Lição de Natal

Na proximidade do Natal e do final de ano, todos fazem uma espécie de contabilidade de sua passagem pela Terra. Os documentos em poder do guarda-livros da memória, onde estão inscritas as colunas do débito e do crédito, passam velozmente pelo cérebro, em busca da resposta se a utilidade da vida foi medida apenas pelo espaço de tempo ou pela intensidade de seu uso. Uma fatalidade de que não consegue escapar o homem é sua chegada ao vestíbulo da porta do outono da vida, aquele momento em que as folhas da árvore da existência começam a cair pela invencível força do tempo. Algo triste e doído, em meio ao farfalhar das folhas outonais, é a impossibilidade de ver repetidas na tela de sua saudade da infância a emoção do primeiro encontro com Papai Noel. Conto o meu. O preço pago à idade é sentir a fantasia ceder lugar à realidade. Era da tradição das famílias o bom velhinho aparecer, dias antes do Natal, para receber as cartas cheias de pedidos esperançosos. Lembro-me dos preparativos para o dia de Natal. Tudo era um misto de festa e aventura vividas na alegria descontraída dos infantes. Para os meninos da Manaus ainda pequena, tudo era novidade e emoção, mas já havia carros nas ruas pavimentadas, e era intenso o burburinho do comércio, principalmente na Eduardo Ribeiro e Marechal Deodoro,indicativo da prosperidade. Antevéspera do Natal, os corações começavam a pulsar mais fortemente. Tinha meus oito anos e imaginava como seria a figura de Papai Noel, até então desconhecida, mas desenhada na mente infantil. Ao vê-lo em uma loja, vestido como hoje em dia, onde todos estavam reunidos para esperá-lo, meu coração parecia querer saltar pela boca. O recurso foi buscar o enlace do braço da minha mãe até merecer do bom velhinho, uma palavra suave de compreensão para meu temor e o chamado em forma de indagação, sobre qual presente desejava ganhar. A bicicleta era o objeto fixado em minha cabeça de criança e na minha ambição. Quero uma bicicleta, respondi firme, encantado com sua barba branca. Haveria de possuir uma, poder voar pelas ruas do bairro da Cachoeirinha. Sonhava todas as noites com aquele fascinante veículo. Papai Noel chegava na hora certa e me salvaria do desconforto provocado pela insuportável carência. Minhas esperanças nunca haviam sido tão fortes. Elas estavam escancaradas no rosto do bom velhinho, olhando-me com olhos de extrema doçura. Na manhã do dia 25, acordei e corri para o encontro com o objeto de meu ardente desejo. Estava lá a bicicleta, apenas uma pequena bicicleta de brinquedo. As lágrimas que molharam minha frustração, até hoje brotam de meus olhos, quando vejo Papai Noel em sua fantasia a provocar o milagre da esperança, da alegria e da convivência. Cada um faz sua bicicleta do tamanho que desejar. Tudo conforme sua ambição. Por isso mesmo, o homem feliz será aquele que conseguiu limitar suas ambições. Jamais me esquecerei da lição de Papai Noel. Ganhei no ano seguinte. Feliz Natal a todos.
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