Impressões de um antropólogo sobre Vilhena em 1938

Felizmente, alguém registrou tudo.

Felizmente, alguém registrou tudo. Desse tudo sobraram fragmentos para a história da terra que se chamaria Rondônia. Tido como pioneiro dos pioneiros no município, o índio aculturado Marciano Zonoecê chegou a Vilhena (sul de Rondônia, a 700 km de Porto Velho) em 1943 para ser o administrador do posto telegráfico inaugurado pela expedição militar comandada pelo então tenente Cândido Rondon. E antes? Terá sido ele mesmo o primeiro não-índio a habitar a região junto com a sua família? O que havia em Vilhena no período entre 1910 até a chegada de Zonoecê?

Para muitos, há um “buraco” na História, muitas vezes narrada de forma equivocada pela imprensa. Publicado em 2001, o livro “Um outro olhar – diário da Expedição à Serra do Norte” (Editora Ouro Sobre Azul, 215 páginas) abre uma senda importante na historiografia regional.

Rica em fotos, a obra ainda é pouco conhecida, embora o autor seja uma referência internacional quando o assunto é antropologia. Com ilustrações feitas a lápis pelo pesquisador e uma série de documentos, o trabalho trata da última expedição etnográfica do século 20. Em seu diário transformado em livro, o antropólogo carioca Luiz de Castro Faria relata minúcias do cotidiano de Vilhena em 1938. Isso mesmo, cinco anos antes da chegada da família Zonoecê.

Anterior a Marciano Zonoecê houve alguns administradores que passaram pelo posto telegráfico, mas seus nomes não foram perpetuados. Naquele ano da expedição era responsável pelo telégrafo um certo Manoel Lage, índio mamaindê, aculturado. A respeito dele, não há mais nada.

Marciano ficou conhecido na História porque viveu com sua mulher Maria Augusta e filhos no posto telegráfico até o seu fechamento, em 1969, quando já existia a Vila de Vilhena, localizada a cinco quilômetros dali, às margens da rodovia BR-029, atual BR-364, aberta em 1960 permitindo o grande fluxo migratório que fez de Vilhena uma cidade, a partir de 1977; Marciano faleceu em 1997.

Foto: Luiz de Castro Farias/Reprodução

“CASAS DE BRANCO” E HANDEBOL

Nas imediações de onde Vilhena nasceu em 1910 havia “casas de branco” (com portas, janelas etc) e um campo onde os indígenas – acreditem – jogavam uma espécie de handebol, usando uma bola de látex feita de seiva de mangaba.

Não apenas Luiz de Castro, mas também o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss — jovem de 29 anos, então professor na USP e que chefiava a expedição — comentou sobre o “exótico” jogo de bola, em seus relatos presentes no clássico livro “Tristes Trópicos”, um ensaio romanceado publicado em 1955 acerca da experiência vivida com as sociedades indígenas, com destaque aos Nambikwaras, nesta região. Observa hoje o pesquisador Solano Low Lopes, de Porto Velho: “O jogo de bola praticado pelos povos da Serra do Norte eram mais semelhantes aos jogos pré-colombianos, como os praticados na Amazônia e no México, do que o handebol moderno europeu. Muitos simbolos culturais europeus tem origem indígena, como exemplo, o aristocrático cachimbo inglês”.

Mas, assim como os não-índios receberam influências — e a maioria não sabe disso — dos povos da Amazônia em seus hábitos e costumes, o inverso existe é sempre mais comentado e assimilado, por causa da cultura dominante manifestar-se como “superior” e, por vezes, parece ter “inventado tudo”. A interferência do homem branco, em Vilhena, sobre os indígenas ia além do telégrafo. Alguns nativos já usavam roupas, criavam galinhas e tinham cães de estimação. Reflexo do convívio com seringueiros, sertanistas e militares que ocuparam a região em diversos momentos da história. 

Foto: Luiz de Castro Farias/Reprodução

“A MAIOR EMOÇÃO QUE JÁ SENTI”

Sobre os índios que viviam perto do telégrafo, Luiz anotou todo o processo de confecção da cestaria, adornos, armas e utensílios em cerâmica por eles usados. Chama atenção o vocábulo nativo observado pelo pesquisador e disposto com esmero nos documentos, com desenhos e gráficos. No entorno do posto telegráfico existiam sete tribos, conforme ilustração feita pelo cientista.

Segundo Luiz de Castro Faria, alguns índios frequentavam a casa onde funcionava o telégrafo. Na noite de 12 de setembro, por exemplo, um grupo formado por índios Maimandê e Cabixi visitou os expedicionários, tocaram flauta para eles. “Foi a maior emoção que já senti. Há naquela música, soturna, profunda, qualquer coisa de realmente mágica”, apontou Luiz.

Ele também relatou a “guerra” entre os grupos indígenas da região. Os das margens do Aripuanã costumavam atacar e matar os sabaneses. Até pouco tempo atrás havia um cemitério indígena nas proximidades da “Casa de Rondon”, que acabou coberto por uma plantação de soja em 2005. Entre 1980 e 1996 funcionou um museu no local do antigo telégrafo, que acabou abandonado. Agora, em 2020 e 2021, está sendo revitalizado.

Na época dos registros de Luiz, as terras vilhenenses pertenciam a Mato Grosso. A Expedição Etnográfica à Serra do Norte foi um projeto do próprio Levi-Strauss, quando ele estava na Universidade de São Paulo cumprindo um contrato de professor visitante, entre 1935 e 1939. Luiz de Castro Faria foi representante do governo brasileiro nesta famosa expedição

Dia 18 de setembro, depois de 14 dias, o grupo saiu de Vilhena e seguiu para Porto Velho, então pertencente ao estado do Amazonas e em seguida para Manaus e Belém, onde ocorreu a última anotação, dia três de janeiro de 1939. 

Foto: Luiz de Castro Farias/Reprodução

O AUTOR DO LIVRO

O professor Luiz de Castro Faria, da Universidade Federal Fluminense, museólogo de formação, foi um dos fundadores da antropologia no Brasil; também foi arqueólogo. Morreu aos 91 anos, em 2004. Em sua homenagem existe o Prêmio Luiz de Castro Faria, realizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em reconhecimento a trabalhos científicos que tratem de patrimônio arqueológico. 

Foto: Luiz de Castro Farias/Reprodução

Às ordens em minhas redes sociais e no e-mail: julioolivar@hotmail.com // Todas às segundas-feiras no ar na Rádio CBN Amazônia, às 13h20. 

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