Tudo isso não é tão distante do Brasil como parece.
Quando alguém pensa em tortura, geralmente pensa em sangue, em dor e em sofrimento. Dificilmente alguém relacionaria qualquer música a instrumentos de tortura1.
Na verdade, essa relação é bastante antiga. Nos campos de concentrações, por exemplo, os judeus eram obrigados a cantar durante o trabalho e a música era utilizada como trilha sonora de punições. No campo de concentração de Mauthausen, o prisioneiro Joseph Drexel foi forçado a cantar o hinos religiosos (“Oh, cabeça [de Jesus], cheia de sangue e feridas”) enquanto era açoitado até perder a consciência2.
A Comissão Europeia de Direitos Humanos já havia descrito essa técnica em 1976 como um “sistema moderno de tortura”. É o que se chama de “tortura sem toque”. É a política “sem sangue, sem culpa” (no blood, no foul)1.
Eu acrescento: essa prática é, sim, tortura na forma psicológica, segundo o art. 1º. da Convenção da ONU contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Também é crime de tortura inafiançável do art. 1º. da Lei n. 9.455/1997 e é considerada crime de guerra pelo art. 8º. do Estatuto de Roma.
Mesmo sendo a tortura um crime internacionalmente reconhecido, uma emissora de TV noticiou que o Exército dos Estados Unidos havia usado a música “Enter Sandman” do Metallica no interrogatório de iraquianos detidos durante a chamada “Guerra ao Terror”. A mesma música foi tocada repetidamente em alto volume por até 72 horas para presos acorrentados. Tudo isso pode parecer roteiro de filme, mas a prática foi confirmada por um e-mail de um agente do FBI, mencionado pela organização Physicians for Human Rights2, e em relatos de soldados americanos à organização Human Rights Watch.
Tudo isso não é tão distante do Brasil como parece.
No Relatório da Comissão Nacional da Verdade, há relatos de presos da ditadura militar brasileira que foram detidos em celas com poderosos alto-falantes funcionando ininterruptamente e tocando música alta para impedir o seu sono. Uma presa contou ao Ministério Público Federal que ouviu um colega ser torturado pelos militares, mas seus gritos de dor eram abafados pelo som de música alta tocando “Jesus Cristo” de Roberto Carlos e “Apesar de você” de Chico Buarque.
Você deve estar se perguntando: “o que isso tem a ver comigo? Não estamos em guerra nem vivemos uma ditadura”. Eu respondo: o problema é que a música passa, às vezes, desapercebida no dia-a-dia como instrumento de humilhação.
Em estudo publicado pela primeira vez em 20111, Susan Forster catalogou 223 ações na Justiça do Trabalho entre os anos 2000 e 2010. Todas essas ações pediam danos morais em virtude de assédio no ambiente de trabalho. O que tinham em comum? Várias músicas foram utilizadas como instrumento de humilhação dos empregados durante o horário de trabalho. “Na boquinha da garrafa”, “Vai Lacraia”, “Eguinha Pocotó” e “Atoladinha”, entre outras, foram encontradas na pesquisa como pano de fundo para essas humilhações.
Toda essa “brincadeira” tem um preço muito caro. Em 2006, uma poderosa empresa de cervejas foi condenada a pagar 1 milhão de reais por danos morais coletivos, pois o empregado daquela empresa que não batesse suas metas de cota de vendas era obrigado a dançar “Na boquinha da garrafa” na frente dos colegas de trabalho.
Os tempos mudam, os personagens mudam, mas ainda repetimos velhas práticas. Em 2016, um grupo de estudantes ocupava uma escola no Distrito Federal em protesto contra o congelamento de gastos públicos. Um juiz autorizou a Polícia Militar a usar “instrumentos sonoros contínuos, direcionados ao local da ocupação, para impedir o período de sono” dos estudantes.
Será que, em pleno regime democrático, esse juiz autorizou uma prática de tortura?
1. Suzanne G. Cusick, Music as torture, Trans. Revista Transcultural de Música, n. 10, 2006. 2. Guido Fackler, Music in concentration camps: 1933-1945, Music &Politics, v. I, n. 1, 2007. 3. Suzanne G. Cusick, ob. cit. 4. Physicians for Human Rights, Break them down: systematic use of psychological torture by US forces. 5. Susan Forster, Música e humilhação: uma visão através das ações de indenização por dano moral, 2.ed., São Paulo, Blucher, 2017.
Vitor Fonsêca é Doutor (PUC/SP). Professor Universitário e Promotor de Justiça (AM) – diarioprocessual.com