O calvário de um refugiado venezuelano que mora numa rodoviária em Rondônia

“Fui humilhado e levei até cuspida na cara”.

Domingo, 22 de janeiro, 11h25. O venezuelano Aldrey Martinez Veles, 47 anos, está na rodoviária de Vilhena (sul de Rondônia, a 700 km da capital), parece inquieto e se aproxima educadamente dizendo que gostaria de falar comigo. Ouço-o. Ele é refugiado no Brasil, foge da crise política sem precedentes que avassala seu país de origem. Faz parte de uma legião de compatriotas que vivem em Rondônia — e em outros estados país afora. Sem referências por aqui, o homem que chegou sozinho a Amazônia Ocidental vive há mais de dois meses na estação rodoviária.

Sempre segurando uma Bíblia, muito falante e esclarecido, com respostas rápidas e precisas, Aldrey conta sua aventura de viver. Emocionado, mas com semblante seguro, diz que andou a pé durante quatro meses desde a sua cidade, San Antonio del Táchira, na Venezuela. Em sua ‘via crucis’, passou pela Colômbia, Equador e Peru até chegar a Assis Brasil [município acriano na fronteira com o Peru e Bolívia].

O Acre tem sido, na última década, o portal de entrada de imigrantes ao Brasil. Principalmente haitianos, que cruzam a Ponte da Integração Brasil-Peru, também conhecida como Ponte Internacional sobre o Rio Acre, que conecta as cidades de Assis Brasil e Iñapari.

Aldrey com sua Bíblia inseparável. Foto: Júlio Olivar/Acervo pessoal

 Aldrey chegou ao Brasil por este caminho. Trazendo na mochila apenas duas calças e quatro camisas, além de um celular. “Eu apanhei durante a caminhada da polícia colombiana que me obrigou a assinar papéis em branco. Fui ameaçado, ironizado e agredido quando eu disse que era evangélico”, afiança o homem.

Logo que chegou ao Brasil, saiu do Acre — que tem um dos piores índices nacionais de empregabilidade — embarcou de carona para Porto Velho (RO). Para sobreviver na capital rondoniense, trabalhou como servente de pedreiro e vendeu balas nos semáforos.

Orientando que em Vilhena — que tem fama de ser uma cidade rica, com o segundo IDH do Estado — conseguiria emprego com mais facilidade, arranjou uma passagem de ônibus e para cá veio, há mais de dois meses. Segundo ele, aqui viveu os momentos mais duros de humilhação, segregação e até ameaças de morte.

De sua carteira, ele saca uma série de papéis com anotações e documentos. Inclusive, um boletim de ocorrência policial datado de 18 de novembro de 2022, em que alega ter sido maltratado em Vilhena. Segundo consta do BO, Aldrey foi agredido “até com uma cuspida na cara” por pessoas ligadas a uma igreja evangélica. Ele alega ter sido rejeitado no templo. As motivações não estão bem esclarecidas.

No braço, o nome do caminhante solitário. Foto: Júlio Olivar

Aldrey disse que é graduado em administração de empresas, filho de pastor evangélico e apto a trabalhar em construção civil. “Eu tenho a Bíblia como escudo. Deus me inspirou a sair da Venezuela e retirar-me ao Brasil, por isso vim. Deixei mãe [o pai já é falecido] e irmãos para trás. Aqui [em Vilhena] cheguei a trabalhar como frentista, mas fui dispensado em uma semana, atualmente durmo em um banco na rodoviária e tomo banho quando posso”, narra.

“Fui vítima de extorsão, injúria e ameaça, pela minha simples presença aqui. Disseram que eu sou venezuelano vagabundo e que como carne de cachorro”.

Aldrey Martinez

A impressão que se tem, com base no que Aldrey fala, é que ele foi vítima, também, de intolerância política. Ele chegou à cidade no ápice das manifestações bolsonaristas que contestavam o resultado das eleições presidenciais — em que Lula (PT) venceu, oficialmente — e a Venezuela era citada o tempo todo como um paradigma entre os países comunistas do mundo.

“Talvez, tenham me confundido. Eu saí da Venezuela. Não pretendo voltar. E não tenho culpa pelas decisões políticas. Estou lutando apenas para sobreviver”, desabafa o refugiado que personifica “As veias abertas da América Latina” [título do livro de 1971 de Eduardo Galeano].

O pobre homem está à mercê da sorte, despossuído inclusive de pátria. Come o que lhe dão. A dor maior, diz, é sentir-se pouco acolhido. “Eu vou a uma igreja aqui em Vilhena. Sou evangélico. Mas falta afeto. Estou só e com sintomas de depressão”, afirma, explicando que não obteve a ajuda de nenhum órgão público no município para lhe dar algum encaminhamento na área social.

Na rodoviária da dor da indiferença. Foto: Júlio Olivar

“Eu queria ficar aqui em Vilhena, ter algum meio para sobreviver. Diz a Bíblia que a gente tem que se reerguer onde foi humilhado; eu fui e sou muito humilhado aqui em Vilhena. Mas, talvez, eu embarque para São Paulo. Lá pode haver mais oportunidades”, reflete.

Vilhena é a cidade com mais igrejas evangélicas em todo o Estado — segundo dados do IBGE. Seria tão difícil assim para Aldrey, conhecedor da Palavra de Deus e que se diz “enviado”, ser acolhido na cidade entre as comunidades evangélicas?

“Eu vejo preconceito. Além da minha nacionalidade, tive outros problemas antigos e que morreram no passado. Já me envolvi com drogas, mas estou limpo de cocaína há cinco anos. Não devo nada à justiça e estou recomeçando minha história apegado à Bíblia e a Deus. Mereço uma oportunidade”.

Aldrey Veles está incomunicável, pois teve que vender seu smartphone para poder comer. Quem quiser falar com ele — e quem sabe ajudá-lo — terá que ir até seu endereço circunstancial. Isso até a próxima parada.

Sobre o autor

Às ordens em minhas redes sociais e no e-mail: julioolivar@hotmail.com . Todas às segundas-feiras no ar na Rádio CBN Amazônia às 13h20.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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