Todos querem ouvir e comentar os depoimentos das testemunhas e, especialmente, as perguntas dos parlamentares. É preciso refletir, porém, sobre o papel da CPI na condução desses depoimentos.
Não se fala em outra coisa. Depois do BBB21, a Comissão Parlamentar de Inquérito chamada de CPI da COVID virou paixão nacional e ocupou o noticiário e até as redes sociais. Todos querem ouvir e comentar os depoimentos das testemunhas e, especialmente, as perguntas dos parlamentares. É preciso refletir, porém, sobre o papel da CPI na condução desses depoimentos.
Nossa Constituição de 1988, no art. 58, § 3º., diz que as comissões parlamentares de inquérito terão “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”. Seu objetivo é a apuração de fato determinado e por prazo certo. Suas conclusões, consolidadas no Relatório da CPI, devem ser encaminhadas, se for o caso, “ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores”.
Entre os poderes da CPI, está justamente a de “solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão” (art. 58, § 2º., V, da Constituição de 1988).
Ocorre que o que estamos vendo nos depoimentos televisionados está longe do que se espera de um depoimento feito perante uma autoridade pública com poder próprio de autoridade judicial.
Para exemplificar o que digo, vou aqui elencar algumas das regras particulares do Código de Processo Civil, especialmente nos arts. 442 a 463, que indicam aos juízes e às juízas sobre “como se ouvir uma testemunha”:
- as perguntas devem se relacionar a fatos, pois testemunha responde sobre fatos que ela viu ou sabe;
- o inquiridor deve fazer perguntas diretas;
- as perguntas não devem ser valorativas, ou seja, não se deve perguntar “opiniões” ou “achismos”;
- deve-se evitar perguntas sobre fatos já provados por documentos;
- não é possível fazer perguntas sobre fatos que devem ser provados por perícia (prova técnica ou científica realizada por especialistas na matéria);
- a testemunha deve ser tratada com urbanidade e respeito, não sendo possível fazer perguntas ou considerações impertinentes, capciosas ou vexatórias;
- se o inquiridor das perguntas se mostrar agressivo, pode-se mostrar parcial na condução da prova testemunhal.
O rol dos deveres acima demonstrado indica que, talvez, a CPI esteja bem longe desse modelo judicial. Quantas perguntas se tornam discursos? Quantas perguntas começam com “o senhor não acha”? Quanto perguntas se relacionam a fatos cujo teor a testemunha não sabe ou não pode afirmar? Quantas perguntas poderiam ser melhor resolvidas por documentos requisitados ou por prova técnico-científica?
Tenho conversado com alguns colegas constitucionalistas, entre eles Carolina Castello Branco e Wallace Corbo, sobre esse comportamento dos membros da CPI.
Um argumento forte de Wallace é que as conclusões da CPI seriam de natureza “jurídico-política” e que as animosidades seriam da natureza das atividades do Poder Legislativo. Para corroborar essa opinião, em recente artigo sobre o tema, Roberta Simões lembra que “as inquirições nas CPIs não podem ser tomadas como uma atividade probatória estritamente imparcial, racional, pautada na sinceridade e voltada para a apuração objetiva da verdade (…) Por vezes, as inquirições e o uso da palavra servem mais como espaço para monólogos parlamentares ou perguntas meramente retóricas (que ficarão sem resposta), e não dirigidas ao inquirido”.
No entanto, por outro lado, Carolina Castello Branco entende, por exemplo, que, sendo um poder conferido pela Constituição de 1988, os poderes da CPI também devem ser limitados. Entre tais limites, inclui-se o dever de respeitar o devido processo legal. Ela está bem acompanhada. No Caso Hutcheson vs. Estados Unidos, a Suprema Corte dos EUA considerou que a cláusula de devido processo deve ser fundamento para a testemunha de comissões parlamentares de inquérito recusar-se a responder às perguntas dos membros da CPI. Para a Suprema Corte americana, esses limites estão pautados na cláusula do due process of law.
Entre tantas dúvidas sobre os poderes constitucionais da Comissão Parlamentar de Inquérito – se há ou não limites para essa atuação “política” dos parlamentares ao investigar – , tenho uma certeza: a CPI é um exemplo para meus alunos de Direito de “como não se ouvir uma testemunha”. Ninguém que pretende atuar no processo judicial pode aprender a inquirir uma testemunha do modo como a CPI da COVID vem fazendo.
Vitor Fonsêca é Doutor (PUC/SP), Professor Universitário e Promotor de Justiça (AM) – diarioprocessual.com