Se a alma não é pequena

O homem moderno está adiposo de imagens. No marco da globalização floresce uma “cidadania universal”, que supõe novas formas de estar no mundo. Somos espectadores em tempo real de uma sintonia global. Inadvertidamente, ou mesmo imperativamente, somos invadidos por acontecimentos não-programados e inesperados, temidos e trágicos, cujo impacto faz ressoar no sujeito as mais diversas formas de inibição, sintoma e angústia. 

A revolução tecnológica que há muito tempo era ciência-ficção, põe em marcha a comunicação – via imagem – num trajeto quase ilimitado. Poder-se-ia mesmo dizer que o olho de Deus está em toda parte, onipresença angustiante. Nessa via especular, nada escapa a algum tipo de registro: as câmeras “por acaso” captam o embate das torres gêmeas, o desencadeamento do tsunami, as barragens de Brumadinho, os lances do futebol olhados pelo VAR, a fúria do Katrina, os assaltos a mão armada e o desenlace com mortos, transformando-os de imediato em imagem global com seus infinitos replays, relançando sob os nossos olhos o viver e o morrer, o pranto e a angústia. 

Será nossa época particularmente desastrosa, ou é a globalização que põe tudo, a toda hora, sob nossos olhos, descuidando-se do que é preciso ser velado, e causando horror? Essa política de visualização inerente à construção do Mundo em que vivemos promove uma atração fatal sobre a imagem que traz à tona uma cadeia de identificações contrastantes, multifacetadas. Os ideais se pulverizam, os laços sociais se horizontalizam. 

A questão que se coloca é: como atingir tantos caminhos possíveis? Tal multiplicidade produz um sujeito angustiado, frente à liberdade de escolhas excessivas que lhe são apresentadas. O esperado é que encontrariam a felicidade por não estarem constrangidos pelos ideais: um dia ser como o pai, como o chefe… Pseudo ilusão! Liberto dos ideais simbólicos, o sujeito contemporâneo escraviza-se à mídia e à publicidade – que sustentam montagens perversas – através das novelas, dos Big Brothers, da televisão em geral, da internet. 

Uma vidraça se impõe entre o privado e o público, o ontem e o hoje, o próximo e o distante. O imediatismo, a onipresença, o “direto absoluto” governam. Como efeito, a angústia, que não mente, instala-se, revelando a impotência do sujeito diante de um vir-a-ver que o surpreende, aterroriza-o. O perigo está no destino? Na vontade dos deuses? Na força da natureza? São questões que insistem. 

No cenário de nossa atualidade, a mostração das reiteradas atrocidades, catástrofes políticas e sociais vale a pena questionar o que pensa o espectador. Não apenas do lugar da indignação, da compaixão, da morbidez, mas também da responsabilidade em responder ao que nos demandam essas imagens ainda que no excesso traumático de sua repetição. “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”.

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