Representante do MPF tentou diálogo e acabou vítima de ‘haters’.
Quinta-feira, 3 de novembro. Fim de tarde ensolarado em Vilhena, sul de Rondônia. Atmosfera amena, clima tenso. Gritos de guerra, buzinas, bandeiras do Brasil tremulando e as cores verde e amarelo ostentadas nas roupas. Em meio da confusão conduzida por caminheiros e simpatizantes, a presença inusitada de indígenas das etnias Canoê e Sabanê. Eis que, nesse cenário cabuloso e caótico, aparece a procuradora da República Gisele Bleggi, para um diálogo com os indígenas.
A rodovia BR-364 estava parcialmente trancada havia quatro dias por manifestantes contrários ao resultado das urnas eleitorais. Lula (PT), o presidente eleito no domingo (30) é o “inimigo público número 1” da direita. Rondônia é o único estado brasileiro onde o petista não venceu em sequer um dos 52 municípios. A revolta civil era esperada depois das eleições.
Manifestantes não paravam de chegar. São repelidos pelas forças policiais, mas não arredam pé e resistem. Alguns dos que saem, retornam ao ponto de resistência. Dizem que são pacíficos e democráticos. Contudo, não titubeiam em “botar pra correr” jornalistas suspeitos de serem “comunistas” e também há registros de agressões físicas na paralisação.
Vilhena é uma das cidades mais conservadoras de Rondônia. “Capital da fé”, tem dezenas de denominações evangélicas e católicas, com a maioria dos seus líderes envolvida nas eleições. A Associação Comercial e Industrial de Vilhena (ACIV) fez uma convocação para que o comércio cerrasse as portas em protesto à vitória contestada [por eles] de Lula. Polo do agronegócio, a cidade elegeu um representante da categoria para senador, o bolsonarista Jaime Bagatolli (PL), que também apoia as manifestações.
Catarinense de nascimento e há 12 anos atuando no MPF em Rondônia, Gisele Dias de Oliveira Bleggi Cunha é “fora do eixo”. Tanto pela coragem de enfrentar os manifestantes em um clima inóspito quanto pelo visual “underground” com que se apresentou, chamando atenção seu estilo “dreadlocks”, com tranças indo até abaixo da cintura. Com muitas tatuagens, botas pesadas e o jeans rasgado, rapidamente a procuradora ficou pop e ganhou as redes sociais, sendo assunto de “haters” e inspirando alguns “memes”. Além de sua atuação na justiça, fotos dela estão cadastradas no site de modelos Vitrine Mega Model e foram amplamente utilizadas pelos seus detratores na internet.
Gisele deixou a cena na BR escoltada pela Polícia Federal, sob vaias e gritos de “vai embora!”. Em decorrência da repercussão do caso, entrevistei a procuradora. Veja a conversa:
Júlio Olivar: O que levou a senhora àquele lugar foi apenas a obrigação institucional?
Gisele Bleggi: A minha atuação prática no MPF não cobre o município de Vilhena. Então, eu não sou a procuradora que trata dos direitos daquele povo lá. Mas eu lhe garanto que os procuradores que atuaram em Vilhena sempre foram diligentes em relação às reivindicações dos indígenas, havendo um deles que deu quase a vida pelos indígenas. Então, é uma blasfêmia [a negação de que os indígenas não tenham sido sempre atendidos].
Júlio Olivar: Mas os indígenas foram para lá protestar e hostilazaram a senhora.
Gisele Bleggi: Eles foram cooptados pelo comitê eleitoral [do presidente Jair Bolsonaro], que ganhou as eleições em Rondônia, inclusive. Quem está manipulando os indígenas tem interesse de arrendar as terras deles para plantar soja. Já foi levantado isso. É uma situação complicada. Eles [manifestantes] odiaram a minha presença porque eu me entendi com os indígenas numa sala à parte. Gente do lado de fora ficou olhando para a sala, através do vidro, e dizendo que eu estava xingando os indígenas. O que não aconteceu. É mentira. Eu saí de mãos dadas com os indígenas. Nós nos entendemos. O problema ocorreu quando eu fui ao meio da manifestação e quase fui linchada. Porque existe uma organização criminosa que fica inflamando. Estão instigando para haver o caos permanente. E eu venci a situação porque o batalhão de choque não precisou usar a força naquele momento. No final, os indígenas fizeram um cordão de isolamento e saímos todos de mãos dadas.
Júlio Olivar: A senhora disse em meio a confusão que o MPF faz “tudo” pelos indígenas. De pronto, alguns deles rechaçaram a sua afirmação e disseram que são desassistidos.
Gisele Bleggi: Eu sempre trabalhei por causa dos indígenas. Pedi para ficar no gabinete da atuação indígena do MPF, o que representa triplicar o meu trabalho. Dentro da minha atribuição, nenhuma etnia tem nada a falar. Outros colegas que aturaram em Vilhena, foi da mesma maneira: diligentes. Os indígenas que reclamam não representam a categoria. Inclusive, há um manifesto [a favor de Gisele] da Opiroma (Organização dos Povos Indígenas de Rondônia e Noroeste do Mato Grosso). [A nota de repúdio sobre a participação dos indígenas na ação em Vilhena foi assinada por 27 instituições e lideranças — veja imagem].
Júlio Olivar: Mas por que a senhora, que atua em Porto Velho, foi lá? [Já que não era sua atribuição].
Gisele Bleggi: A manifestação ficou muito violenta. As polícias militar, federal e rodoviária estavam autorizadas a controlar a situação de maneira coerciva. Eu quis convencer os indígenas a saírem espontaneamente. O meu medo era de que eles apanhassem. Afinal, foi só com o uso da força e da ameaça que houve dispersão. Eu quis fazer o comunicado pessoalmente e não por intermédio do BOP (Batalhão de Operações Especiais), por exemplo, de que as polícias agiriam. Foi um gesto de solidariedade.
Júlio Olivar: Seu visual — inusitado e “fora do padrão” — gerou controvérsias. Há motivo de o explicá-lo? A senhora foi vítima de preconceito?
Gisele Bleggi: Eu fui à manifestação para proteger os indígenas. Mas meu estilo é pouco ortodoxo mesmo. Até entendo a reação: eu chegando daquele jeito no meio de gente com mentalidade atrasada. Foi muita coisa para eles (risos). Experiência única que vou levar comigo até os últimos dias. E as críticas ao meu visual são músicas para meus ouvidos.
Júlio Olivar: Foi uma manifestação de coragem e ousadia a sua presença?
Gisele Bleggi: Eu prefiro me definir como coragem e solidariedade.
Júlio Olivar: A senhora tem conhecimento dos “memes”?
Gisele Bleggi: Eu não tenho redes sociais e não sei do que estão me xingando. Estou com a consciência tranquila.
Júlio Olivar: Seu visual tem carga simbólica? Representa algum recado à sociedade?
Gisele Bleggi: Eu gosto muito do estilo africano; uso tranças. E roupas com desenhos étnicos. Porque eu atuo com os indígenas e todas as minorias étnicas. Eu sou loira de cabelos lisos, mas prefiro o estilo atual. A calça rasgada é para mostrar que eu estou sempre na luta.
Júlio Olivar: Chamaram a senhora de petista. E aí?
Gisele Bleggi: Não sou petista. Aliás, eu me decepcionei com os dois candidatos [Lula e Bolsonaro, que disputaram o segundo turno]. Em 2018 eu votei no Bolsonaro e me arrependi amargamente. Eu atuo para defender a Constituição Federal, somente. Mas o povo preferiu dar uma segunda chance ao presidente eleito. Esperamos que Lula não reincida nas falhas. As pessoas podem mudar suas condutas para melhor. Acredito que foi isso que o eleitorado fez. Eu não estou aqui para julgar. Nem tenho lado, nem tenho partido. Procuro ser imparcial e isenta. Não tenho redes sociais para evitar tumultos.
Índio de direita
A presença da procuradora da República em Vilhena e o repúdio das entidades contrárias à mobilização não conteve a participação de alguns indígenas nas manifestações, mesmo contrariando diretrizes oficiais das comunidades tradicionais.
Neste domingo, 6, representantes de etnias do Cone Sul estavam entre os rebeldes na BR-364. Em vários pontos da rodovia há a participação dos povos da floresta, com destaque a Cuiabá (MT), a 700 km da divisa com Rondônia.
O indígena Ataíde Sabanê é um dos mais empolgadas em Vilhena. Em entrevista, ele disse que é “de direita” e que percebe que as ONGs (organizações não governamentais) patrocinadas pela esquerda querem “lucros às custas dos índios”. Segundo Ataíde, tem indígenas morrendo à míngua nas filas do SUS. “Eu nunca vi ou soube que Ministério Público se manifestou ao nosso favor”. Ainda conforme a liderança, “os índios não têm interesse que nas escolas indígenas sejam ensinadas as coisas de esquerda”.
Indagado se ele se inseriu nas manifestações apoiado por fazendeiros, Ataíde negou. “Estou aqui porque sou índio, mas também sou pai e avô. Quero um Brasil de paz e de futuro, e com índios junto com os brancos, todos da direita”.
Outro lado
Oficialmente, o povo Sabanê é contra o envolvimento dos indígenas e chama a manifestação na BR e a afronta à procuradora de “ato antidemocrática”, conforme nota veiculada na internet, assinada pelo cacique Luís Sabanê e outras 79 pessoas.
Liderança da Aldeia Sowaintê, Iliandro Kulimasy Sabanê, foi um dos signatários e articuladores da nota coletiva. Ele endossou o documento que considera a “ação isolada” e que não corresponde a diretrizes da população nativa do município e do estado.
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