Leite, famosa por suas fábulas –, mas como nenhum texto é longo o suficiente para dar conta de tanta riqueza, deixo aqui não apenas um convite para conhecer as indicadas, mas um desafio para descobrir o trabalho de outras tantas, e que não deixemos em Março o respeito e o reconhecimento da contribuição dada pelas mulheres à nossa literatura.

Sobre o autor

Jan Santos é autor de contos e novelas, especialmente do gênero Fantasia. Mestre em Literatura pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e com graduações em Língua Portuguesa e Inglesa, é um dos membros fundadores do Coletivo Visagem de Escritores e Ilustradores de Fantasia e Ficção Científica, além de vencedor de duas edições dos prêmios Manaus de Conexões Culturais (2017-2019) e Edital Thiago de Mello (2022).

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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