Anedota

Certamente um dos poucos desafios que os estudiosos da sociologia e da história da cultura não podem oferecer boas descrições seja aquele que se refere ao da gênese autoral das anedotas. Ou seja, formulando a questão de forma bem direta e simples: quem inventou, quem criou tal ou qual anedota? Desdobrando ainda mais este verdadeiro enigma: desde quando tal ou qual anedota existe?

O enigma da datação não é tão complicado assim de resolver. Nem tampouco é difícil localizar no espaço, em uma espécie de geografia do anedotário, onde surgem e permanecem ou não um certo repertório de anedotas. No Brasil, por exemplo, piadas envolvendo portugueses só caberiam a partir do contexto histórico dos finais do Segundo Império e com o aparecimento da República, vindo até os nossos dias atuais, declinando.

Origina-se da diferenciação das nacionalidades e da existência de tensões só compreendidas no bojo dos movimentos pela independência da colônia e posteriormente pela extinção da monarquia. Semelhantemente, entende-se como há um anedotário que parte da percepção das diferenciações étnicas. Seriam as anedotas, por exemplo, sobre judeus e turcos.

Anedota é fundamentalmente um fato da cultura oral, predominantemente urbano e é hiperinformalizada. Não se sabe quem enunciou pela primeira vez uma anedota; não há registros sobre autoria de anedota. Sob este aspecto a anedota é um enigma mais desconhecido do que a origem do universo. Não existe para o anedotário teorias como a do big bang ou do buraco negro.

Quem riu pela primeira vez em que uma determinada anedota, criada por quem, foi contada? Somos talvez irremediavelmente incapazes de formular um mínimo de diretrizes para uma sociologia genética do anedotário, considerando a questão da autoria. Sabemos, mesmo assim, que o anedotário é extremamente dinâmico e, a partir de determinado ponto, ele entra no circuito da criação coletiva em sucessão.

Sabemos localizar com mais ou menos precisão o tempo e uma geografia dos anedotários. Ainda bem não somos tão ignorantes assim. Mas sabemos muito pouco sobre o anedotário do ponto de vista comparativo. Participando alguns anos atrás de um seminário internacional realizado em Brasília, alguém da plateia encaminhou a seguinte pergunta aos participantes da mesa: “Todas as sociedades possuem anedotários, como nós aqui no Brasil possuímos o nosso? É plausível comparar anedotas, vamos supor, chinesas do século vinte, com anedotas brasileiras do mesmo período? Ou não existe anedotário em alguns outros povos, em algumas outras sociedades?

Lembro-me que não respondemos lá muito bem a estas indagações. Há idiossincrasias das sociedades, para complicar ainda mais, entramos aí no terreno das possibilidades da recepção, dos códigos culturais e simbólicos do contador e do ouvinte da anedota. Uma anedota contada e ouvida por duas pessoas do Uzbequistão, será entendida dentro dos códigos do humor e do cômico de um brasileiro? Ou de um espanhol?.

Tal como a dinâmica linguística, onde os vocábulos, as palavras – as faladas, principalmente – mudam como que misteriosamente, as anedotas resistem a certas investigações. A história e a sociologia da cultura vão ter de se resignar a conviver sem sentimentos de derrota e de humilhação com o eterno enigma, capricho deste fato fascinante que é o do pensamento e o da comunicação dentro das sociedades. Nós não estudamos asteroides nem gatos, nem aves migratórias.

Estudamos gente, pessoas sociais, sistemas culturais e simbólicos. E, no caso das anedotas, estudamos as heranças das falas e dos ouvidos. Fascinante e não é fácil. Freud estudou o chiste; mas ficou restrito à sua teoria mais geral do inconsciente. Não é suficiente nem um pouco para nós da área das ciências sociais. Vamos ter de ficar mesmo na penumbra enigmática das anedotas e dos seus autores.
 

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