Advogado que presidiu comissão de instalação de Vilhena, em Rondônia, comenta os 44 anos do município

Amadeu Machado atuava como diretor jurídico da Prefeitura de Porto Velho e presidiu a comissão que organizou as instalações dos cinco municípios ao longo da BR-364, conforme a legislação exigia.

O município de Vilhena, em Rondônia, está comemorando 44 anos nesta terça-feira (23), desde a sua instalação como município independente, deixando de ser distrito de paz de Porto Velho, a 700 km. Um testemunho da história é o advogado — e também memorialista — Amadeu Guilherme Matzenbacher Machado.

Na época, o gaúcho Amadeu era um jovem de 30 anos de idade. Ele atuava como diretor jurídico da Prefeitura de Porto Velho e presidiu a comissão que organizou as instalações dos cinco municípios ao longo da BR-364, conforme a legislação exigia.

Além de deter todas as informações no âmbito jurídico, o agora influente jurista tem recordações afetivas sobre os atos ocorridos em Ariquemes, Ji-Paraná, Cacoal, Pimenta Bueno e, notadamente, Vilhena.

Procurei-o para uma entrevista. Ele, de pronto e muito gentilmente, falou comigo. Acompanhe:
O povo comparece em peso à solenidade de 1977. Foto: Divulgação

JotaÓ Escreve – Doutor Amadeu, eu gostaria de saber detalhes e quais lembranças o senhor tem daquele dia festivo que marcou a emancipação político-administrativa de Vilhena.

Amadeu Machado – Olá, meu bom amigo Júlio. Sempre dinâmico e antenado, em permanente contribuição ao esclarecimento de fatos históricos, trazendo à luz do momento o que já está em páginas amareladas e esquecidas. Pois então. Já se vão 44 anos que o Território Federal de Rondônia ganhou cinco novos municípios.

JotaÓ Escreve – Muito obrigado pela sua deferência, disponibilidade em colaborar com o resgate da história. Podemos começar por uma rápida uma abordagem da situação jurídica da época?

Amadeu Machado – Os Territórios Federais, que foram criados em 1943, por Getúlio Vargas, se constituíam numa figura híbrida de descentralização administrativa, eis que todos em regiões distantes e isoladas e precisavam ter algum tipo de ordenação. Após o Decreto-Lei de criação deles, em 13 de setembro de 1943, houve a institucionalização com a criação da figura do governador e prefeitos. O primeiro nomeado pelo presidente da República e os prefeitos de livre nomeação do governador.

Em 8 de janeiro de 1969 foi editado o Decreto-Lei 411, que dispunha sobre a administração dos Territórios Federais, a organização dos seus Municípios, além de dar outras providências [jargão do processo legislativo], em substituição à legislação anterior, que já estava obsoleta.

Seria algo como a Constituição dos Territórios Federais, a exemplo das Constituições dos Estados e Leis Orgânicas dos Municípios, sempre guardando simetria com o paradigma, que é a Constituição Federal, por isto chamada de Carta Magna.

JotaÓ Escreve – Na década de 1970 houve uma explosão demográfica que justificou a instalação dos municípios.

Amadeu Machado – O impulso de ocupação da Amazônia, nos anos 1970, especialmente no Território Federal de Rondônia, obrigou o poder central a voltar seus olhos para uma nova feição institucional que se apresentava.

Os projetos de colonização implantados pelo INCRA [Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária], a partir da campanha [promovida pelo Governo Federal] do “Integrar para não entregar”, trouxeram uma leva de brasileiros, de todas as regiões, gerando demandas que precisavam ser atendidas.

Nesse contexto foi submetido ao Congresso Nacional, lá aprovado e sancionado pela Presidência da República, um novo diploma legal que substituía, em parte o Decreto-Lei 411.

*A questão jurídica segue ao final da entrevista

JotaÓ Escreve – Embora fossem vilas, as cinco localidades já eram de fato municípios, muito movimentados e ativos economicamente. O que não justificava que fossem dependentes de Porto Velho, tão longe.

Amadeu Machado – A criação dos municípios em Rondônia foi uma ação determinada pela conjuntura, pois que aquelas localidades, já bem adensadas e com enormes demandas, não podiam ficar na dependência de decisões de Porto Velho.

Era uma questão que envolvia necessidades prementes e por parte de quem as vivia, sabendo-se que as comunicações eram precárias e as distâncias, mais a instabilidade de tráfego da única estrada, a BR-364 – impunham a necessidade de um gerenciamento local.

JotaÓ Escreve – Como o senhor se inseriu na história?

Amadeu Machado – Por ser o diretor jurídico da Prefeitura de Porto Velho, coube-me a presidência de uma comissão constituída pelo governador Humberto Guedes, acumulando a função de secretário das solenidades.

Compunham este grupo Francisco José Coimbra Erse, o Chiquilito, por ser o diretor do Departamento de Administração da Prefeitura de Porto Velho; Jussara Gottlieb, jornalista e relações públicas do Governo do Território e o radialista Jorge Sarrafe Santos.

Mês de novembro entrando e nós nos pusemos na estrada. Estivemos em todos os futuros municípios, cujos administradores, até então vinculados a Porto Velho, seriam nomeados prefeitos, e deveriam dotar os locais da infraestrutura necessária à realização do ato de emancipação, tão ansiosamente aguardados por aquelas comunidades.

Fixamos o calendário dos eventos e as condições necessárias para a sua realização e ficamos em contato com os responsáveis, que iam reportando as dificuldades e embaraços que surgiam. Administramos muitas confusões, dado ineditismo do que estávamos fazendo.

JotaÓ Escreve – Qual foi o seu papel nas solenidades ocorridas ocorridas para instalar cada município, em especial Vilhena?

Amadeu Machado – Depois da instalação de Ji-Paraná, no dia seguinte nossa comissão embarcou em monomotor para Vilhena, onde nos aguardava o administrador Renato Coutinho. Ele havia feito um trabalho primoroso, estando impecável a logística, embora existissem as precariedades óbvias da ocasião.

Palanque oficial armado, chega no dia seguinte a comitiva principal, onde as estrelas eram o governador Humberto Guedes e o juiz José Clemenceau. A solenidade foi arrebatadora. Esfuziante, contagiante. A alegria dos moradores de Vilhena estava no ar.

Eu ficava ao lado a mesa diretora. Ouvia discursos e tudo registrava no pequeno caderno de atas que tivera que comprar com dinheiro do meu bolso, pois não dava tempo de processar a despesa nos moldes exigidos pela burocracia. Ao final a ata de instalação era lida e aprovada pelos presentes, que assinavam o documento.

A solenidade foi arrebatadora. Esfuziante, contagiante. A alegria dos moradores de Vilhena estava no ar.

Amadeu Machado

JotaÓ Escreve – E como foi a festa?

Amadeu Machado –Havia um gaúcho, cujo nome infelizmente não lembro, que era o patrão do Centro de Tradições Gaúchas – CTG – de Vilhena, cidadão muito divertido e despachado. Ele, juntamente com o Renato Coutinho, fizeram uma churrascada inesquecível e a festa foi empolgante, com enorme participação popular, o que é muito importante ressaltar. Muita carne, saladas e bebidas, tudo coroado com uma apresentação de danças típicas do Rio Grande do Sul. Eu, como gaúcho que sou, estava me sentindo em casa e muito orgulhoso de tudo o que estava realizando e presenciando.

JotaÓ Escreve – Qual o sentimento o senhor tem em relação à história, vendo hoje os cinco municípios muito bem estruturados e progressistas?

Amadeu Machado –Olhando hoje, passados estes 44 anos, sinto-me feliz, orgulhoso e realizado com as contribuições que ofereci ao meu Estado de Rondônia e a participação que tive no nascimento desses esplendorosos Municípios, que pontearam o estrondoso e incrível progresso que hoje vivemos. 

Amadeu Machado, testemunho ocular da história. Foto: Divulgação

Questão jurídica

O doutor Amadeu Guilherme Matzenbacher Machado conhece cada detalhe do aspecto jurídico, importando ao entendimento histórico de como se deu a expansão de Rondônia que — até então — se resumia a Porto Velho e Guajará-Mirim, em uma área correspondente à do Estado de São Paulo.

Amadeu Machado lembra da Lei Nº 6.448, de 11 de outubro de 1977, que dispunha sobre a organização política e administrativa dos Municípios dos Territórios Federais, cujos tópicos principais ele consigna, por relevantes que são. Eis a redação:

TíTULO I

DA ORGANIZAÇÃO MUNICIPAL

CAPíTULO I

DA CRIAÇÃO DO MUNICÍPIO

Art 1º – A organização política e administrativa dos Municípios dos Territórios Federais obedecerá ao disposto nesta Lei.
Art 2º – Os Territórios Federais são divididos em Municípios e estes em Distritos.
Parágrafo único – O nome do Município será o de sua sede, que terá a categoria de cidade, e o Distrito designar-se-á pelo nome da respectiva sede, que terá a categoria de vila.
Art 3º – Mantidos os atuais Municípios, são requisitos mínimos para a criação de novos:
I – população estimada superior a 10.000 (dez mil) habitantes;
II – eleitorado não inferior a 10% (dez por cento) da população;
III – centro urbano com número de residências superior a 500 (quinhentas);
IV – receita tributária anual não inferior à menor quota do Fundo de Participação dos Municípios, distribuída, no exercício anterior, a qualquer outro Município do País.
§ 1º – Os Municípios e Distritos somente poderão ser criados em lei a ser votada no ano anterior às eleições municipais, para vigorar a partir de janeiro do ano seguinte.
§ 2º – O processo de criação do Município terá início mediante representação dirigida ao Governador do Território, assinada, no mínimo, por um quinto do número de eleitores residentes ou domiciliados na área que se deseja desmembrar.
§ 3º – Não será criado novo Município, desde que esta medida importe, para o Município ou Municípios de origem, na perda dos requisitos desta Lei.
§ 4º – Os requisitos exigidos nos itens I e III, serão apurados pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; no item II, pelo Tribunal Regional Eleitoral em cuja circunscrição esteja incluído o Território e o no item IV, pelo órgão fazendário federal.
§ 5º – O Governador do Território solicitará, aos órgãos de que trata o parágrafo anterior, as informações sobre os requisitos dos incisos I a IV, e do § 2º deste artigo, a serem prestadas no prazo de 60 (sessenta) dias, a contar da data do recebimento do pedido.
Art 4º – Cumpridos os requisitos do artigo anterior, o Governador do Território encaminhará o pedido, devidamente instruído, ao Ministro de Estado do Interior, que o submeterá ao Presidente da República, a quem cabe determinar a realização da consulta plebiscitária, adotando-se, no que couber, a sistemática da Lei Complementar que dispõe sobre a criação de Municípios dos Estados.
Art 5º – Caberá ao Presidente da República, a iniciativa da lei de criação de Municípios, nos Territórios Federais.
Art 6º – A lei de criação de Municípios nos Territórios Federais mencionará:
I – o nome, que será também o da sua sede;
II.- a comarca a que pertence;
III·- o ano da instalação;
IV – os limites territoriais;
V – os distritos, se houver, com os respectivos limites territoriais.
Art 7º – Na fixação das linhas divisórias intermunicipais e interdistritais, deverão ser observadas as seguintes normas:
I – em nenhuma hipótese serão consideradas incorporadas ou, a qualquer título, subordinadas a um Município, áreas compreendidas em Territórios limítrofes;
II – as superfícies d’água, marítimas, fluviais ou lacustres não quebram a continuidade territorial;
III – dar-se-á preferência, para delimitação, às linhas naturais, facilmente reconhecíveis;
IV – na inexistência ou impossibilidade de linhas naturais, utilizar-se-á linha reta, cujos extremos sejam pontos, naturais ou não, facilmente reconhecíveis e dotados de condições de fixidez.
Art 8º – Não haverá, nos Territórios, mais de uma cidade ou vila com a mesma designação, devendo ser evitada a utilização de topônimos já existentes no País.

DA INSTALAÇÃO DO MUNICÍPIO

Art 9º – Os Municípios serão instalados com a posse do Prefeito e dos Vereadores.
Art 10 – A sessão de instalação do Município terá caráter solene, será presidida pelo Juiz de Direito da Comarca ou, na sua falta ou impedimento, pelo Juiz da Comarca mais próxima, que fará a declaração de instalação, dando, em seguida, posse aos Vereadores.
§ 1º – O Prefeito será empossado durante a sessão de instalação do Município, pelo Governador do Território, ou pela autoridade por este designada.
§ 2º – A ata da sessão de instalação do Município, assinada pelo Juiz de Direito e demais autoridades presentes, será publicada no Diário Oficial da União.

Estas as diretrizes gerais, aplicáveis aos municípios existentes e outros que viessem a ser criados. No entanto, haja vista a situação diferenciada vivida em Rondônia, a lei dispôs, em caráter excepcional, sobre a criação de novos municípios, como será visto nos dispositivos constantes da mesma lei. Veja-se:

Art 47 – Independentemente da comprovação dos requisitos previstos nesta Lei, ficam criados, no Território Federal de Rondônia, os seguintes Municípios:
I – Ariquemes;
II – Ji-Paraná;
III – Cacoal;
IV – Pimenta Bueno;
V – Vilhena.

§ 1º – Os limites da área de cada Município, ora criado, serão fixados em Decreto do Poder Executivo.
§ 2º – Só a lei poderá alterar os limites da área do Município, fixados nos termos do parágrafo anterior.
Art 48 – A instalação dos Municípios, ora criados, far-se-á de acordo com esta Lei, após as eleições dos Vereadores a serem realizadas, simultaneamente, com as eleições municipais em todo o País.
Art 49 – Os Municípios criados no artigo 47, cujos Prefeitos serão, desde logo, nomeados pelo Governador do Território, continuarão pertencendo à Comarca do Município de origem até que lei especial disponha sobre a Organização Judiciária dos Territórios.

Contradição

Segundo Amadeu Machado, havia contradições no corpo da lei. Em caráter geral ela estabeleceu as condições para a criação de novas unidades nos territórios federais e, com relação a Rondônia a lei excepcionou, conforme redação do artigo 47.

No entanto o artigo seguinte dispunha que a instalação dos municípios deveria ocorrer após as eleições de vereadores, que se realizariam em âmbito nacional.

Vale dizer, que as instalações somente poderiam ocorrer após eleições que elegessem prefeitos e vereadores. Mas, como fazer eleições em municípios inexistentes?

Para agravar a contradição o artigo 49 dizia que os Municípios criados em Rondônia, deveriam ter seus prefeitos “desde logo nomeados”.

Como nomear prefeito sem haver município instalado?

O então governador do Território Federal reuniu a administração, o consultor jurídico do Governo Territorial, o juiz de direito da Comarca de Porto Velho, que era vinculado ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e eu, por ser o diretor do Departamento Jurídico da Prefeitura de Porto Velho, de onde se desmembrariam as novas unidades.

Longas discussões e ao fim, pautado em bom senso e objetividade, o então Juiz, José Clemenceau Pedrosa Maia, definiu que era necessário proceder a instalação, para que pudesse haver a nomeação de prefeitos.

Assim decidido, o governador Humberto Guedes baixou a portaria constituindo a Comissão que deveria promover os atos necessários para que as instalações se realizassem. E assim ocorreu a emancipação de Vilhena.  

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista 

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