Aqui no Brasil, um motorista da Uber propôs uma ação na Justiça do Trabalho requerendo reconhecimento do vínculo de emprego.
A inteligência artificial saiu dos filmes de ficção científica e passou a preencher nossas vidas. Com o machine learning, os computadores encontram padrões que nós nem sabíamos que existiam e passaram a solucionar problemas com os chamados algoritmos.
Você deve ter inúmeros exemplos de algoritmos em sua casa ou na palma da sua mão: Alexa, Netflix, Siri, navegadores de trânsito, chatbots, reconhecimento facial e, entre eles, o famoso aplicativo Uber.
Você deve saber, mas não custa lembrar, que a Uber é uma empresa que conecta via aplicativo motoristas a passageiros. O aplicativo funciona com algoritmos gerando lucros com percentual sobre o valor da corrida.
Na Holanda, um processo judicial foi movido no Tribunal de Amsterdam contra a Uber. Os motoristas queriam provar sua relação de emprego com a Uber e, para isso, solicitaram acesso aos seus dados do algoritmo. O fundamento do pedido foi o direito à proteção de dados dos motoristas. O objetivo era provar que o grau de vinculação dos motoristas aos algoritmos tinha efeitos legais e funcionaria como uma relação empregatícia. O tribunal holandês permitiu, então, o acesso ao algoritmo da Uber.
Em outro processo movido contra a Uber também na Holanda, os motoristas pediam acesso ao algoritmo da empresa, para provar que sua exclusão da licença da Uber seria feita de modo automático pelo próprio algoritmo, e não por um ser humano. Nesse caso, o tribunal não permitiu ao acesso, porque a Uber provou que havia uma equipe de seres humanos responsável pela decisão final.
O fundamento legal das duas ações foi a General Data Protection Regulation (GDPR) em vigor na Europa. O art. 22 do GDPR estabelece que “[o] titular dos dados tem o direito de não ficar sujeito a nenhuma decisão tomada exclusivamente com base no tratamento automatizado”.
Aqui no Brasil, um motorista da Uber propôs uma ação na Justiça do Trabalho requerendo justamente o mesmo reconhecimento do vínculo de emprego. Do mesmo modo que o caso holandês, o motorista brasileiro pediu a realização de perícia no algoritmo da Uber. A empresa, porém, alegou que havia segredo industrial em torno do código-fonte de seu algoritmo e que a perícia seria inútil.
O caso brasileiro foi parar no Tribunal Regional do Trabalho. Os desembargadores entenderam que a perícia sobre o algoritmo deveria ser produzida nos autos, uma vez que outras provas como testemunhas e documentos não auxiliariam o motorista a comprovar a relação de emprego.
Também lembraram que a recente Lei brasileira Geral de Proteção de Dados, em seu art. 42, § 2º., permite ao juiz “inverter” o ônus da prova a favor do titular dos dados sempre que resultar excessivamente difícil a prova.
No que se refere ao segredo industrial em torno do algoritmo, o tribunal decidiu que, apesar de protegido legalmente, o “segredo do negócio” pode ser quebrado na via judicial, desde que o processo seja mantido sob segredo de justiça. Ou seja: a confidencialidade do know-how do algoritmo é protegida pela proibição de publicidade do processo e pela vedação de acesso aos autos a terceiros. É o que prevê inclusive a Lei n. 9.279/1996 em seu art. 206.
Há muito tempo os especialistas chamam à atenção para o “direito à explicação” em torno dos algoritmos. Alguns falam, inclusive, que os algoritmos seriam uma “caixa-preta” (black box) e que poderiam gerar injusta discriminação, como foi indicado no documentário Coded Bias.
As decisões acima – na Holanda e no Brasil – parecem indicar que o mínimo de regulação recentemente criada (GDPR na Europa e LGPD no Brasil) já vem ajudando a abrir essa “caixa-preta”; apontam ainda que o Poder Judiciário ainda vai ter muito trabalho ao lidar com a inteligência artificial e com seus novos desafios.
Em nós professores de Direito, as decisões têm outro impacto. Houve um tempo em que os livros jurídicos – como o do clássico Gabriel Rezende Filho – ensinavam que a perícia servia para demonstrar que a mulher era virgem ou para provar que o homem tinha ou não potência para o coito. Envelheceu mal essas lições dos antigos; o admirável mundo novo as deletou.
Vitor Fonsêca é Doutor (PUC/SP), Professor Universitário e Promotor de Justiça (AM) – diarioprocessual.com