Em 1º de janeiro de 1911, nove marinheiros foram assassinados e jogados ao mar; outros dois cometeram suicídio a bordo, enquanto vinham para o degredo nas barrancas do Rio Madeira.
Passados 112 anos, não se sabe ao certo o que levou o comandante do Navio Minas Gerais, capitão João Batista das Neves, a ordenar que o marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes levasse 250 chibatadas: a suspeita de ter embarcado, às escondidas, com duas garrafas de cachaça; a acusação de ter agredido um cabo com uma navalha; ou um pouco dos dois…
Em 1910, faltas leves eram punidas pelos oficiais da Marinha com a prisão em solitária, a pão e água, por um período de três a seis dias. Já as ofensas mais graves, como desrespeito à hierarquia, recebiam como castigo 25 chibatadas, na frente de toda a tripulação e ao som do rufar de tambores.
O fato é que, no dia 21 de novembro daquele ano, a sentença imposta a Marcelino, amarrado a um mastro do convés e nu da cintura para cima, revoltou um grupo de marinheiros negros que, cansados de sofrerem castigos físicos de seus oficiais brancos, resolveram organizar um motim. No dia seguinte, às 22h, o clarim não pediu silêncio. Chamou para o combate.
Sob a liderança de João Cândido, o Almirante Negro, 2.379 marinheiros — em sua maioria, negros e pardos — assumiram o comando de quatro navios de guerra: Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Deodoro. Os que estavam ancorados na Baía de Guanabara. Aos gritos de “Viva a liberdade!” e “Abaixo a chibata!”, a marujada içou bandeiras vermelhas de insurreição.
O presidente Hermes da Fonseca havia prometido que os revoltados não seriam punidos. Mas voltou atrás. E, por decreto, começou a perseguir todos os que participaram do levante.
Degredados em Rondônia
Rondônia entra na história da “Revolta da Chibata” como um lugar sombrio, cenário para o degredo daquela gente maltrapilha, doente, analfabeta e abandonada pelo sistema. E ainda chamada de “bando de bandidos” pelo presidente Hermes da Fonseca.
Dos 2.379 marujos revoltosos, 1.216 foram expulsos da Marinha, 600 foram presos e 105 obrigados a embarcar — em plena noite de Natal de 1910 — nos porões do navio Satélite, rumo ao atual estado de Rondônia — na época, extremo norte do Mato Grosso — , para trabalhos forçados na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, esta, porém, não aceitou os degredados que foram expulsos à bala. Alguns foram incorporados aos trabalhos da Comissão Rondon na expansão das linhas telegráficas, inclusive 21 mulheres. Os demais foram liberados para viver “como pudessem” — anotação do capitão Líbano Augusto, em nome da Comissão Rondon. Houve uma espécie de leilão entre seringueiros que levaram muitos daqueles corpos esquálidos para o trabalho exaustivo nas “colocações”. Outros viraram párias, morreram de fome e de vícios.
Foram conduzidos no navio desde o Rio de Janeiro por 50 praças do Exército e abandonados no dia 3 de fevereiro às margens do Rio Madeira, na altura da extinta vila de Santo Antônio do Rio Madeira — elevada a município a partir de 1912 e incorporado a Porto Velho em 1945.
Nove deles nunca chegaram ao destino. A mando do capitão Carlos Brandão Storry, eles foram fuzilados durante a viagem e seus corpos jogados ao mar, na mais triste madrugada de réveillon que pudesse haver. Outros dois cometeram suicídio se jogando na água com os pés e mãos amarrados. “Foram mortos os bandidos que conduzíamos”, anotou o impiedoso comandante em seu diário.
Juntamente com os marinheiros degredados, vieram para Rondônia 44 mulheres tratadas como “prostitutas”, “desordeiras” e personas “non gratas” na então capital da República. Foi uma acepção social e uma medida asséptica vergonhosas a de retirá-las das ruas, ações ocorridas a mando e sob o patrocínio do governo federal. Os pobres coitados foram condenados ao desterro e alguns à morte sem haver nenhum processo judicial, a muito menos condenação formal para eles.
O senador baiano Rui Barbosa manifestou da tribuna do Senado a sua indignação sobre o episódio: “O estado de sítio [autorizado pelo Congresso Federal, decorrente da Revolta da Chibata] não anula a Constituição e, portanto, ninguém pode ser condenado senão por autoridade competente. E esses cidadãos foram, sem processo, sem defesa, sem interrogatórios (…)”.
Um líder nato
Filho de pessoas escravizadas, João Cândido Felisberto, o Almirante Negro, nasceu no dia 24 de junho de 1880, em uma fazenda em Encruzilhada do Sul (RS), a 170 km de Porto Alegre. Aos 14 anos, ingressou na Marinha, como grumete (recruta). Como marinheiro, João Cândido navegou por três continentes — Europa, América e África — e aprendeu a operar quase todos os instrumentos a bordo, do leme ao canhão.
Entre outras expedições, João Cândido participou da missão que, em 1903, disputou com a Bolívia o território do Acre. À época, contraiu tuberculose e chegou a ficar internado por três meses no Rio. Recuperado, foi mandado para a Inglaterra, em julho de 1909, para aprender a operar o encouraçado Minas Gerais, de fabricação britânica. Ao voltar da Europa, depois de conversar com marujos ingleses, os mais politizados do mundo, tentou negociar o fim dos açoites com o então presidente da República, Nilo Peçanha. Não teve sucesso.
Triste fim
Ao sair da prisão, em 30 de dezembro de 1912, João Cândido passou a fazer biscates e a vender peixes para sobreviver. Durante muitos anos, saía de casa à noitinha e só voltava na manhã seguinte. Foi carregando cestos de peixe na Praça XV que, em 1937, anônimo e pobre aos 57 anos, conheceu o jornalista Edmar Morel, então repórter do jornal O Globo, que decidiu escrever sua biografia, A Revolta da Chibata (1959).
Discriminado e perseguido pela Marinha até o final da sua vida, recolheu-se no município de São João de Meriti, onde aproximou-se da Igreja Metodista. Passou mal em casa e foi levado ao Hospital Getúlio Vargas, na capital do Rio de Janeiro, onde morreu de câncer, pobre e esquecido, a 6 de dezembro de 1969, aos 89 anos de idade.
Reconhecimento póstumo
De lá para cá, o Almirante Negro já inspirou samba-enredo da União da Ilha, ganhou estátua na Praça XV, virou filmes, recebeu anistia póstuma do Governo Federal, em 2007, dentre outras honrarias. Uma das mais emocionantes é a música “O Mestre-Sala dos Mares”, de João Bosco e Aldir Blanc: “Salve o navegante negro”, evoca um trecho da canção.
A Marinha Brasileira, contudo, ainda não o reconhece como “herói”, tratando-o como mero líder de motim contra a instituição. Mesmo que a sua atuação tenha contribuído para modernizá-la em suas relações de trabalho e de respeito humano.
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