Seresteiro Artêmis desfalca festival cultural mais tradicional de Rondônia

Durante mais de meio século, o professor defendeu a preservação da cultura de Nazaré, vila ribeirinha no vale do Rio Madeira.

Em junho haverá o Festival Cultural de Nazaré. Trata-se do evento mais tradicional do baixo Rio Madeira, evidenciando o folclore e as tradições da comunidade ribeirinha localizada a 150 km do centro de Porto Velho.

Pela primeira vez, a festa estará desfalcada da presença do ilustre professor e seresteiro Artêmis Águila Ribeiro. Ele faleceu há quatro meses, aos 82 anos, depois de mais de meio século dedicado à cultura e à educação.

“Seu” Artêmis foi um dos personagens mais relevantes da história local. Vivia nas barrancas do Rio Madeira. Homem humilde, “beradeiro”, nascido no Amazonas, migrou para Nazaré, cuja região até então era um seringal. Ele fundou e fazia parte do Trio da Velha Guarda de Nazaré, grupo musical de seresta composto por moradores antigos do distrito.

O pioneiro Artêmis em sua casa em 2018. Foto: Júlio Olivar/Acervo pessoal

Pioneiro e lutador 

O professor Artêmis atuou na escola pública da comunidade, até aposentar-se. Instruiu muitas gerações. Sempre foi uma referência, “uma lenda viva”, como muitos se referiam ao decano.

Suas instruções iam além da pedagogia formal. O velho mestre sublinhava também as questões culturais, socioambientais e “os ensinamentos que só a floresta oferece”, como ele disse em entrevista.

Assim, Artêmis fez de Nazaré um símbolo da resistência contra a exploração da floresta e a invasão da cultura dominante. “Aqui, a gente preserva a vida e valoriza o que Deus nos deu. Aqui, eu me casei e tive cinco filhos, então minha vida está aqui também”.

A vila foi fundada em 1966 pelo seminarista Manoel Maciel Nunes. Ele tornou-se líder religioso e professor da comunidade. Constituiu família, os filhos dele criaram o grupo Minhas Raízes e deram sequência às atividades culturais iniciadas pelo grupo Velha Guarda, do qual Artêmis foi precursor.

Os membros do Minhas Raízes sempre deram valor aos pioneiros. Fazem questão que eles abram formalmente o Festival Cultural. “Seu” Artêmis tinha muito orgulho dessa relação com os mais jovens. “Eles são frutos nossos e nos valorizam”, dizia, emocionado.

O pioneiro Artêmis em sua casa em 2018. Foto: Júlio Olivar/Acervo pessoal

Um mundo à parte 

O Distrito de Nazaré é a partícula mais amazônica de Rondônia, pois conserva a magia e a simplicidade dos velhos tempos, desde a sua fundação em 1966, além de ser cercado por matas intocadas.

Tem cerca de 700 habitantes, um povo hospitaleiro e peculiar pelos seus costumes e identidade. É, de fato, uma comunidade à parte do resto do mundo.

Com celular e internet “off”, a vida ganha outros contornos. Vi as crianças “confabulando” traquinagens, avós contando causos, os quintais continuam sem cercas, muitas pessoas se beijam nas mãos e se chamam de parentes, a prosa é mais demorada e o riso é franco.

A vida é tranquila demais, mas também festiva, lúdica e mágica; o acesso à vila é feito só pela hidrovia do Rio Madeira; não existem carros dentro da localidade. Em todo o povoado há apenas três motos.

O grupo Velha Guarda: tradição. Foto: Divulgação

Ecoturismo

Tem pousadas, restaurante [com comidas típicas] e todos se conhecem e se cruzam nas ruas estreitas de terra, com caloroso “bom dia!”.

Conheci em Nazaré um novo prato à base de caparari. É o ‘salmão’ do Rio Madeira, o rio com a mais rica ictiofauna do planeta, cerca de 900 espécies de peixes.

Na gastronomia, tem tudo de melhor que possa existir na água doce: pintado, pirarucu, tambaqui… além dos frutos típicos da Amazônia que dão sucos e sobremesas singulares. Ah, e tem a farinha que, dizem, é melhor de todas.

Na época do Festejo de Nazaré, em junho, aparecem mais de 500 turistas, inclusive internacionais, com o desejo do “viver amazônico”. O evento anual é organizado pelo Instituto Cultural e Socioambiental Minhas Raízes.

Músicas, danças folclóricas, artesanatos, culinária, tudo da melhor qualidade e em meio à natureza majestosa e a energia indescritível de sua gente e de suas histórias.

A festa folclórica mais tradicional do baixo Madeira. Foto: Lucileyde Feitosa

Referências genuínas

A presença e a influência indígenas são muito marcantes. Suas manifestações ocorrem em dias festivos sob liderança da cacica Márcia Mura. Há artesanatos e objetos de arte da etnia Mura à venda.

Uma dica a mais: são imperdíveis os passeios de barcos pelo lago Peixe-Boi, até o balneário Tabuleiro, onde em ocasiões especiais o turista é recepcionado e passa por uma integração cultural com ritual Mura Ananã.

Também há, na vila, trabalhos artesanais feitos pelos caboclos, incluindo instrumentos musicais de percussão, bem bonitos e originais, esculpidos a partir de tocos encontrados no rio.

Vale a pena cada detalhe da viagem: do nascer ao pôr-do-sol, o canto dos pássaros, as lendas e outros sons da natureza em festa. Ou simplesmente, deitar-se na rede e sentir o frio certeiro de todas as noite, contrastando com o calorão que faz durante o dia.

Tudo é lindo e grandioso porque tem alma. “Seu” Artêmis fazia questão de ressaltar tudo isso com muito amor, empenho e elegância. Afinal, “a simplicidade é o ápice da sofisticação”, como diria Leonardo Da Vinci.

Sobre o autor

Às ordens em minhas redes sociais e no e-mail: julioolivar@hotmail.com . Todas às segundas-feiras no ar na Rádio CBN Amazônia às 13h20.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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