Inspiração

Em conversa com uma amiga, perguntava-me ela como era a inspiração para toda semana escrever sbre assuntos diversos. Minha resposta foi a noção comum que se tem a respeito do escritor é que são pessoas excepcionais, nascidas com o dom de escrever bem o belo, são periodicamente visitadas por uma espécie de  iluminação das musas, ou do Espírito Santo, ou de outro espírito propriamente dito — fenômeno a que se dá o nome de ‘‘inspiração’’. O escritor fica sendo assim uma  espécie de agente ou médium, que apenas capta as inspirações sobre ele  descidas, manipulando-as no papel graças àquele dom de nascimento que é a sua  marca. Pode ser que existam esses privilegiados — mas os que conheço são  diferentes. Não há nada de súbito, nem de claro, nem de fácil.

Foto: Reprodução/Shutterstock
O processo todo é  penoso e dolorido — e se pode comparar a alguma coisa, digamos que se parece  muito com um processo fisiológico — que se assemelha terrivelmente a uma  gestação cujo parto se arrastasse por muitos meses e até anos. Começa você  sentindo vagamente que tem umas coisas para dizer ou uma história para contar.  Ou, às vezes, ambas. Fica aquilo lá dentro, meio incômodo, meio inchado  (antigamente se dizia como ‘‘uma dor incausada’’), quando um belo dia a coisa dá  para se mexer. Surgem frases já inteiras, surgem indefinições que, se você for ladino bastante, anota para depois aproveitar; mas se for o contumaz preguiçoso, confia-os à memória e depois os esquece. Dentro da enxurrada de frases e de  idéias aparecem, então, as pessoas. Surgem como desencarnados numa sessão  espírita — timidamente, imprecisamente. São uma cabeça, uma silhueta, uma voz. 

Nesse ponto, junto com as frases, pensamentos e criaturas (e mormente com o cenário, embora ainda não se haja falado nele). Nessa altura, a história já se está  arrumando. Você sabe mais ou menos o que contar. Os autores meticulosos,  nessa fase dos acontecimentos, já delinearam o que eles costumam chamar  ‘‘plano de obras’’, ou seja, um esqueleto do enredo.   Se é um romance, o  esquema será mais amplo — os claros serão facilmente preenchíveis. 

A história  corre a bem dizer por si. Mas se se trata de teatro, o esquema bem linear é  imperioso: aquilo tem que ser como um pingue-pongue, ter um crescente  constante, uma economia, uma nitidez… E então chega um dos piores momentos  nessa fase embrionária da obra por escrever. O autor enguiça. Falta-lhe  imaginação para desenrolar o resto da história, falta a centelha necessária para  criar a situação única, indispensável, climática, que será como a tônica do  trabalho. E a gente fica numa irritabilidade característica, e numa pena enorme de  Deus Nosso Senhor, que é obrigado a dirigir as histórias não apenas de um  punhado de personagens, mas os milhões de viventes que andam pelo mundo —  e se concebe um respeito trêmulo pela divina capacidade de intenção, que tão  pouco se repete e tão invariavelmente cria… Talvez com autores de imaginação rica o fenômeno se passe diferente.

É provável que eles, ao contrário de nós, os terra-a-terra, primeiro imaginem um enredo e depois, segundo as necessidades  desse enredo, vão criando os personagens e os situando no tempo e no espaço.  Aí a sensação criadora deve ser de plenitude e gratificação. Mas esses são os estrelos. A arraia miúda escrevente — ai de nós — é mesmo assim como eu  disse: pena, padece e só então escreve. Pronto acabei de fazer mais uma obra. 
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